Os Crimes de ''Colarinho Branco''
Por Élida Valéria Carvalho Rezende | 18/05/2012 | DireitoÉlida Valéria Carvalho Rezende[1]
Os “crimes de colarinho branco” (assim chamados por serem praticados por executivos) têm duas características importantes: a posição social privilegiada do autor e a estreita relação da atividade criminosa com sua profissão, o que facilita a conduta delitiva. A prática criminosa é de caráter estritamente financeiro e econômico, que são realizadas de forma ilícita: captação, gestão e aplicação de recursos de terceiros, operações com títulos e valores mobiliários, atividades realizadas por instituições financeiras que possuem a função de intermediários no sistema econômico.
Para a sociedade é crime difícil de ser visualizado, pois, diferentemente dos crimes comuns, os “crimes de colarinho branco” não precisam de violência física para serem praticados e são caracterizados pela administração enganosa, com manobras ilícitas, com emprego de fraudes de forma ardil e sutil. Por tais características é tão imprescindível sua punição.
A falta de proteção ao Sistema Financeiro inviabiliza o desenvolvimento equilibrado do país e a busca dos objetivos estabelecidos na Constituição. A tutela do Sistema Financeiro Nacional é igualmente importante para manter a credibilidade das instituições financeiras.
A Constituição Federal traz como objetivos em seu Art.3º, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, redução das desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos. Dispõe também sobre a Ordem Econômica e Financeira, nos arts. 170 e seguintes, traçando como princípios: a valorização do trabalho humano, a soberania nacional, livre iniciativa, justiça social, propriedade privada e sua função social, livre concorrência, sempre com o objetivo de assegurar a todos uma existência digna, consagrando a chamada Constituição Econômica.
A carta Maior ainda prevê, em defesa do bem comum, em seu Art.173,§4º, que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros e no §5º que a lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.
A Lei 7492 de 16 de junho de 1986, conhecida como a “Lei dos Crimes de Colarinho Branco”, define os crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e tem como escopo assegurar na esfera do Direito Penal a proteção a este Sistema. A lei define em seu art.1º o que é uma instituição financeira e em seu parágrafo único a equiparação à instituição financeira, que pode ser uma pessoa jurídica ou natural que exerça quaisquer das atividades descritas no artigo, ainda que de forma eventual. Essas instituições desempenham a função de interligar os diferentes polos de negociação existentes no mercado.
O Sistema Financeiro Nacional é, então, formado pelo conjunto de instituições financeiras e órgãos normativos e entidades supervisoras, além dos também equiparados, conforme parágrafo único do art.1º da Lei 7492/86, e, qualquer ação que ameace o sistema financeiro, ameaça também a estrutura do Estado.
A Lei 7492/86 foi criada com o objetivo de tutelar a política econômica do governo, inicialmente os administradores das instituições financeiras, o que se estende hoje, aos que de alguma forma provoquem prejuízos à ordem econômica; outra parte da doutrina considera ser o bem jurídico tutelado a regularidade formal do processo de emissão e negociação de valores mobiliários, e por consequência a credibilidade e estabilidade do sistema financeiro nacional. Mas, infelizmente na maioria das vezes, apenas os partícipes são punidos nos delitos em questão, os denominados “testas de ferro” ou “laranjas”. Conforme ensina Tigre Maia:
“Há uma pletora de razões que explicam tal fato (...) a complexidade organizacional das teias criminosas engendradas, que desafiam as limitações notórias das forças da ordem em reprimi-las; o desconhecimento generalizado dos tipos penais aplicáveis e das hipóteses fáticas a eles correspondentes pelos encarregados de sua repressão; a desarticulação entre os setores estatais encarregados do controle e fiscalização destas práticas; o tráfico de influência e a corrupção imanente aos Estados cartoriais, e com elevada concentração de renda (...).”[2]
O Direito Penal tem como principal objetivo a proteção dos bens jurídicos mais importantes. E, não é só através da punição que o Direito penal cumpre sua finalidade, mas pode exercê-la também através da prevenção, com o intuito de garantir às pessoas um mínimo de harmonia e tranquilidade para viver em sociedade.
Neste raciocínio, os bens jurídicos tutelados pela Constituição, não são apenas os individuais, mas também os coletivos ou supra individuais, ou seja, todos os valores que interessam à sociedade. Assim, a proteção da ordem financeira econômica é importante para a sociedade, pois dela depende o desenvolvimento equilibrado e a justiça social do país.
Dispõe a Lei 7492/86, caracterizando crime contra o Sistema Financeiro Nacional:
Art.3º Divulgar informação falsa ou prejudicialmente incompleta sobre instituição financeira.
Pena- Reclusão, de 2(dois) a 6(seis) anos e multa.
Art.4º Gerir fraudulentamente instituição financeira.
Pena- Reclusão, de 3(três) a 12(doze) anos e multa.
Parágrafo Único. Se a gestão é temerária:
Pena- Reclusão, de 2(dois) a 8 (oito) anos, e multa.
O problema consiste em que a referida lei não esclarece o que deva ser gestão fraudulenta e temerária de instituição financeira. O tipo ficou aberto, não descriminando as condutas humanas que caracterizam tais atos, o que viola o princípio da taxatividade, desdobramento do princípio da Legalidade- “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal” (Art.1º do Código Penal e art.5º, XXXIX, CF).
Para Bitencourt há necessidade de cautela no exame do vocábulo ‘temerária’, pois não pode ter a abrangência permitida pela palavra. A elasticidade do vernáculo não se compatibiliza com a certeza jurídica e a taxatividade exigidas pelo Direito Penal.
Sabe-se que no Direito Penal é proibido o uso da analogia ou interpretação extensiva que incrimine algum fato ou torne mais severa sua punição. Assim, a lei 7492/86 é frágil, os tipos nela contidos, não descrevem explicitamente a conduta incriminadora, sendo insuficiente, já que não cumpre a função de garantia dos preceitos constitucionais, o que a torna suscetível de inconstitucionalidade.
Outra observação a ser feita é que a lei em comento não traz a expressa menção da forma culposa, como exigido pelo código Penal, em seu Art.18, parágrafo Único, de onde se conclui que este tipo de crime só poderá ser punido na forma dolosa.
Os tipos penais financeiros se destinam a punir as condutas intoleráveis, manobras financeiras lucrativas que causam prejuízo para toda a sociedade. Estes delitos causam sérios danos à economia e com uma legislação penal insuficiente gera por consequência a impunidade. A atividade exercida pelos agentes financeiros é altamente especializada e por esta razão, exige conhecimentos de mercado, de economia, de direito financeiro, de mercado de capitais, de técnicas bancárias, de matéria cambial, dentre outros.
Afirma Bitencourt[3] que “o exame da gestão da instituição financeira não pode ser avaliado, no plano puramente jurídico, quer pelo julgador, quer por qualquer outro operador do direito, mas dependerá fundamentalmente, do exame técnico de especialistas dessas atividades (operadores do mercado financeiro, da bolsa de valores, (ex) executivos de grandes instituições financeiras etc.)” e sugere a nomeação de especialistas pelo juiz, para a elaboração de um laudo pericial, que deveria ser realizado por uma junta ou comissão.
A falta de provas (o que leva a arquivação de inquéritos e à prescrição penal), a dificuldade de adequação ao tipo penal e o despreparo, a ausência de controle e direção de atividades investigatórias pelas autoridades responsáveis que não possuem pessoal especializado (corpo de peritos), já que se exige conhecimentos específicos do mercado financeiro, tudo isso contribui para o insucesso das investigações e para a impunidade.
É preciso que o Estado possua instrumentos de prevenção e repressão tão ágeis como são as atividades financeiras para que possa coibir esses delitos. Tigre Maia[4] afirma que “para esses ilícitos, além de uma regulação jurídica defeituosa, constata-se que as forças da ordem desempenham uma função repressiva insuficiente e, mesmo, condescendente”.
É necessário, portanto, uma reformulação da lei 7492. Com palavras genéricas, torna-se difícil a tipificação da conduta delitiva, deixando para o aplicador da lei enquadrar a atividade ilícita ao tipo penal, o que pode violar o princípio da taxatividade.
É necessário uma legislação mais eficiente, elaboração de políticas públicas e aparelhamento do Estado para o combate efetivo aos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. A impunidade destes criminosos é desagregadora de valores e geradora de descrença no sistema judicial e no sistema financeiro e econômico do país.
Há de se salientar que o crime de “Colarinho Branco” está conectado com o crime de lavagem de dinheiro e com o crime organizado. São crimes que atentam contra o desenvolvimento econômico, seja através da concorrência desleal, da obtenção de informações privilegiadas, seja através da corrupção das organizações financeiras e comerciais da sociedade, o que desestrutura a economia nacional e contribui para a desigualdade social.
REFERÊNCIAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional & contra o mercado de capitais - 2ed. - Rio de Janeiro:Lumen Juris,2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.gov.br. Acesso em 09/05/2012.
Lei Nº7492 de 16 de junho de 1986. Disponível em http://www.planalto.gov.br Acesso em 09/05/2012.
MAIA, Rodolfo Tigre. Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional - Anotações à Lei Federal nº7492/86- São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
NUCCI, Guilherme de Souza- Leis Penais e Processuais Comentadas – 5ª ed.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
NUNES, Luciano Augusto de Freitas. Tese de Mestrado: A tutela penal do sistema financeiro nacional e o controle difuso de constitucionalidade dos crimes de gestão fraudulenta e gestão temerária – Faculdade Milton Campos – defesa em 24/11/2009.
[1] Graduanda do 10º Período do Curso de Direito da PUC Minas.
[2] Rodolfo Tigre Maia. Dos crimes contra o sistema financeiro nacional. P.35.
[3] Cezar Roberto Bittencourt. Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional... P.65.
[4] Rodolfo Tigre Maia. Dos crimes contra o sistema financeiro nacional. P.11.