OS CRIMES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA E A DEFESA DA LIVRE CONCORRÊNCIA...
Por Josafá Maia de Oliveira | 20/10/2016 | DireitoOS CRIMES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA E A DEFESA DA LIVRE CONCORRÊNCIA: OS REFLEXOS DA AÇÃO INTERVENCIONISTA PENAL ESTATAL SOB A PERSPECTIVA DAS LEIS 8.137/90 E 12.529/2011[1]
Josafá Maia de Oliveira e Lorena Batista[2]
Maria do Socorro Almeida de Carvalho[3]
RESUMO
O presente trabalho traz como cerne a análise acerca dos reflexos da intervenção penal estatal e qual a necessidade desta ao atribuir à ordem econômica o status de bem jurídico penalmente tutelado, a partir da explanação da tipificação dos crimes contra a ordem econômica – em sentido estrito – previstos na lei 8.137/90, relacionando-os com a prerrogativa da ampla concorrência disposta na lei 12.529/2011. Assim, visa-se compreender a garantia da ampla concorrência trazendo considerações sobre Estado intervencionista na esfera econômica.
INTRODUÇÃO
A ordem econômica é um dos principais expoentes para a estruturação de um Estado hodiernamente; a organização da movimentação de capital e das relações consumeristas, trabalhistas, concorrenciais, entre outras, são vias para garantir crescimento econômico e, assim, consolidar um país e sua moeda no mercado mundial, satisfazendo consumidores e fornecedores, tanto na instância privada quanto na pública.
Sob uma perspectiva constitucional, os aspectos acerca da ordem econômica já vinham sendo trabalhados desde a Constituição Imperial de 1824, assim como na Constituição Republicana de 1891 - como foi o caso da garantia da propriedade privada plena -, embora não tratada de maneira explícita tal ordem; já na Constituição de 1934 observaram-se dispositivos que trataram explicitamente da ordem econômica (SZEZERBICKI, 2014), como o artigo 115, o qual dizia que “a ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é assegurada a liberdade econômica”. Passando pelas demais constituições federais, observou-se a preocupação do constituinte em buscar garantir essa ordem econômica - através de princípios - como uma de suas prerrogativas para a consolidação do Estado e como um meio de garantir a dignidade dos cidadãos brasileiros. Já a Constituição Federal da República de 1988 “trouxe em seu bojo um rol de princípios e normas, que fundamentam a ordem econômica e financeira do País” (SZEZERBICKI, 2014, p. 5) e buscou também tratar o “caráter intervencionista, vigente até então, adotando um modelo liberal, no qual o sistema escolhido foi o capitalista descentralizado baseado na economia de mercado” (SZEZERBICKI, 2014, p. 5).
Conforme a CF/1988, em seu artigo 170, a ordem econômica tem como objetivo a asseguração da existência digna de todos os cidadãos segundo os preceitos da justiça social, e assim o faz por meio da observação dos princípios seguintes: da soberania nacional, da propriedade privada, da função social da propriedade, da livre concorrência, defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, da redução das desigualdades regionais e sociais, da busca do pleno emprego e do tratamento favorecido para as empresas de pequeno. Logra atenção no presente trabalho a análise do princípio da livre concorrência (art. 170, inc. IV, CF/88), que é uma das bases de grande importância para a estruturação da economia nacional; seria a competição entre os que atuam a atividade econômica, livre da intervenção estatal arbitrária (SZEZERBICKI, 2014), uma forma de garantir o equilíbrio entre grandes e pequenas empresas dentro do mercado econômico.
Nesse viés da livre concorrência, tem-se estipulada uma Lei Federal que trata sobre o sistema de proteção da concorrência no Brasil, a Lei n°12.529/2011, a qual, acompanhada desse caráter principiológico constitucional da ordem econômica, revogou e deu nova redação a dispositivos da lei 8.137/90, que dispõe penalmente acerca de crimes contra a ordem econômica. Ambas as leis mostram-se como posicionamentos estatais para operar a ordem econômica constitucionalmente garantida.
Assim, com a dada importância da ordem econômica, busca-se analisar os reflexos da intervenção penal estatal que atribui à ordem econômica o papel de bem jurídico penal tutelado, por meio da Lei nº 8.137/90, a fim de reiterar a proteção ao princípio da livre concorrência que consta no bojo constitucional da ordem econômica. Questionando, também, a necessidade de tal incidência do intervencionismo penal estatal sobre a ordem econômica a partir do princípio da ultima ratio do Direito Penal.
1 DOS CRIMES CONTRA A ORDEM ECONÔMICA LISTADOS NA LEI Nº 8.137/90
A Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, traz alguns crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consuma. A lei continha, em sua redação original, 23 artigos, dos quais configuravam como crimes contra a ordem econômica os artigos 4°, 5° e 6º; porém, com a criação da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011 – a lei de defesa da concorrência – foram revogados os artigos 5° e 6º, e ao artigo 4° fora dada uma nova redação, restando apenas este como dispositivo que trata sobre os crimes contra a ordem econômica dentro da Lei nº 8.137/90.
Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica: I - abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas. II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores. Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.
Os crimes acimas expostos têm como bens jurídicos tutelados a livre iniciativa e a livre concorrência, que são bases fundamentais para a ordem econômica; pois, constitucionalmente, a ordem econômica é fundada na livre iniciativa e tem a livre concorrência como princípio a ser observado, conforme exposto no artigo 170 da Constituição Federal de 1988. Têm como sujeito ativo o empresário, ou aquele que detém o exercício das atividades típicas de um empresário; nesse quesito, é considerado empresário, conforme o artigo 966 do Código Civil: “considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”, não sendo considerado como tal “quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”, segundo o parágrafo único do aludido artigo; e de acordo com Luiz Regis Prado, trata-se de um delito especial próprio. Porém, Luiz Regis Prado afirma que se deve atentar pelo fato de o “Direito Penal ser informado pelos princípios da responsabilidade penal subjetiva, da pessoalidade da pena e da culpabilidade, serão sujeitos ativos o empresário individual ou os sócios integrantes da empresa comercial; jamais esta, por lhe faltar a consciência e vontade de atuar” (2009, p. 42); contudo, há outros posicionamentos que veem como possível a responsabilização penal da pessoa jurídica desde que haja ação penal contra pessoa física em conjunto com a ação contra a pessoa jurídica, e até mesmo o STF já julgou a possibilidade de pessoa jurídica praticar crimes, independentemente de haver ação penal concomitante contra a pessoa física. Trata-se na mesma perspectiva dos crimes ambientes, nos quais se observa que “os direitos e interesses difusos e coletivos ganharam expressão, suplantando os tradicionais direitos individuais protegidos pela lei penal. Um crime cometido contra o meio ambiente, por exemplo, atinge a um número indefinido de pessoas, que serão as vítimas” (SALES, 2012, p.2); e é nesse contexto de direito transindividual que se trata a ordem econômica como bem jurídico coletivo penalmente tutelado, pois a sua proteção é de interesse de toda a coletividade.
São sujeitos passivos os empresários que fazem parte da concorrência e que têm prejuízos no exercício do direito da livre competição econômica, que se deu pela abusividade do poder econômico ou pelo monopólio mercadológico encabeçado por empresários individuais ou empresas; pode-se atribuir também os consumidores como sujeitos passivos, já que tais práticas criminosas afetam os preços de mercadorias e serviços, causando danos naqueles que consomem (PRADO, 2009). Além disso, pode-se dizer que a coletividade também versa como sujeito passivo, uma vez que a ordem econômica tem por fim assegurar a existência digna de todos.
O caput do artigo 4º da lei 8.137/90 alega que configura crime contra a ordem econômica a conduta que se subsuma a um dos dois incisos seguintes. O inciso primeiro menciona a prática de “abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas”; abusar do poder econômico significa atuar com excesso, exagero, utilizando-se da força que o capital dá ao empresário, é um “mau uso do poder econômico, um desvirtuamento ou aplicação deformada, ardilosa, da faculdade de tomar certas atitudes, em detrimento de outrem” (PRADO, 2009, p. 43). Dominando o mercado seria a instauração de um monopólio, ditar as regras dentro do contexto mercadológico a que pertence, podendo ser de extensão regional, local ou nacional, ou seja, não importa se o domínio é exercido em apenas uma fração pequena do território nacional; mercado seria uma delimitação onde ocorrem compras e vendas de bens e serviços, não sendo relacionado a toda atividade econômica, pois, conforme Regis Prado (2009, p. 44), o significado de mercado diz respeito:
[...] segmentos delineados, cujos contornos devem ser estabelecidos para caracterizar o tipo, pois, por mais poder econômico e político que se tenha, não ha como ocorrer o domínio global da economia do país. Por isso a necessidade de especificar os limites do ramo de fornecimento de produtos ou serviços em que se manifesta domínio econômico. Nesse contexto, e necessário traçar uma delimitação, tanto geográfica quanto material, do mercado para saber se há ou não o seu controle.
Além de dominar o mercado, o inciso traz também a conduta de eliminar a concorrência, total ou parcialmente. Eliminar seria erradicar, fazer deixar de existir. Concorrência refere-se à disputa no mercado entre empresários, distribuidores e fornecedores de produtos e serviços com intenção de lucro.
Em mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas, ajuste seria um “acordo, acerto, convenção, pacto, de que resulte uma obrigação a ser cumprida por uma ou ambas as partes (SIDOU, 2004, p. 43); acordo, por sua vez é a concordância de ideias e sentimentos, é a criação de obrigações através de pacto entre os contratantes. Empresas constituiria um elemento normativo, requer uma interpretação conforme os ditames do Direito Empresarial aplicado no Brasil.
[...]