OS CONFLITOS SÃO BENÉFICOS

Por Geraldo Barboza de Carvalho | 18/05/2009 | Saúde

OS CONFLITOS SÃO BENÉFICOS

A realidade do universo, da história, da sociedade, do ser humano é constituída de coisas e elementos opostos, quiçá antagônicos: luz e trevas, dia a noite, positivo e negativo, bem e mal, bom e mau, alto e baixo, frente e atrás, direita e esquerda, prótons e elétrons, realidade potencial (virtual) e realidade atual, mesmo e outro, espírito e matéria, vida e morte. Isto já era observado por Heráclito (576-480 a C) filósofo pré-socrático: a essência da realidade, a natureza é combate, o conflito, é do conflito que nasce a verdade. Por isso, os opostos não podem ser separados, mas vividos e pensados dialeticamente, dinamicamente, como unidade em permanente processo de integralização. Filósofos perfeccionistas, dualistas acomodados, tentaram desfazer essa trama intrigante da realidade afirmando que o bem está do lado do espírito, da alma, da luz; o mal está do lado das trevas, da matéria, do corpo. São os filósofos  platônicos, maniqueístas, gnósticos, defensores da unidade estática, da verdade unilateral, sem conflito, autoritária.  Jesus endossa Heráclito 6 séculos depois, traduzindo o conflito congênito do ser humano, da história e do universo, ao contar a parábola do joio e do trigo que crescem juntos no mesmo campo. Discípulos apressados perguntaram ao dono do campo: "Queres que vamos arrancar o joio? Ele respondeu: Não, para não acontecer que, ao arrancar o joio, com ele arranqueis o trigo também. Deixai-os crescer juntos até a colheita", para então, separá-los Mt 13,24-30; 36-43. O conflito inerente à finitude das coisas criadas é retratado de maneira dramática pelo Apóstolo Paulo: "Realmente não consigo entender o que faço: não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Não faço o bem que quero, pratico o mal que não quero. Verifico esta lei em mim: quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. Comprazo-me na lei de Deus (da razão); mas percebo outra lei em meus membros (instintos), que peleja contra a lei da minha razão e me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros. Infeliz de mim!" Rm 7,14-24. A estrutura do ser humano é conflitante em seus elementos estruturais: ao mesmo tempo e inseparavelmente matéria e espírito, corpo e alma, emoção e razão, em incessante e mútua interação. A razão distingue esses elementos em nós, mas não pode separá-los, sem destruir a unidade substancial contraditória do ser humano. Nem sequer podemos dizer que o espírito é superior à matéria, que a alma é superior ao corpo, pois co-existem de maneira interativa, cada oposto em função do outro. A substância humana é conflito. A essência do ser humano é constituída da união consubstancial de elementos opostos. Ignorar isto é destruir a unidade dinâmica do ser humano.  Nem há mal algum em sermos assim.

É insensato pensar que a sociedade é constituída de pessoas boas, de um lado, e más, do outro. Não é sábio achar que se podem isolar os maus do lado da insanidade e deixar os bons entre muros seguros da pureza. A tendência comodista é pensar de maneira maniqueísta: os que me contestam são maus; os que pensam como eu e estão do meu lado são bons. Típico de quem não sabe conviver com as diferenças. Ora, "só Deus é perfeito". Mas o ser humano é imperfeito e está em processo de aperfeiçoamento entre os conflitos interiores e exteriores.

Deles ninguém escapa, pois fazem a contextura da realidade humana. É preciso lutar para fazer prevalecerem os valores positivos, sem destruir os que não os vivem ou estão no processo da busca da perfeição. O primeiro sinal de perfeição é a humildade de quem convive serena e pacificamente com os próprios conflitos e respeita os que pensam e agem de maneira diferente ou ainda estão a caminho. Os fariseus perfeccionistas sofrem da incontrolável tentação da unanimidade, da uniformidade no pensar e no agir de um povo ou comunidade. Os mais perfeitos sabem que conseguiram a perfeição enfrentando conflitos, não fugindo deles. Por isso, continuam misturados com os imperfeitos, menos perfeitos, respeitando-os até em seus erros, dando-lhes tempo e oportunidade para fazerem as pazes com seus opostos, interiores e exteriores, aceitando-se, pois a paz é o equilíbrio dos contrários. Nada de frenesi perfeccionista extremado, discriminador, excludente, racista.

Todos estamos em processo de aperfeiçoamento ético, de santificação, somos discípulos e mestres uns dos outros. Ninguém é absolutamente apedeuta ou absolutamente sábio. Mas cada um, no estágio existencial em que se encontra, precisa ser obediente (ter ouvido atento) à voz da sabedoria que vem dos conflitos e aceitá-los como naturais. Bobagem se afanar na busca daalma gêmea, da pessoa certa, da luva que se encaixa na mão, do alter-ego de mim mesmo, que me faria viver uma felicidade sem conflitos, mas desumana, insípida, paz dos sarcófagos e cemitérios. Se não há conflitos, não há diálogo nem oportunidade de perdão e reconciliação. Precisamos aprender a pensar a realidade e vivê-la processualmente, na busca de completude, jamais como coisa acabada. Somos seres a caminho, não instalados. Ao galgarmos um patamar da perfeição, fiquemos abertos a novos horizontes. Pois, "há muito mais coisas sob o sol e sobre a terra do que julga nossa vã, enfatuada sabedoria", dizem o Eclesiastes e Shakepeare.

Geraldo Barboza de Carvalho