Ortotanásia: o tempo certo da morte digna

Por Juraciara Vieira Cardoso | 01/07/2010 | Direito

RESUMO: Palavras-chave: Ortotanásia. Eutanásia. Suicídio assistido. Distanásia. Morte. Dignidade. Autonomia. Vida. Direitos fundamentais.
O tema da ortotanásia, morte ocorrida no tempo certo, vem tomando impulso na atualidade, devido a uma cultura de negação extremada da finitude. Somado a isso, os avanços médico-tecnológicos podem fazer com que o processo de morte aconteça de modo injustificadamente lento e doloroso. A fim de promover uma melhor compreensão do tema, que envolve questões filosóficas, antropológicas, sociológicas, científicas, morais, éticas, religiosas, além de jurídicas, a pesquisa propõe uma ampla abordagem da morte na atualidade, a fim de que o direito de morrer com dignidade não seja tratado sob o ponto de vista estritamente jurídico. Partindo deste exame interdisciplinar da morte, a pesquisa buscará delimitar situações e conceitos diretamente ligados ao tema para então, possa oferecer distinções analíticas entre eutanásia, distanásia e ortotanásia, demonstrando que, à luz dos direitos fundamentais, esta última se apresenta como uma solução jurídica, ética e moralmente aceitável, ao proporcionar a máxima concretização dos princípios constitucionais envolvidos na matéria: o direito à vida, à dignidade e à autonomia.

RESUMEN: Palabras-clave: Ortotanásia. Eutanasia. Suicidio asistido; Distanásia. Muerte. Dignidad. Autonomía. Vida. Derechos fundamentales.
El tema de la ortotanasia, muerte que ocurre en el tiempo cierto, viene tomando impulso en la actualidad, debido a una cultura de negación extremada de la finitud. Sumado a eso, los avances médico-tecnológicos pueden hacer con que el proceso de muerte suceda de modo injustificadamente lento y doloroso. Con el objetivo de promover una mejor comprensión del tema, que involucra cuestiones filosóficas, antropológicas, sociológicas, científicas, morales, éticas, religiosas, además de jurídicas, la investigación propone un amplio enfoque de la muerte en la actualidad, con el objeto del derecho de morir con dignidad no sea tratado bajo el punto de vista estrictamente jurídico. Partiendo de este examen interdisciplinar de la muerte, la investigación buscará delimitar situaciones y conceptos directamente relacionados al tema para que pueda ofrecer distinciones analíticas entre eutanasia, distanasia, suicidio asistido y ortotanasia, demostrando que, a la luz de los derechos fundamentales, esta última se presenta como una solución jurídica, ética y moralmente aceptable, al proporcionar la máxima concretización de los principios constitucionales involucrados en la materia: el derecho a la vida, a la dignidad y a la autonomía.


Introdução

A vontade de compreender o ser humano, a despeito de sua impossível tarefa, é a mola propulsora de inúmeros estudos na área acadêmica, com o estudo da ortotanásia aqui proposto não ocorreu de modo diverso. Antes de tudo foi preciso partir da compreensão de que o tema envolve o evento mais corriqueiro e, ao mesmo tempo, mais assustador da existência humana: a morte.
A morte não é apenas um evento jurídico abstratamente considerado, ao contrário, ela envolve questões antropológicas, filosóficas, psíquicas, biológicas, dentre outras. O presente estudo parte do entendimento de que devido a sua multiplicidade e, ao mesmo tempo, sua impossível verificação científica, a morte é algo que assusta o ser humano, e que deliberar sobre ela é um assunto interdisciplinar e não apenas jurídico.
A compreensão do ser humano como um ser-para-a-morte guiou todas as conclusões e proposições do presente artigo. Somado a tal constatação, encontra-se o fato de que os direitos fundamentais devem representar não apenas um argumento de defesa contra possíveis violações individuais, mas, antes de tudo, são valores por todos compartilhados e, portanto, dignos de proteção e garantia independentemente da vontade do sujeito de direitos.
A ortotanásia, entendida enquanto uma maneira de conduzir a vida na terminalidade de uma doença se apresenta como a solução ética e jurídica mais adequada a luz dos direitos fundamentais, uma vez que consegue ponderar o choque de princípios que existe tanto na decisão pela eutanásia quanto pela distanásia.
Sem a pretensão de ter encontrado soluções definitivas para os questionamentos sobre a terminalidade da vida, o presente estudo tem como finalidade buscar bases teóricas para fundamentar o entendimento de que a ortotanásia é uma atitude médica, ética e juridicamente viável, bem como demonstrar que existe, frente aos direitos fundamentais, um direito a uma morte digna, mas não um direito à escolha do momento da morte.

1. A Morte nas Sociedades Modernas Industrializadas

A morte é o pensamento impossível pois é inviável ao imaginário humano a representação do nada absoluto. Vários ramos do saber estão imbuídos no estudo da morte, porém, ela passa a largo do método científico tradicional. Não resta dúvida que é perfeitamente possível a representação do processo de morte, mas não o evento em si ou o que acontece após os momentos derradeiros de uma vida.
Os indivíduos que viveram até a idade média não tinham dúvidas sobre o que esperar após a extinção corporal: ou o paraíso divino ou o inferno demoníaco, a depender de suas ações durante a vida. Deus era a explicação para o inexplicável existir humano e as não-respostas eram solucionadas pelo pensamento no divino. Com o desencantamento do mundo e a secularização do pensamento proposta por Descartes, Deus foi retirado das explicações para o existir humano e em seu lugar foi deixada a angústia diante das incertezas existenciais.
Não resta dúvida que o fim do dogmatismo religioso foi de suma importância para o desenvolvimento material e racional do homem. Todavia, conforme ensina Rodrigues, "as noções mais importantes ao homem sobre a vida escapam inteiramente à ciência" , fazendo com que as não-respostas sejam vistas como um mistério não explicado. Não tendo meios de lidar com a miraculosidade de seu existir e tendo em vista que a ciência não responde aos questionamentos existenciais mais severos, o ser humano da modernidade necessitou buscar outras pontes de significação para o existir.
Deste modo, se o divino não pode ser mais chamado para responder ao desejo inconsciente de vida eterna, outras pontes de significação se tornaram necessárias a fim de garantir um mínimo de controle sobre o inexplicável existir humano. O ser humano frágil e mortal precisou encontrar meios de ver-se maior e mais independente do que realmente se apresentava na natureza e, para tanto, passou a fazer uso de ideologias de significação para a existência.
De acordo com Earp , estas ideologias podem ser divididas em três grandes classes: as sociais, as conformistas e as pessoais. No que se refere a influencia destas nas decisões de final de vida, não resta dúvida que a última tem uma importância sobremaneira destacada em relação às duas primeiras.
Aqueles que significam sua existência por meio de uma ideologia social enfatizam que a vida é sempre além do indivíduo. Ou seja, a preocupação com assuntos pessoais, quando se tem um mundo carente de pessoas de boa vontade é vista como algo ruim ou egoístico, onde o narcisismo e o individualismo são mostrados como os dois grandes vícios.
Não resta dúvida que este tipo de ideologia é uma boa aliada para o enfrentamento da finitude, uma vez que, ao ter objetivos altruísticos, o ser humano, além de conseguir colocar o castigo divino (caso ele exista) como algo fora de cogitação, seria exatamente o não-sofrimento pela própria extinção que faria com que vida do sujeito se mostrasse dotada de significado. Ao olhar apenas para os outros, o sujeito consegue esquecer-se e, neste caso, o esquecimento é bem valorado pela sociedade. Todavia, nunca é demasiado lembrar o clássico ensinamento kantiano de que todo valor da ação moral é perdido quando o outro é usado como meio para satisfação dos próprios desejos. Ao erigir outro ser humano a um meio útil de esquecer-se de si mesmo, em última instância não se busca nada além de uma satisfação pessoal.
Para outras pessoas não é o sentimento comunitário que deve significar o existir, mas sim a preocupação exacerbada com a própria existência. Não no sentido de torná-la melhor ou mais prazerosa, mas somente para evitar que a vida se apresente pior do que deveras já é. Fazem parte deste tipo de ideologias pessoas que tem um estado crônico de frustração e que a vida não significa nada além de uma luta constante para evitar os desgostos. Apóiam-se no argumento de que realidade e frustração são indissociáveis e que para viver seria preciso a completa extinção dos desejos, assim como um ser possuidor de uma capacidade incomum de resignação diante do sofrimento.
Esta é outra maneira interessante de lidar com a finitude, uma vez que se a vida é algo tão destituída de prazer ou satisfação, não significando nada além de sofrimento, a morte pode, inclusive, ser bem-vinda e até mesmo ansiada.
O grande problema é que os que aqui se encontram não conseguem visualizar nem a si nem aos outros. Concebem o mundo puramente como necessidade e não visualizam nenhuma possibilidade de realização social e pessoal no existir. Nas palavras de Kierkegaard, ao agir assim o indivíduo fica muito distante da compreensão de sua condição existencial, "o mais que consegue fazer, lamentando sua sorte, é aleitar o próprio egoísmo".
O terceiro e mais comum tipo de ideologia da modernidade industrializada são as pessoais. Aqui o grande projeto a ser desenvolvido pelo ser humano é a realização pessoal e o existir não implica em qualquer responsabilidade em relação aos demais membros sociais.
Todas as formas viciosas de individualidade podem ser inseridas neste contexto. Os que aqui se inserem não pensam na morte, pois encontraram meios de auto-atordoamento para garantir a sensação de imortalidade durante toda a vida, só deparando-se com sua inegociável finitude quando ela se apresenta de modo irreversível. Mais afeito ao tema a ser desenvolvido, o culto a juventude, o amor e o consumismo, são bons exemplos a serem apontados.
A vaidade sempre esteve presente no existir humano, mas o desejo de juventude que se apresenta hodiernamente é muito mais abrangente que o cuidado ordinário com o corpo. Ele é histérico e insaciável, pois o envelhecimento e a degradação não podem ficar aparentes nas rugas que o tempo irremediavelmente vai cunhando na pele: ainda que a idade não cesse de avançar, suas marcas devem ficar apagadas a fim de evitar um confronto desnecessário e antecipado com a morte.
Outro modo de atordoamento existencial é o consumismo complacente. Envolto em um movimento cultural que oferece todo meio de auto-atordoamento, o ser humano da sociedade moderna industrializada volta-se para o ter em detrimento do Ser.
O mundo consumista não tem como lidar com seres humanos capazes de valorar moralmente, portanto, o nada saber sobre si mesmo é quase que uma condição de existência do capitalismo consumista desenfreado. O "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates é enviado pelos modernos consumidores de volta para a sociedade helênica, pois conhecer a si mesmo implica em tomar consciência absoluta da efemeridade humana, o que nem de longe representa o desejo da modernidade consumista.
O consumo, antes destinado apenas aos bens materiais, acabou por ingressar na esfera afetiva dos seres humanos modernos. O ser humano visto como fim em si mesmo de Kant foi deixado de lado e o outro passou a ser concebido dentro da mesma lógica de descartabilidade de uma coisa. As relações pessoais, sejam sexuais ou românticas, quando vistas como uma ponte de significação para a existência, como um meio de se fundir com o infinito ou um modo de encontrar alívio para as não-respostas existenciais, faz com que uma relação leve necessariamente a outra e como a Don Juan, conduz o ser humano a uma busca que, em última instância, é a busca por si mesmo, por sua dimensão simbólica reduzida excessivamente pela filosofia ocidental.
De tudo o que foi dito até o presente momento uma conclusão é imperativa: o ser humano não se concebe como um ser finito, frágil e fadado à extinção. Seja por meio da religião ou das ideologias de significação para a existência, o sujeito busca a imortalidade. Não que o ser humano não saiba racionalmente que é mortal, ele sabe, contudo, como bem observa Heidegger, a morte é apresentada como algo que acontece, mas o indivíduo a representa de modo impessoal. Desta forma, não é o eu que morre, mas sim o alguém. Quando analisada a fala daqueles que concebem a morte, afirma o filósofo, ela é sempre colocada na perspectiva do "morre-se". E conclui afirmando que se "morre-se", o "eu" não morre, pois o impessoal é o "ninguém".
A olhos menos atentos poderia parecer que o que foi dito até o presente sobre a morte nada influencia as decisões de final de vida. Todavia, ao analisar de modo mais detido o assunto é possível compreender a importância das concepções de vida nas decisões de morte. Ao passar uma vida inteira negando sua condição de criatura e, consequentemente, de mortal, o ser humano não alcança instrumentos hábeis para o enfrentamento da terminalidade da vida. No campo jurídico isto se torna claro, principalmente, quando se passam a conceber direitos fundamentais como oponíveis erga omnes, independentemente do custo social da ação.

2. Diferença entre os Procedimentos de Final de Vida

A fim de demonstrar que há maneiras diversas de se tratar a vida quando uma doença se apresenta como terminal, aqui será feita uma diferenciação entre as maneiras pelas quais a vida pode ser conduzida em seus derradeiros momentos, buscando demonstrar que não raras vezes a escolha por um procedimento em detrimento a outro pode representar não apenas um desejo de mais vida ou de morte, mas uma incapacidade de lidar com a própria condição finita humana.
Etimologicamente ortotanásia é a junção do prefixo de ortós, no sentido de certo, correto com thánatos, morte. Assim, a ortotanásia se apresenta como a morte acontecida no tempo certo, sem abreviação ou prolongamento desmedido do processo vital.
Se por um lado os avanços tecnológicos experimentados pela medicina, principalmente a partir da segunda metade do século XX, trouxeram benefícios indizíveis ao ser humano, por outro lado também podem agregar ao processo de morte uma dose adicional de sofrimento, uma vez que, por meio de aparatos tecnológicos tornou-se possível manter vivo até mesmo um corpo já morto, apenas biologicamente ativo.
A distanásia, também chamada de obstinação ou futilidade terapêutica ou encarniçamento terapêutico, etimologicamente falando é a junção do prefixo dis, dificuldade e thánatos, morte. Seria uma morte lenta e com grande sofrimento. Aqui há o prolongamento inútil e obstinado de uma vida orgânica já fora de possibilidade, que não mais existiria, não fosse o uso indiscriminado da tecnologia médica.
Na distanásia a parte simbólica do indivíduo é deixada de lado em nome da preservação da vida orgânica. A vida é entendida como um bem absoluto e a saúde definida como ausência de doença e, tendo em vista que o objetivo da medicina é a cura da doença, todas as terapias são voltadas para a derrota da morte, ainda que ao custo do bem-estar global do indivíduo.
Conceitualmente, distanásia pode ser definida como a atitude voltada para o prolongamento da vida biológica, com o retardamento da morte pelo maior tempo possível, com a utilização de todos os meios (ordinários e extraordinários) , ainda que não exista esperança de cura e que o processo de morte já tenha se instalado de modo irreversível.
Não raramente os pedidos de eutanásia, que pode ser definida como a abreviação da vida, por meio de um procedimento ativo ou passivo, com a finalidade de pôr termo a dor ou ao sofrimento experimentado pelo doente, acontecem em virtude desta agonia desnecessária acrescida ao processo de morte proporcionada pelo uso avalorado da tecnologia à disposição. O cuidado dispensado ao enfermo e seus familiares foca-se unicamente em sua dimensão física, olvidando-se de que o ser humano é mais que um aglomerado de carbono ou funções biológicas. O tratamento obstinado, ao negar a condição de criatura do ser humano, tenta vencer a morte por meio da arte médica, o que traz uma profunda sensação de desamparo e fragilidade para o moribundo.
Na distanásia a vida é apresentada como um direito absoluto e valorada de modo mais positivo que os demais direitos possíveis de conflitarem na terminalidade, o que pode transformar o direito à vida em um fardo.
É perfeitamente compreensível que preso a uma cama de hospital geral, acometido por dores insuportáveis (mal paliadas) e tendo sua personalidade total fragmentada em virtude de um sofrimento não tratado, o doente não deseje outra coisa que não a morte. Não propriamente enquanto privação da vida, mas, sobretudo, como uma possibilidade de se libertar da dor e do sofrimento.
Muitas vezes, associado ao quadro acima descrito encontra-se o sujeito moderno incapaz de se conceber como mortal durante todo o existir. Que não fez outra coisa senão ser vítima do auto-entorpecimento, em detrimento ao auto-conhecimento. Quando a morte se apresenta ele não tem meios para lidar com sua própria extinção, uma vez que nunca se preparou para tal ocorrência.
A concepção de uma ética utitarista também é de suma importância para a compreensão dos pedidos para a procedimento eutanásico. O homo technologicus, imerso em seu fazer e sempre buscando lograr mais êxito em suas atividades, acaba considerando o moribundo um sujeito socialmente inútil e, ainda por cima, capaz de atrapalhar o seu próprio senso de utilidade. Também o próprio moribundo, se ignorou o Ser e voltou-se somente para o fazer, pode, neste momento, se convencer de que se não lhe é mais possível fazer, também é impossível Ser. Incapaz de voltar-se para sua subjetividade e se deparar com os limites da própria existência (que até então viveu como se não os houvesse), ele passa a desejar somente a morte e, de preferência, rápida e indolor.
Também faz parte do cenário de busca pela eutanásia a noção hedonista de que a vida só vale a pena ser vivida se adjetivada pelo prazer. A ausência de prazer experiencial acontecida nos momentos finais da existência faz com que o sujeito tenha a impressão de que sua vida já se extinguiu. O desejo imperioso de não sentir dor ou sofrimento e ter como meta única da existência a busca de prazer pode fazer com que o sujeito veja na eutanásia uma possibilidade de obtenção de prazer, ainda que desconhecido.
O suicídio medicamente assistido encontra-se muito próximo ao conceito de eutanásia, diferenciando-se, no entanto, no que se refere ao sujeito ativo do procedimento, que na eutanásia pode ser qualquer pessoa, enquanto no suicídio assistido o autor é sempre a vítima.
O que se apresenta nas decisões de final de vida da atualidade é a idéia de que nos extremos encontram-se as melhores respostas. De um lado a distanásia, que ao elevar a vida a um bem absoluto, despreza todos os demais e acaba por condenar o sujeito total a um processo de morte longo e agônico. E de outro, a eutanásia, que ao valorar de modo mais positivo a dignidade e a autonomia, acaba por desprezar o valor único havido em cada vida humana. O que se busca com a ortotanásia é alcançar o caminho do meio, onde todos os valores em choque são conciliados e satisfeitos ao máximo.
A ortotanásia não é um procedimento médico, como é o caso da eutanásia e da distanásia, mas tão-somente a aceitação de que há limites para inserção tecnológica na terminalidade da vida e que não fica bem à medicina o papel de protetora do ser humano contra sua própria finitude e das dores decorrentes desta constatação.
Na ortotanásia não há abreviação da vida e o processo de morte já deve ter se instalado de modo irreversível. Apesar de assemelhada à eutanásia passiva, a ortotanásia é essencialmente diversa, uma vez que (a) apesar de haver em ambas as hipóteses uma conduta omissiva, (b) no sentido de suspender um tratamento já proposto ou não administrá-lo, e de (c) haver a intenção desta omissão nos dois casos, a finalidade das condutas é completamente diversa.
Na eutanásia passiva o objetivo é o de abreviar a vida do enfermo com a omissão de tratamento considerado necessário para o caso (ordinário), já na ortotanásia a omissão só se refere aos tratamentos considerados inúteis, que não teriam outra finalidade que não a de prolongar uma vida biológica uma vez que o processo de morte já se encontra instalado. O que se busca com a omissão na ortotanásia é abrir possibilidade para paliação da dor e do sofrimento experimentados pelo moribundo em seus derradeiros momentos, evitando que terapias inúteis prolonguem de modo desmedido a agonia. A morte decorre da patologia previamente apresentada pelo enfermo e não da conduta omissiva.
Dolo, segundo Greco, é a "vontade livre e consciente de praticar uma conduta prevista no tipo penal incriminador". Faltando consciência ou vontade à ação não é possível falar em ocorrência de crime, a menos que a conduta tenha sido fruto da falta de um dever objetivo de cuidado, o que não acontece na ortotanásia e nem na eutanásia. Deste modo, o médico que, a pedido de seu paciente ou de familiares, deixa de aplicar ou suspende terapêutica extraordinária, que só teria por finalidade o prolongamento de um processo de morte já instalado, não age com dolo de matar. Antes pelo contrário, age com consciência humanitária e de acordo com a orientação da Organização Mundial de Saúde, para quem saúde deve ser compreendida como um conceito no qual o sujeito enfermo seja globalmente considerado. De acordo com Roxana Cardoso Borges , o médico só é obrigado a prolongar o processo de morte por meio dos tratamentos extraordinários se houver sido orientado por seu paciente a proceder desta forma.
A suma dos pontos anteriores, só é possível falar em ortotanásia quando (a) o processo de morte já tiver se instalado; (b) sendo necessário o consentimento do paciente ou de seus familiares; (c) não se deve buscar nem a abreviação da vida nem o prolongamento do processo de morte; (e) o que pode se dar tanto pela omissão quanto pela suspensão de tratamentos considerados extraordinários; (f) com a imediata inserção dos cuidados paliativos, visando aumentar a qualidade de vida do moribundo e de seus familiares, com atenção tanto para o alívio da dor quanto do sofrimento.



3. Direitos Fundamentais na Terminalidade da Vida

Nenhum ordenamento jurídico é desvinculado da noção de valor que, de acordo com Paupério , só encontra seu fundamento último no poder de uma liberdade que só se expande e se afirma plenamente quando estabelece fins. A despeito da pretensão racionalista positivista, nenhuma ciência se opera em um vazio axiológico. Se por razões várias a morte se tornou estranha ao ser humano e as crenças nas possibilidades da medicina se agigantaram a ponto de haver possibilidade de se "condenar" alguém à vida, é tomando como pressuposto de análise os direitos fundamentais que as soluções para os problemas de final de vida devem ser buscadas.
A liberdade e a autonomia, enquanto sua expressão, se tomadas como absolutas não conduzem a outra coisa que não a desagregação social e à impossibilidade de convívio das pluralidades. Quando a liberdade possibilita seu exercício por meio da autonomia, isto não significa que qualquer conteúdo das normas que o indivíduo dita pra si possa ser considerado válido.
No mesmo sentido, conceber a dignidade (que é conceito em constante construção) como sendo capaz de elidir a obrigatoriedade de proteção ao direito à vida ou então que em seu nome é também garantido o direito a uma morte digna (vista enquanto direito subjetivo) é interpretar os direitos fundamentais de modo míope, partindo do pressuposto de que qualquer conteúdo valorativo deve ser considerado válido, a despeito de trazer em si o germe da desagregação social.
A vida também não deve ser tomada como absoluta, sob pena de se condenar o sujeito simbólico a uma infinidade de procedimentos médicos que não são mais que tortura, tudo isso em nome de uma pretensa sacralidade desta.
Partindo do entendimento de que (a) saúde é o bem-estar global do enfermo, que inclui as dimensões biológica, psíquica, social, espiritual, etc; (b) que a tecnologia pode prolongar de modo desmedido um processo de morte já iniciado; (c) que o papel da medicina nem sempre é o de curar, uma vez que a efemeridade é marca da condição humana; seria perfeitamente possível oferecer à ortotanásia o papel de integradora dos direitos fundamentais possíveis de se chocar na terminalidade de uma doença.
A autonomia é garantida por meio do respeito aos desejos do paciente e de seus familiares, obviamente, desde que não colidentes com os direitos fundamentais e com o ordenamento jurídico. A dignidade trazida de volta ao processo de morte, não por meio da escolha do momento para sua ocorrência, mas sim pela inserção de cuidados genuínos e efetivos, no sentido de mitigar a dor e aliviar o sofrimento. Por fim, o completo respeito à vida, deixando que a morte aconteça no tempo certo, sem abreviações ou prolongamentos inúteis e agônicos.
O que se busca na ortotanásia é pensar no sujeito como portador de vida, autonomia e dignidade, todos direitos humanos e que, por fazerem parte de um mínimo ético a ser preservado por cada nação, devem ser satisfeitos ao máximo. Dignidade e autonomia não são voltadas para a escolha do melhor momento para a morte, elas são retrocedidas para o processo de morte, fazendo com que a vida não seja violada.
O reconhecimento da possibilidade jurídica da ortotanásia frente aos direitos humanos e da impossibilidade da eutanásia e da distanásia é fruto de um exercício no qual a humanidade não é deixada ao puro acaso ou às forças cegas da natureza, mas sim resultado de um juízo que tem como medida o intelecto, a vontade, a sensibilidade axiológica e a ética. Isso, partindo do pressuposto apresentado por Heidegger de que cada ser humano carrega em si a possibilidade de conhecer seu verdadeiro Ser e que a sociedade deve estar apta a responder de modo satisfatório quando as escolhas pessoais colocarem em risco a solidariedade e a continuidade social.
A solução apresentada pela ortotanásia não é sentimental, uma vez que nem mesmo os bons sentimentos podem ser parâmetros absolutos para o agir humano. A saída pela ortotanásia é normativa, correspondente a uma verdade objetiva das coisas. Os direitos humanos não são fruto do romantismo, mas sim resultado de uma evolução histórica e do reconhecimento de que alguns direitos encontram-se na própria base do pacto constitucional. Ainda que estes direitos possam vir a impedir que o sujeito atue da forma como melhor lhe convier, eles são preferíveis (e podem ser menos cruéis) que os sentimentos deixados à sua própria dialética.

Conclusão

A ortotanásia, entendida enquanto uma maneira de conduzir a vida na terminalidade de uma doença, foi apresentada como a solução ética e jurídica mais adequada a luz dos direitos fundamentais, uma vez que consegue ponderar o choque de princípios que existe tanto na decisão pela eutanásia quanto pela distanásia.
O direito a uma morte digna foi apresentado como fruto do reconhecimento do ser humano dotado de valor individual e, ao mesmo tempo, membro de uma comunidade universal, onde nenhum dos bens básicos é extinto em nome do exercício pleno de um direito fundamental em detrimento a outro.
Os direitos humanos surgem exatamente a partir da noção de que, por mais diferentes que sejam as perspectivas individuais ou de uma sociedade específica, sempre haverá valores por todos compartilhados e, portanto, em nome destes mesmos direitos humanos, se torna indefensável um pretenso direito de escolha do momento da morte, do mesmo modo que não seria correta a interpretação de que é obrigatório um prolongamento excessivo do processo de morte. Por esta razão, a ortotanásia se apresenta como a solução interpretativa mais coerente com os direitos humanos e fundamentais, ao trazer exatamente a noção de que a morte deve acontecer no tempo certo.

Bibliografía

ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Versão castellana de Ernesto Garzón Valdés. Madrid:Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002.
ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Prefácio de Jacob Pinheiro Goldberg. Tradução de Priscila Viana de Siqueira.Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
BARCELLOS, Ana Paula. Alguns parâmetros normativos para a ponderação constitucional. In:___A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Luís Roberto Barroso (Org). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.49-118.
BECKER, Ernest. A negação da morte: Uma abordagem psicológica sobre a finitude humana. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.
BOBBIO. Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de Personalidade e Autonomia Privada. São Paulo: Saraiva, 2007.
BURT, Robert. Los Riesgos del Suicidio com ayuda médica: primeras lecciones desde la experiencia americana. Revista Isonomía, n.09, out.1998. Disponível em <http://www.cervantesvirutal.com>. Acesso em 20 de nov. 2007.
CALIA, Reynaldo Gaspar. VIEIRA, Mário Sérgio Rossi. Incapacidade Física e Dor Crônica. In:___Dor: diagnóstico e tratamento. Antonio Carlos Camargo Andrade Filho (Edit.).São Paulo: Roca, 2001. p.63-74.
CALSAMIGLIA, Alberto. Sobre La Eutanásia. In:___Bioética y Derecho: fundamentos e problemas actuales. Rodolfo Vasquez. México: ITAM, 1999, p.151-75.
CARDOSO, Juraciara Vieira. Ortotanásia: o tempo certo da morte digna. Dissertação (mestrado em Direito). ? Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.
CARNEVALLI, Eduardo Castillo. Diez Años de Eutanásia em Holanda: uma valoración moral. Thesis ad Doctoratum in Sacra Theologia Totaliter Edita. Pontificia Universitas Sanct AE Crucis. Facultas Theologiae. Roma, 2003.
CASSORLA, Roosevelt Moisés Smeck. O Suicídio. Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro: Caderno de Saúde Pública, jan./mar., 1998. p.28-30.
COMPARATO. Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2007.
D´ASSUMPÇÃO. Evaldo Alves. Tanatologia. In:___Compêndio de Neuropsiquiatria Geriátrica. Almir Tavares (Coord.). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005. pp.517-534
DWORKIN, Ronald. O Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
EARP, Antônio Carlos de Sá. A angústia frente à morte: um estudo psicanalítico. Rio de Janeiro: Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, 1999.
FIGUEIREDO, Marco Túllio de Assis. Cuidados Paliativos: respeito, alívio e dignidade para o paciente. Revista Prática Hospitalar. Ano V. n. 27. maio./jun., 2003. p.17-22.
GOMES, Alexandre Travessoni. O Fundamento de Validade do Direito: Kant e Kelsen. 2ª ed., Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.
__________. MERLE, Jean-Christophe. A Moral e o Direito em Kant: ensaios analíticos. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007.
GRECO. Rogério. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2003.
GUEDES, Geraldo. Aspectos Éticos da Terminalidade. Palestra proferida no IV Congresso Mineiro de Geriatria e Gerontologia, em Ouro Preto, Minas Gerais, 29 set., 2007
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Vozes; São Paulo: Universitária São Francisco, 2006.
JUNGES, José Roque. Eutanásia. In:___Dicionário de Filosofia do Direito. Vicente de Paulo Barretto (Coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.302-08.
KIERKEGAARD, Sören. O Conceito de Angústia. Tradução de Eduardo Nunes Fonseca; Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 2007.
MARTIN, Leonard. Eutanásia e Distanásia. In:___Iniciação a Bioética. Sérgio Ibiapina Ferreira Costa, Volnei Garrafa, Gabriel Oselka (Coords.). Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. pp.171-191.
NOAL, Fernando Oliveira. As trocas simbólicas e o Tempo do Desaparecimento. Santa Catarina: Cadernos de Pesquisas Interdisciplinares em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, n.55, dez. 2005. p.02-11.
PAUPERIO, A. Machado. Introdução Axiológica ao Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
PESSINI, Léo. Distanásia: Até quando investir sem agredir? Revista de Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina. v.4, n.1, 1996. p.31-43.
______. Distanásia: algumas reflexões bioéticas a partir da realidade brasileira. In:___Tratado de Gerontologia. Matheus Papaléo (Org.). São Paulo: Atheneu, 2007. p.831-46.
PY, Ligia. TREIN, Franklin. Finitude e Infinitude: Dimensões do Tempo na Experiência do Envelhecimento. In:___Tratado de Geriatria e Gerontologia. Elizabete Viana de Freitas et al (Coords.) 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 2006. p.1353-61.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da Morte. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.
SÁ, Maria de Fátima Freire. O direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey. 2005.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana ? Parte I e II. In:___Dicionário de Filosofia do Direito. Vicente de Paulo Barretto. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.212-25.
______. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
SEBASTIÃO, Jurandir. Responsabilidade Médica: Civil, Criminal e Ética. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
SIQUEIRA. José Eduardo de. É um Direito Médico Suspender Tratamento? Revista Diálogo Médico. Ano 33. maio/jun. 2007. p.14.
SONTAG, Susan. Doença como metáfora. Aids e suas metáforas. Tradução Rubens Figueiredo; Paulo Henrique Brito. São Paulo: Companhia de Bolso. 2007.
VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da Eutanásia ao Prolongamento Artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005.