Orientações teóricas e práticas relativas à audiência preliminar destinada à composição dos danos nos Juizados Especiais Criminais

Por Thiago Amorim dos Reis Carvalho | 23/06/2009 | Direito

É certo que a Lei 9.099/95 buscou resgatar à seara criminal possível solução ao dano suportado pela vítima, em certas infrações penais (art. 61), de uma maneira muito mais célere do que a estabelecida para os procedimentos convencionais (comum ordinário e sumário). Assim, a etapa pré-processual do rito sumaríssimo popularmente conhecida como "audiência de conciliação" veio a enfatizar a atual postura da comunidade jurídica no anseio por uma eficaz reparação do prejuízo gerado pela prática criminosa.

De acordo com a lição de Capez (2005, p. 574), "a conciliação é gênero, do qual são espécies a composição e a transação". Entretanto, é de praxe a utilização do termo "conciliação" quando se faz alusão à audiência preliminar de tentativa de composição dos danos, realizada em juízo com a participação do Ministério Público e destinada, outrossim, a evitar o prosseguimento do feito com a propositura da ação penal.

Convém ressaltar que por solenidade preliminar, conforme dispõe o art. 72 da Lei 9.099/95, compreendem-se duas orientações: a primeira é referente à "composição dos danos" (transação, renúncia ou submissão – cf. Ada Pellegrini Grinover, 2005, p. 130) se possível; a outra consiste na "aceitação de proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade" (transação penal). Todavia, neste simples trabalho, discorrer-se-á tão-somente sobre a tentativa de composição dos danos em sede de Juizados Especiais Criminais estaduais.

Tratando-se, então, de delitos de ínfima lesividade (contravenções e crimes cuja pena máxima 'in abstrato' não ultrapasse a dois anos), nos casos de "ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação", individualizado o sujeito passivo do delito, abre-se, com o imediato recebimento do expediente inquisitorial (termo circunstanciado) pelo órgão judicante, a oportunidade para que os protagonistas do evento possam expressar sobre o ocorrido e, eventualmente, transigirem quanto aos seus interesses e direitos.

Na hipótese de restar exitosa a solenidade, "o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação" (parágrafo único do art. 74). Portanto, o referido ajuste, devidamente corroborado pelo magistrado, caso ele não tenha presidido o ato conciliatório, acarreta a extinção da punibilidade e, se não cumprido, poderá ser executado no juízo cível.

Consoante a orientação legal, na referida audiência deverão estar presentes "o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados" (art. 72). Todavia, a inexistência de uma estrutura adequada, por vezes, não permite que tal enunciado seja observado na íntegra: em diversas regiões os Juizados foram instalados sem as mínimas condições de funcionalidade; o quadro deficiente de representantes ministeriais não permite que haja um promotor de justiça de prontidão para o ato; há relatos no sentido de que até mesmo advogados deixaram de acompanhar as partes[1]. Tais ocorrências são moral e legalmente repudiáveis.

Expõe Ada Pellegrini Grinover (e outros) que

"[...] a transação civil, nos Juizados, está estritamente vinculada à transação penal, para a qual a atuação do defensor é indispensável. Ademais, nos casos de representação e queixa, a homologação do acordo civil corresponde à renúncia ao direito de exercê-las, sendo assim extintivo da punibilidade [...]. Por tudo isso, os advogados não poderiam mesmo ser dispensados." (GRINOVER, et al, 2005, p. 133)

Tal audiência deve ser como vista verdadeiro avanço no sistema processual penal brasileiro, em que: o autor do fato poderá ser beneficiado por não ter de ser submetido a uma prolongada tramitação de um processo-crime; a vítima poderá expor suas indignações e obter o ressarcimento ou a compensação na órbita civil, que, na maioria dos casos, é o que mais lhe interessa; a máquina do Judiciário não desgastará com a movimentação de um processo o que, além de representar uma redução nos custos, permitirá uma dedicação enfatizada aos casos de maior gravidade.

Não se pode olvidar da necessidade no aprimoramento daquelas pessoas destinadas ao exercício da atividade de conciliação. É, inclusive, comum destacar o despreparo do encarregado de presidir a cerimônia sob enfoque, principalmente em certas situações que exigem deste a incorporação da figura de um psicólogo, de um conselheiro, de um apaziguador etc.[2], para garantir um efetivo acordo entre as partes. Porém, tal situação não é capaz de expungir as virtudes advindas com a Lei 9.099/95. Deve-se trabalhar para a sua ideal execução e, neste aspecto, atividades de formação e atualização profissionais representam a via primordial para o escorreito exercício da tarefa de orientação conciliatória.

Nesta trilha de raciocínio, observa-se que a relevância prática da cerimônia de composição dos danos não depende, imediatamente, de eventuais alterações na legislação como dissertam alguns[3]. Por ora, impera a desejável execução plena de seus comandos normativos. Analogicamente, nesse mesmo sentido, Silva Júnior (2001, online), ao tratar sobre a violência doméstica e discorrer sobre a morosidade da realização da audiência preliminar de composição dos danos, afirma que:

"É esse desrespeito à Lei que precisa ser modificado: a audiência preliminar tem que ser realizada imediatamente e com tempo suficiente. A bandeira que deve ser desfraldada, portanto, não é a da modificação da Lei 9.099/95, mas a da sua concreta aplicação. Para começar: mais juízes nos juizados especiais criminais e criação de casas de abrigo, com a devida estrutura de segurança e assistência."

Vislumbradas as benesses do ato destinado à composição dos danos civis, se proveniente da aplicação integral da Lei por profissionais suficientemente habilitados, insta questionar: é admissível a tentativa de composição na hipótese de a conduta delitiva referir-se a enquadramento típico que demande a iniciativa da respectiva ação penal pelo Ministério Público de forma incondicionada? De início, pode-se registrar a existência de divergências doutrinárias.

"[...] ainda que de forma não totalmente pacificada, passou a dominar entendimentos de que não se admite a possibilidade de "composição entre as partes" nos delitos de ação penal pública incondicionada, os quais, tem na fase preliminar tão somente a possibilidade de transação." (CHIES, 2005, p. 207)

Apesar de todos aqueles avanços representados pela inovação trazida a lume em 1995, infere-se da leitura do art. 76 da Lei 9.099 ser inaceitável a designação de solenidade destinada à composição dos danos civis em casos de ação penal pública incondicionada. Em tais hipóteses apenas a transação penal torna-se possível na etapa pré-processual.

Em posição diametralmente oposta, Luiz Antônio Bogo Chies (2005, p. 207) menciona ser possível a realização de audiência preliminar para tentar a composição "entre as partes em todos os delitos de competência dos Juizados Especiais Criminais". Alude o renomado tratadista à incongruência gerada pela interpretação contrária, pois o delito de lesão corporal leve (de iniciativa pública condicionada – art. 88 da Lei 9.099/95) será passível de composição civil enquanto a figura prevista no art. 21 da Lei de Contravenções Penais (vias de fato), cuja menor severidade é patente, não comportaria a tentativa de composição.

Quiçá fosse realmente benéfica, em certas hipóteses de ação penal pública incondicionada, para o autor do fato e para a vítima (quando não se tratar de crimes vagos) a possibilidade da composição dos danos, contudo a lei é cristalina ao dizer que "tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta" (art. 76).

A solução para o paradoxo acima identificado pode ser dada por aplicação do princípio da razoabilidade. A ação é pública incondicionada à representação do ofendido ou de seu representante legal justamente por ter como objeto a proteção de um bem que apresenta, 'a priori', relevância maior para o Estado ou para a comunidade (corpo social), não deixando, então, ao arbítrio do indivíduo que suportou as conseqüências do delito[4] a iniciativa de propor ou "possibilitar" (como condição de procedibilidade) a propositura da respectiva ação penal[5].

Por conseguinte, equivocada está a orientação de que a contravenção de vias de fato demanda a publicidade incondicionada da ação penal. Ora, lesões corporais leves (art. 129, 'caput', do CP) e vias de fato (art. 21, LCP) possuem, no cerne, a mesma natureza e ofendem a "integridade física ou fisiopsíquica da pessoa[6]". Sendo a de maior gravidade (lesões leves) tratada como de interesse único do ofendido ou de seu representante legal para o desencadeamento de um processo-crime por intermédio da representação, vale dizer, a ação penal é pública condicionada (art. 88 da Lei 9.099/95), assim também deverá ser considerada a de menor lesividade, pois o contrário visivelmente agride a sensatez jurídica no trato da matéria (haveria tratamento desproporcional[7]). Portanto, aplicável o disposto no art. 74 da Lei dos Juizados Estaduais também quanto à referida contravenção penal.

Não se pode negar, pelos aludidos argumentos, a importância do instituto da audiência preliminar de tentativa de composição dos danos. Contudo, sua aplicação irrestrita às infrações de menor potencial ofensivo cuja ação penal é de iniciativa pública incondicionada à representação esbarra na própria Lei.

Vale lembrar que nesta etapa do procedimento não há processo, não há imposição estatal no sentido de obrigar os envolvidos a firmarem um acordo e não há pena. Como conseqüência, incogitável sustentar eventual inobservância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, bastando o amparo jurídico ofertado às partes por profissionais da advocacia.

Somente com a adequada estruturação física e funcional dos Juizados Criminais e demais órgãos adendos, acompanhada pelo preparo específico dos sujeitos atuantes (juiz, conciliador, promotor de justiça etc.), é que se poderá alcançar o êxito, ou ao menos a seriedade em sua busca, nas mediações laboradas em decorrência de um ilícito penal abrangido pela Lei 9.099/95.

Notas:

[1] Vide Wunderlich (2005, p. 41).

[2] "O juiz não é, não tem e via de regra não quer ter formação conciliatória". (WUNDERLICH, 2005, p. 38)

[3] Vide Azevedo (2005) e Chies (2005).

[4] "Certas objetividades jurídicas são de tal importância para o Estado que ele reserva a si a iniciativa do procedimento policial e da ação penal. São as hipóteses de crimes de ação penal pública". (JESUS, 2001, p. 660)

[5] Urge ressaltar que a vítima sempre poderá socorrer-se à via cível para ver-se ressarcida.

[6] A expressão foi extraída do comentário ao art. 129 do CP da obra de Delmanto (2000, p. 252).

[7] É desarrazoado considerar a ação penal pública incondicionada em toda e qualquer contravenção penal apenas por ser contravenção, isto é, ante a modalidade da infração e não em consideração ao bem juridicamente tutelado. Entretanto, esta foi a opção do legislador (art. 17 da LCP). Sobre o tema Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho, Antonio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes (2005, p. 228/229) prelecionam que a contravenção de vias de fato, "embora configure perigo de lesão ao bem jurídico integridade física, continua, no nosso modo de entender, sendo de ação penal pública incondicionada". Registram ainda os renomados autores que "apesar de tudo quanto acaba de ser afirmado, na jurisprudência apareceu corrente contrária, isto é, no sentido de que a contravenção de vias de fato, sendo um minus ou 'porque guarda uma relação de conteúdo e continente', exige representação [...]. Na atualidade o entendimento jurisprudencial predominante é no sentido do texto deste livro: contravenção de vias de fato é de ação penal pública incondicionada [...]".

Referências Bibliográficas:

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. O paradigma emergente em seu labirinto: notas para o aperfeiçoamento dos Juizados Especiais Criminais. In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (Orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 109-139, 2005.

BRASIL. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. In: EDITORA SARAIVA. Códigos Penal, Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, p. 676-686, 2005.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

CHIES, Luiz Antônio Bogo. Por uma utopia do possível! (pretensas contribuições a um projeto de reforma dos juizados especiais criminais). In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (Orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 185-213, 2005.

DELMANTO, Celso; et al. Código Penal Comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

GRINOVER, Ada Pellegrini; et al. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 5. ed. São Paulo: RT, 2005.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal - parte geral. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

SILVA JÚNIOR, Edison Miguel da. Violência doméstica e Lei nº 9.099/95. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2027>. Acesso em: 08 mai. 2006.

WUNDERLICH, Alexandre. A vítima no processo penal (impressões sobre o fracasso da Lei nº 9.099/95). In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (Orgs.). Novos diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 15-56, 2005.