OPULÊNCIA E INSALUBRIDADE:
Por Daniel Santos Carneiro | 18/09/2016 | HistóriaResumo
O presente artigo propõe-se a analisar a modernidade instaurada em Sobral a partir dos ciclos econômicos gado-algodão, bem como apresentar os acontecimentos, paralelos como as secas recorrentes, a insalubridade, o processo de higienização e seus impactos nas transformações do espaço urbano. Os jornais a Lucta e Correio da Semana são usados como fontes, permitindo assim estabelecer as relações entre os discursos de poder, industrialização, elitização/ marginalização e segmentação dos espaços e classes. Ambos os jornais são de cunhos distintos, proporcionando uma visão dinâmica na forma de abordagem e compreensão da modernidade e suas fragilidades na cidade de Sobral
1. INTRODUCÃO
O advento da modernidade fez surgir, de forma voraz, bruscas transformações nos meios econômicos, sociais e mentais. Desta forma, esta pesquisa propõe-se a discorrer sobre os impactos ocorridos entre o fim do séc. XIX e inicio do sec. XX na cidade de Sobral a partir do advento do ciclo econômico do algodão, onde se deu o impulso da economia, modernidade e ícones de poder. Compreendendo assim as transformações sociais e fragilidades de uma cidade que se impunha como um espaço moderno, em que se busca nivelar aos grandes centros irradiadores da modernidade, progresso e civilidade. A intenção desta pesquisa é discorrer sobre o outro lado do processo de modernização da cidade e apresentar as fragilidades do processo de limpeza e embelezamento instaurados na cidade de Sobral, discorrendo sobre as relações de fragilidade e poder, resistências e resignificados, o que conseqüentemente gera transformações atreladas às fatalidades como epidemias, intempéries climáticas, e medidas de higienização. Entende-se nesta pesquisa que a Santa Casa de Misericórdia de Sobral aparece como um ícone de medida salubre e moderna, o que nos faz entendela como o clímax da limpeza urbana. Nesse sentido, compreende-se a formação do espaço urbano da cidade de Sobral a partir da análise das relações entre insalubridade e modernização. Desta forma, não somente Sobral, mas as principais cidades modernas, a exemplo do Rio de Janeiro e Paris, por sua vez, eram alvos de surtos recorrentes de pestes, moradias insalubres, e da mesma forma, também iniciaram seus processos de limpeza, embelezamento e higienização. Sendo estas apresentadas na pesquisa como uma referência, e em particular referenciais para a cidade de Sobral.
2. UTOPIA E MODERNIDADE.
Um, dois ou dez! Não se sabe especificamente quantos o recente
moderno e citadino homem poderia ser ou representar. Ele deveria estar em
vários locais, na confusão das ruas, no anonimato da urbe, ou no vazio deixado
pela sede do novo, do moderno, que esmaga os ritos, o tempo e as relações
pessoais, reduzindo a vida e disciplinando o homem e seus costumes para o
trabalho, formando assim uma sociedade mergulhada na voracidade das
transformações urbanas, sociais e mentais.
Os novos bulevares permitiam ao tráfico fluir pelo centro da cidade
em mover-se em linha reta de um extremo ao outro. [...], além disso,
eles eliminariam as habitações miseráveis e abririam “espaços livres”
[…] estimulariam uma tremenda expansão de negócios locais, […]
por fim criariam longos e largos corredores através dos quais as
artilharias poderiam se mover.3 A partir do trecho citado, entendemos que as recentes classes sociais dividas entre burgueses e proletários, passavam por constantes contratempos. A locomoção era um grande problema uma vez que ainda não havia se regulamentado o exercício do trabalho na indústria e tão pouco um planejamento para tais transformações urbanas e trabalhistas. Se por um lado a cidade passou a contar com largos corredores para o tráfego de carros e artilharias. Por outro, os corredores não serviam para os pedestres, que se perdiam em meio à confusão no trânsito. Desta forma, entende-se que além da ausência de estrutura urbana, a mobilidade também era um grande problema que acometia a sociedade moderna, e seus problemas iam alem da expansão indiscriminada de moradias insalubres que despontavam tanto nas periferias como lado a lado com o glamour:
3
BERMAN Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a Aventura da Modernidade/
Marshall Bermans; Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Loriatti – São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. P.171
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Ao lado do brilho os detritos: as ruínas de uma dúzia de velhos
bairros os mais escuros, mais densos, mais deteriorados e mais
assustadores bairros da cidade, lar de dezenas de milhares de
parisienses – se amontoavam no chão. Para onde iria essa gente?4 A ausência de rede de água, esgoto e ventilação, dentre outros, tornaram-se fatores determinantes para o surgimento de moléstias que atacavam principalmente as pessoas provenientes da migração do campo para a cidade e conseqüentemente como forma de combate a esta pratica iniciavase paralelamente o processo de estruturação/higienização.
Paris era o centro radiante e referencial de modernidade, lá as coisas
aconteciam primeiro, lá a vida noturna era impulsionada pela modernidade,
pelo anonimato, pelo novo. Suas glórias e suas misérias se confundiam,
ansiedade e a confusão são adventos da modernidade, assim como as
transformações urbanas e o modernismo. A insalubridade na contramão
teimava em compartilhar o mesmo espaço reservado à pompa da vida
moderna, teimava em aparecer, contrariando o projeto oficial das elites
dominantes:
Em frente a um novo café, na esquina de um novo bulevar” o bulevar
estava “ainda entulhado de detritos” mas o café “ja exibia orgulhoso
seus infinitos esplendores”. O mais alto desses esplendores era um
facho de luz nova [...] os amantes são surpreendidos pelos olhares
de outras pessoas. Uma família de pobres vestidas com andrajos […]
e aqueles seis olhos contemplavam fixamente o novo café [...] como
isso é belo […] sua visão entre os dois mundos é sofrida [...]5
Conforme citado acima, o espaço moderno também era lugar das
contradições, das diferenças, da frieza. Um dos primeiros grandes impactos que o advento da modernidade trouxe não somente à Paris mas às demais cidades como Petersburgo, Nova Iorque, Rio de Janeiro, dentre outras, foi o crescimento acelerado das cidades, sua segmentação em classes sociais e a proliferação de moradias insalubres. Conforme o arquiteto Herbert Rocha6, em Sobral, a segmentação da sociedade se deu em primeiro plano pela divisão geográfica, compreendida entre o rio e a estrada de ferro, onde todos que estivessem fora destas fronteiras, eram considerados pobres habitantes dos arrebaldes da cidade. Além da divisão geográfica, espaços de convivência eram divididos conforme a cor do indivíduo, poder aquisitivo e grupo familiar:
De frente, estavam as duas alamedas da Praça do São João (onde
fica o Teatro do mesmo nome). Era a avenida dos ricos e dos pobres.
A dos ricos era a da Ema [...]. Percorrida pelas moças e rapazes ricos
e brancos, pertinho da Coluna onde se ouvia a amplificadora da
Radio Imperador. Ao lado situava-se a avenida dos pobres. Rapaz de
sociedade que ali fosse, geralmente atrás de cunhas [...], era mal
visto.7
Para melhor compreensão da Modernidade em Sobral, faz-se
necessário discorrer sobre outros centros referenciais de modernidade. Como
Rio de Janeiro, Paris e São Petersburgo, uma vez que o advento da
modernidade trouxe profundos impactos na organização social.
2.1 MODERNIDADE E HGIENIZAÇÃO NA CAPITAL IMPERIAL
A questão insalubre no Rio de Janeiro estava diretamente ligada à
fragilidade do Império Brasileiro, que culminaria com o advento da República, o
que nos faz entender que insalubridade e superpovoamento, não eram
simplesmente uma causa, mas uma conseqüência, da fragilidade do sistema
político, uma vez que dentro do projeto Republicano entra em cena a idéia de
modernização, onde a escravidão era uma prática que não condizia com tal
projeto. Conseqüentemente, as transformações urbanas e limpeza do espaço
6
ROCHA, Herbert. O Lado Esquerdo do Rio.- São Paulo: : Hucitec: Secretaria de
Desenvolvimento da Cultura e do Turismo, Sobral: Escola de Formação em Saúde da família
Visconde de Sabugosa, 2003.
7
COSTA, Lustosa da. Sobral que não Esqueço.Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.
192p. P.30
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urbano conforme discussão apresentada na obra de Sidney Chalhoub, estão
aliadas às mudanças na passagem do Império para a República, e aliança
entre setores político-sanitarista e construção civíl.
As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempre
foram e hão de ser a mais abundante causa de todas as sortes de
malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob o título
de – classes perigosas –; pois quando o mesmo vício não é
acompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmo
indivíduo constitui justo motivo de terror para a sociedade. O perigo
social cresce e torna-se de mais a mais ameaçador, à medida que o
pobre deteriora a sua condição pelo vício e, oque é pior, pela
ociosidade.8
A população negra e os chegados das demais regiões do Brasil e da
Europa, tendiam a amontoarem-se em moradias de péssimas condições de
higiene, os cortiços, o que vinha a comprometer não somente a saúde dos
moradores dos cortiços, mas principalmente oferecer riscos à elite carioca, daí
então a justificativa para a denominação de “classes perigosas”, um conceito
cunhado para distinguir os sujeitos desviantes da conduta padrão de
moralidade e trabalho. Como esclarece Chalhoub, tais habitantes tendiam a
serem vistos como agentes transmissores diretos de doenças infecciosas que
emanavam de seus corpos e do ar carregado dos seus aglomerados sociais.
Inúmeras medidas foram tomadas para barrar o avanço dos
cortiços, uma vez que os mesmo eram vistos como proliferadores de doenças.
Nesse sentido,
A destruição do cortiço mais famoso do Rio de Janeiro não foi um fato
isolado, e sim um evento no processo sistemático de perseguição a
esse tipo de moradia, o que vinha se intensificando desde meados da
década de 1870, mas que chegaria à histeria com o advento das
primeiras administrações republicanas9
8
CHALOUB, Sidney. Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São Paulo:
Companhia das Letras,1996. p.21
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