Onde você estava?

Por JOAQUIM SATURNINO DA SILVA | 27/01/2010 | Contos

Onde você estava?

Era impressionante o relacionamento dos empregados naquela empresa. Havia uma explícita demonstração de atenção e carinho entre todos. Não era apenas educação, era algo mais. À primeira vista, pareceu-me uma situação fictícia, superficial, mas à medida que eu conhecia melhor o ambiente, constatava que era real, e não apenas uma cortesia de fachada.

Intimamente, me perguntava se aquilo era realmente possível. Sempre acreditei que uma empresa assim, cujos funcionários agissem com interesses convergentes, era apenas o protótipo de um sonho administrativo imaginado por algum consultor.
André, o meu interlocutor, após desligar o telefone, conclui o relato dos seus objetivos. Havíamos conversado durante, mais ou menos, três horas. Ele me mostrou todo o funcionamento da fábrica, desde a entrada da matéria-prima até a saída dos produtos na expedição. Disse-lhe que já possuía os dados necessários para o estudo das suas necessidades, e me comprometi a apresentar um projeto que resolveria os problemas que ele havia me apresentado

Da confortável poltrona onde estava, observei através da enorme janela de vidro, o bem cuidado jardim, onde alguns beija-flores pairavam ora numa flor, ora noutra.
Voltei, acidentalmente, o meu olhar para uma enorme placa, fixada na parede que ficava atrás de André, onde havia uma inscrição em letras douradas, sobre um fundo de veludo marrom. As palavras eram:

"Você existe onde você está!"

- "Curiosa essa frase" , comentei.

André, que até então demonstrava alegria e otimismo em  tudo que fazia, deixou passar uma grande tristeza em sua fisionomia.

- "Ah, meu amigo, esta frase tem uma longa e triste história".

-  "Como assim?"

- "Você tem tempo para mais um dedo de prosa?”.

Sua voz estava embargada. E como o expediente para mim já estava no final, pois era a minha última visita do dia, pedi que me contasse tudo.
André começou o relato, que muito me impressionou. Disse que existiu um funcionário na empresa que, de certa maneira, era diretamente responsável pela forma de relacionamento de todo o pessoal.

Seu nome era Bernardo; ele trabalhava como encarregado de Vendas e, de certo modo, funcionava como o alter ego de todo mundo por ali.
Bernardo estava sempre disponível para uma conversa. Ouvia os problemas de todo mundo, desde os diretores até o porteiro. Tinha sempre a palavra certa ou o silêncio ideal. Centenas de clientes faziam a mesma coisa: tinham nele um confidente, um amigo que guardava segredos.

Todos, sem exceção, uma vez ou outra, contavam seus problemas para Bernardo. Durante mais de 15 anos, nunca alguém soube o conteúdo dos desabafos feitos a Bernardo. Ele era leal, sincero e, acima de tudo, discreto.

Num dia, no entanto, uma notícia caiu como uma bomba na cabeça dos funcionários da empresa e dos amigos: Bernardo se suicidara. Todos, sem exceção, ficaram aturdidos por um longo tempo com o fato. Ninguém conseguia entender como uma pessoa tão bem estruturada poderia cometer um ato destes. Investigaram de todas as formas, mas nada foi encontrado. Bernardo vivia com os pais, era um solteiro namorador, tinha 35 anos. Os pais nada tinham de novo para acrescentar na biografia de Bernardo. Todos os depoimentos convergiam para um único perfil: o de um indivíduo realizado profissionalmente, amável e sempre com uma palavra de apoio para os amigos.

Parecia possuir uma felicidade e um otimismo singulares. Enfim, nada indicava uma razão lógica ou um problema que pudesse tê-lo levado ao suicídio.
André relatou tudo visivelmente emocionado, e foi sem esconder esta emoção que ele continuou:

- "Bernardo era um mistério; sempre ouviu todo mundo, deu apoio aos colegas, mas em nenhum momento, que eu me recorde, eu soube ou ouvi algo sobre ele estar do outro lado destes diálogos, ou seja, que ele houvesse falado de um problema  dele da forma que falávamos os nossos para ele, como um desabafo, um implícito pedido de socorro. Ele nos ouvia e tudo parecia clarear, tomar forma, surgir uma solução. Eu mesmo jamais parei para perguntar, com real interesse, se estava tudo bem com ele. A gente sempre dizia aquele “Oi, tudo bem?” apenas como uma forma de saudação, sem imaginar que ele talvez tivesse algum problema e que também desejasse dividir isso com alguém. Na nossa mente sempre estava o NOSSO problema e o NOSSO interesse pessoal."

André respirou fundo e passou a mão direita pelo rosto. As lágrimas, que não chegaram a correr, deixaram os seus olhos mais brilhantes. Então, concluiu o seu relato:
- "Depois da inexplicável tragédia, mais ou menos uma semana depois, enquanto tentávamos viver o “E a vida continua...”, cada um de nós recebeu uma carta de Bernardo. Todas eram rigorosamente iguais. Palavras que soavam como um pedido de desculpas pelo definitivo ato. Não explicou nada, mas a sua última frase da carta foi, de certa forma, elucidativa. Dizia com todas as letras:
“Nunca se esqueça do mais importante: você existe onde você está.”
- "Foi daí, então, que veio esta frase?", perguntei, admirado, o óbvio.
- "Sim. Este amigo mudou muito a nossa maneira de viver e de conviver. Passamos a prestar mais atenção nas pessoas como pessoas realmente, e não apenas como alguém que está ao nosso lado somente como mais um. Hoje, existe um cuidado na nossa convivência na empresa e, por extensão, na nossa vida particular. De certa forma, tememos a existência de outros “Bernardos” pois, no fundo, todos nós sentimos uma certa culpa por omissão. Éramos amigos de mão única e não retribuíamos a atenção que recebíamos dele.

As pessoas são sempre pessoas: sentem, sofrem, choram, sorriem e, principalmente, estão vivas ao nosso lado, e de nada adiantará lamentarmos depois, num velório, quando for tarde demais.

Os outros merecem a mesma atenção que exigimos. Nada justifica a concentração da atenção em outro lugar ou em outro tempo quando alguém muito próximo pode estar precisando de nós, exatamente ali onde estamos, onde existimos".