Onde há poder, há perigo
Por Osorio de Vasconcellos | 06/03/2013 | CrônicasResumo: Depois de Foucault, é possível intervir na educação religiosa, sem mexer na religião.
Onde há poder, há perigo
O Estado é laico, isto é, não interfere nas práticas religiosas dos cidadãos. Embora esta proposição não seja totalmente verdadeira, haja vista, por exemplo, a presença do cristianismo no calendário oficial das datas santificadas, o fato é que, em termos de orientação religiosa, a autoridade constituída não força, nem negocia.
Dito de outro modo, no que respeita às práticas religiosas da população, o Estado tira férias, e adota uma atitude apolítica de observador distante, contemplativa, quase mística, que poderia definir-se como sábia, não fosse ela mesma insensata e irresponsável.
A favor da suposta sabedoria sopram as aspirações libertárias de quem, de boa fé, pratica uma religião, e os devaneios românticos daqueles cuja credulidade admite ser possível colocar em compartimentos estanques os mundos de César e de Deus.
A favor da insensatez e irresponsabilidade pesa a teoria das religiões. Não há religião sem poder. Poder exercido por uma autoridade.
Ora, onde há poder há perigo, sempre.
No mundo laico o perigo ronda o poder de todos os lados, imprimindo-lhe formas ora tirânicas, ora corruptas, ora grotescas. Mas o Estado vigia. As perversões não campeiam livremente.
No âmbito da religião, se bem que a crônica especializada, aqui e ali, traga a lume deformações típicas do mundo laico, o perigo maior mora na possibilidade de o poder tornar-se grotesco e permanecer grotesco ad infinitum, no vácuo da omissão estatal.
Por grotesco entendo aqui, aproveitando o gancho de Foucault, o poder formal conferido a um ministro religioso, cujas qualificações intrínsecas deviam contraindicar a investidura.
Neste ponto, situa-se o nó górdio da questão.
A orientação religiosa, se não for muito mais, é tão importante quanto a intelectual, a cargo da escola, e a moral e afetiva, a cargo da família.
A autoridade constituída não pode sob nenhum pretexto permitir a livre infiltração do grotesco no doutrinamento espiritual de nossas crianças.
Grotesco não é uma diatribe, mas “uma categoria de análise histórico-política”.
Quer dizer: depois de Foucault, é possível intervir na educação religiosa, sem mexer na religião. É possível meter a mão na cumbuca sem melar os dedos.