O voo do passarinho

Por Suzana Mouta R. de Lemos | 19/02/2012 | Crônicas

O VOO DO “PASSARINHO”

(Suzana Mouta Rodrigues de Lemos)

 

Existiu um homem que gostava de contar histórias. Na maioria delas, ele sempre era o herói, o personagem principal. Cresci ouvindo seus “causos” e sempre me deliciei em suas aventuras. Não tinha o Fundamental completo, mas sempre dominava qualquer assunto e sempre foi notado em sua jornada. Nasceu na humildade e na pobreza do nordeste e, desde cedo foi trabalhador. Saiu da casa dos pais ainda rapazote e, dentre todas as aventuras, a maior delas foi casar-se com um anjo, com quem constituiu uma família de seis filhos. Considero essa a aventura maior, pois somente por causa disso, ele veio para Roraima. Aqui, foi feirante, marreteiro, fornecedor. Nunca deixou de trabalhar e de tentar alcançar o melhor para sua família. Degustou, durante muitos invernos, o sabor lamacento da BR 174 e o prejuízo de perder tudo o que trazia de Manaus para vender aqui, por causa dos “cortes” que as chuvas causavam na estrada. Mas, nunca vi alguém tirar proveito da derrota como ele fazia. Foi num momento assim que surgiu a famosa Polpa de Frutas Passarinho. Com uma quantidade de cupuaçu sem mercado, ele resolveu transformar tudo em polpa e colocou a família todinha para cortar a fruta na tesoura, criando assim, o carro chefe da fábrica. Para entrar no mercado, foi difícil. Era como Davi e Golias. Onde entrava oferecendo o produto, logo era interrogado se sua polpa era Passarão, que, naquela época, dominava o comércio local. Cansado de tanto ouvir isso, batizou, naquele momento, sua polpa como Passarinho, no intuito de silenciar as desagradáveis perguntas. Naquele momento também, ele profetizou que, mesmo pequena, sua fábrica dominaria o mercado em qualidade e ele veria isso acontecer.

O homem que sempre dizia que acordava antes do sol. O homem que sempre dava a última palavra em todas as decisões. O homem que arquitetava ideias e dizia que suas ideias sempre eram as melhores e as mais corretas. O homem que sabia o cordel inteirinho de quando “Lampião chegou ao inferno” e ainda realizava toda uma interpretação ao cantá-lo. O homem que contava histórias, um dia deu-se enfraquecido pela doença e aceitou que ela o fosse vencendo porque ele priorizava outras coisas como fonte de sua felicidade. Assim, o homem foi isolando-se na sua Chácara Passarinho e muitas vezes lá ficou sozinho em meio a sua teimosia. É difícil entender, mas, o que para muitos era um tormento, um sofrimento, para ele era a paz e, mesmo fazendo o que não lhe era sadio, era assim que ele se sentia bem.

Na noite do dia oito de março, depois de contar várias histórias alegres e saudosas, o homem mais incrível que eu conheci, o meu herói de infância e o meu exemplo de vida, o meu querido e inesquecível pai, decidiu alçar um voo mais longo e o “Passarinho” bateu asas. Ele foi-se e aqui nos deixou com uma dor tão desconhecida que nos prende a respiração e transforma todo espaço num vazio. A única fonte de conforto que nós, os filhos do “Passarinho”, temos, é a presença do anjo que o acompanhou durante quase 46 anos de união e companheirismo, nossa mãe, que usou suas asas para nos confortar neste momento. Ela é o nosso refúgio e nosso consolo.

Um dia após nosso tão amado pai ter partido, estávamos os filhos e os netos ao redor de nossa mãe, numa tarde fria, triste, quando, de repente, no alto de um galho, um passarinho cantou um canto demorado, cheio de doçura e paz. Em silêncio, todos nós observamos o passarinho e, mesmo sem dizer uma palavra, todos ali buscaram compreender aquele canto como sendo uma certeza de que nosso pai estava num lugar bom, em paz. Depois de seu canto apaziguador, o passarinho, do alto do galho, levantou voo rumo ao azul infinito do céu e se foi, sumindo aos nossos olhos... Siga tranquilo, “Passarinho”, no seu voo rumo ao azul divino da Paz Eterna. Aqui, sentiremos sempre saudades suas, mas buscaremos sabedoria para compreender o seu momento de levantar voo e partir.

Homenagem póstuma a Vicente Mouta Rodrigues “Passarinho”