O VIRA LATA

Por Romano Dazzi | 08/10/2009 | Crônicas

 

CANE RANDAGIO – O VIRA-LATA

De Romano Dazzi

 

O dicionário é curto e grosso, sem piedade: “cachorro errante, vagabundo, vadio, sem dono , vira-lata”.  Puxa! parece até  coleção de xingações!

 

Esse pessoal dos dicionários é cruel;  e não só com os cachorros..

 

Eu nasci realmente sob uma má estrela.

Ultimo de uma ninhada de cinco, não tive chance de ficar bem alimentado na minha primeira infância.

O leite materno era disputado por cinco bocas famintas, mas só havia quatro bicos funcionando.

Eu era sempre empurrado para trás, ou acabava ficando embaixo de um dos meus irmãos e fiquei logo desnutrido.

O dono da cachorra tentou se livrar da matilha, e só manteve um filhote, porque as meninas da casa choraram muito.

Claro que não fui eu o escolhido. 

 

Resultado: fui jogado à rua, com  três de meus irmãos. 

Vocês não têm idéia do que é a rua, para um cachorro com uma semana de vida: caminhões, carros, bicicletas, todos correndo desembestados de um lado para outro,  fazendo questão de passar sobre a gente; buzinas, motores e uma barulheira assustadora por todo o lado;  moleques desocupados, correndo para pegar-nos, puxando-nos pelo rabo, levantando-nos pelas  patas de trás, abrindo-nos  a  boca a força; e gatos: gatos três ou quatro vezes maiores que nós, feios, ameaçadores, todos eriçados, só de nos ver e soprando e bufando de raiva..

 

Único refúgio, um canto da sarjeta, perto de algum bueiro; mas é um lugar para se morrer de fome, porque lá passa de tudo, mas não pára nada; quando a fome vinha, precisávamos sair, procurando alguma coisa, viva ou  morta, que servisse para forrar o estômago; uma verdadeira vida de cachorro.

 

Uns três dias depois, estava tão fraquinho que quase não enxergava mais. Numa dessas saídas desastradas, pus uma pata   fora de lugar,  escorreguei na guia e acabei numa escuridão  assustadora, lá em baixo, no meio de uma água suja.

Voltar, nem pensar: eu tinha caído pelo menos uns quatro metros.  Quando os olhos se acostumaram com a escuridão, me apareceram umas ratazanas enormes, assustadas, mais assustadas do que eu, mas mal encaradas, seres da pior espécie.

Eu bem que tentei ser amigável, abanando o rabo; não teve jeito; se não fugisse, elas acabariam comigo. 

Mas por que será que todos cismam com o meu rabo?

Bem , logo percebi por que elas estavam tão agitadas; tinha chovido muito, lá na cabeceira da galeria e havia um barulho surdo crescendo. Elas sabiam que logo viria a enxurrada. Eu não sabia de nada; deixei-me ficar num cantinho escuro, tentando imaginar como encher meu estômago, que roncava.

Nisto, a enxurrada chegou, inesperada, violenta, irresistível.

Depois de eu ter lutado para agüentar um pouco, finalmente ela me carregou. Por sorte, esta água que vinha era um pouco mais limpa.

Água corrente é sempre melhor que água parada; resvalei um pouco, nadei um pouco, afundei um pouco e voltei à tona.

Por fim, consegui me segurar num tijolo mais saliente.

Foi um milagre, um verdadeiro milagre; com a correnteza vieram chegando comidas: pão, sardinhas, macarrão, carne; estava tudo molhado, velho, até estragado, mas era comida. Comida! 

Passei mal o dia inteiro, depois do tanto que comi. 

Vinha tudo de um restaurante, que jogava os restos no esgoto. 

 

Agora, saciada a fome, eu precisava sair do buraco e enfrentar o mundo.

Não sei se era só por curiosidade; sei que sentia uma espécie de inquietação, que me empurrava para fora, para  frente, para a rua, com todos seus perigos e aflições.

Dizia para mim mesmo: posso sofrer, padecer, morrer, mas andando, vendo, ouvindo, xeretando, enfrentando situações; livre, independente, por minha conta;  e assim, acabei conseguindo subir por aquela garanta estreita e suja, até alcançar novamente a rua.

 

Devo estar bem feio, agora, bem acabado e estragadinho, depois de alguns meses de aventuras; passei por muitos apertos, mas aprendi a conseguir o que quero; tudo – ou quase tudo - aquilo de que preciso para sobreviver.

 

Não pertenço a um dono; não sou um cão arrogante, que é lavado e escovado semanalmente; um cão  que rosna e late porque está protegido por uma grade; um cão que recebeu de graça o seu próprio espaço, mas que não sabe procurar comida para si  e que, se o dono não o alimentar, morre de fome e de sede. 

 

Não sou um cão que corre atrás de qualquer  bola atirada por alguém e a traz de volta, satisfeito em servir, em se dobrar, só para conseguir um agrado, um ossinho, um carinho.

 

Sou um cão altivo.

Sou dono de mim mesmo; até quando fico andando com o rabo entre as pernas, morrendo de frio, enxotado por todos, sem teto, sem comida, sem rumo, sem salvação.

 

Ainda  assim, me sinto orgulhoso, em minha triste solidão, em minha valiosa independência.

 

Sou exatamente como dizem vocês: um cachorro errante, vagabundo, vadio, sem dono – um vira - lata; apenas uma coleção de xingações.  Mas sou EU.