O Vilarejo Enfermiço

Por Douglas Xavier | 24/07/2015 | Contos

O Vilarejo Enfermiço

                Há quem diga que o enfermiço e esquecido vilarejo chamado Dissesville era amaldiçoado. Havia outros que discordavam até mesmo da existência dele, mas garanto-lhes que estes eram os que mais temiam a veracidade da história.

                Trata-se de um lugar miserável, onde a mortalidade é mais elevada do que em qualquer outro canto. Pessoas morriam semanalmente por ali, mesmo sendo uma vila com pouco mais de 150 habitantes. Alguns morriam subitamente, outros muitos adoeciam lenta e severamente, até morrerem no leito, sem esperanças.

                Mas mesmo em um lugar onde a vida é tão ameaçada, Martin não se privava de ser um garoto feliz, junto de seu melhor amigo Dave. Os dois faziam sua algazarra e enchiam toda aquela vila semimorta de gritos semiloucos. Pulavam no lago com roupa e tudo, para depois entrarem em casa enlameados. Provocavam o ferreiro Jon Cant, riam da viúva extravagante Agatha, com sua cara de cavalo lotada de maquiagem que só contribuíam em deixa-la mais monstruosa.

                O único lugar onde aqueles dois traquinas não ousavam ir era o antigo casarão dos Jorkins; uma casa a muito desabitada, ou melhor “desabitada”, notaram as aspas? Onde a hera tomava conta da varanda, as janelas eram pregadas e muitas peças do telhado faltavam. Mas aquele casarão não era assustador por conta disso, antes fosse. Mas era por conta do caseiro, que até hoje trabalhava ali, “cuidando” da propriedade, sempre capinando o mesmo jardim por horas a fio. Era um velho de um olho cego e mudo, com uma cara sempre pálida e assombrada, como se já estivesse morto há muito tempo.

                Martin e Dave voltavam de sua caça a pássaros quando o diálogo se iniciou.

                — Quem será o dono daquela casa? — indagou Martin apontando.

                — Ora, os Jorkins é claro! — respondeu Dave, sempre sagaz.

                — E quem são os Jorkins, reverendo Dave? — retorquiu Martin irônico.

                — O pessoal sempre diz que eles moram por aqui, mas a casa ficou tão feia que eles não têm mais coragem de voltar.

                — Então o que diabos aquele caseiro continua fazendo ali?

                — E eu vou saber? — rosnou Dave — Ele é um louco! Basta sabermos isso.

                Martin pareceu matutar algo. Até que disse:

                — Que tal perguntarmos a velha Matilda sobre isso em? Ela sabe sobre tudo e todos...

                Dave concordou já alvoroçado com a perspectiva.

                A velha Matilda era a pessoa que os jovens mais gostavam; uma velhinha bondosa, que possuía mãos de fada gloriosas, que sempre produziam os melhores doces.

                Os garotos chegaram na casa da velha, que de prontidão, já ofereceu seus doces, sempre com um sorriso impecável no rosto emoldurado por seus cabelos grisalhos. Os meninos perguntaram:

                — Quem são os Jorkins donos do velho casarão ao lado do cemitério?

                A doce senhora sorriu antes de respondê-los.

                — Imagino que as crianças lembrem muito bem da viúva Agatha... O nome completo dela é Agatha Jorkins, e ele é legalmente dona do casarão.

                Os garotos fizeram uma careta ao lembrarem-se da horrível viúva. A velhota riu.

                — Mas... Por que ela não vai mais para casa? — perguntou Martin.

                — Ela enlouqueceu depois da morte de seu enfermo marido — respondeu Matilda — Nunca mais voltou ali...

                — E o caseiro maluco? — indagou Dave.

                — Aquele lá é o mais louco de todos, jovens. Era muito amigo de seu patrão e sofreu sua perda mais que todos. Não quero vê-los perto daquele homem, entenderam?

                — Então por que nos contou tudo isso? — quis saber Dave, sempre sagaz.

                — Achei que ficariam com medo dele e manteriam distância.

                — Medo? Claro que não! — exclamou Martin.

                — Então acho que tenho que lhes contar mais uma coisa para tocar vocês de lá.

                — Contar o quê? — dispararam os dois em uníssono.

                — Vejam por vocês mesmo, seus travessos. Olhem no cemitério ao lado do casarão, mas não se aproximem!

                Os garotos correram até o cemitério, e lá estava Sr. Gregor, o caseiro, cavando uma cova com um vigor assustador. Martin e Dave permaneceram ali, atrás de um arbusto, esperando Sr. Gregor ir embora. É claro que iriam entrar no cemitério! Diferente do que a velha havia recomendado. Eram os mais travessos.

                Quando o caseiro finalmente se foi, os dois se encaminharam cautelosamente para a cova aberta, assustando-se assim ao ver... As entranhas de Martin viraram água quando ele leu a lápide.

Sr. Gregor

1930 — 1996

                — Ele está cavando o próprio túmulo! — esganiçou-se Martin.

                — Não é só isso — comentou Dave, trêmulo, mas sempre sagaz — segundo a Lápide, ele já morreu há 10 anos... Estamos em 2006 cara!

                Assombrados, os dois saíram dali correndo. Foram param à margem do lago. E só depois de muito tempo tomando fôlego que um deles disse:

                — Tem coisa aí!

                — E nós vamos descobrir o que é — completou Martin.

                A pobre velhota Matilda errara ao achar que o medo manteria aqueles garotos afastados. Tudo o que aquele susto fez foi encorajá-los mais a investigar.

                Ao voltar para casa naquela tarde, Martin se surpreendeu ao se deparar com sua mãe, Mordane, de cama, enfermiça. Foi logo cuidá-la.

                Nos dias que se seguiram, Martin não pôde ir investigar o caso de Sr. Gregor e o casarão com Dave, pois estava cuidando da mãe, que graças a Deus, estava melhorando depois de umas semanas.

                Certo dia, um amigo de vizinhança bateu à porta de Martin, dizendo que Dave o chamou para visita-lo em sua casa e que era importante. A mãe de Martin já estava melhor, o que possibilitou ao garoto ir ver o amigo. Ao chegar à casa de Dave, Martin sentiu seus olhos marejarem ao se encontrar com o amigo, deitado em sua cama, tão branco, tão doente, tão péssimo. Ele não dizia nada, sua mãe dissera que ele perdera a voz.

                Dave se esticou com dificuldade e escreveu com seu garrancho em um papel sobre a cômoda ao lado da cama “o segredo é o casarão”. Após isso, não escreveu mais nada, nem se mexeu. Apenas morreu.

                A dor de ver o melhor amigo morto era absurda, cortante, monstruosa. Mas Martin tinha que descobrir quem fizera aquilo com ele; com certeza não era uma enfermidade comum, era uma maldição.

                Martin atravessou o vilarejo um dia depois, passou pelo ferreiro, mas não tinha Dave para provoca-lo. Passou pela viúva Agatha, que andava pela rua sem rumo, mas não tinha Dave para rir dela. Passou pela casa da velha Matilda, mas não foi capaz de pegar nenhum doce, estava sem seu amigo.

                Chegando à porta do casarão, sentiu medo de investigar, morreria como Dave se descobrisse o que ali havia... Provavelmente.

                Mas tinha que descobrir o que era aquilo. Por Dave. Então driblou o caseiro, que costumeiramente, capinava o jardim — era fácil passar despercebido por um meio cego — Entrou no casarão.

                Lá dentro era tão assombroso quanto por fora, havia poeira por todo canto, a madeira rangia numa sinfonia desmedida. A falta de luz dificultava tudo. Um dos degraus da escada se rompeu quando Martin pisou-lhe, o que o fez encolher, com medo de ter sido descoberto.

                No andar de cima achou um quarto, que era anormalmente limpo. Como se alguém mantivesse a limpeza do cômodo. Abaixo da janela por onde a claridade pálida do sol atravessava, havia uma escrivaninha, e sobre ela, um enorme livro de páginas amareladas e capa de couro. Martin sentiu seu estômago dar uma cambalhota ao ler o que estava escrito nele...

                Havia nomes naquelas páginas, nomes de todos os moradores de Dissesville, alguns escritos com tanta força que quase rasgavam a página. Martin sentiu o coração parar na boca quando percebeu que todos os nomes escritos mais fortemente eram nomes de pessoas que já haviam morrido. Dentre eles, Dave, o marido da viúva chamado Jorge, e, de repente, na ultima página, embaixo do nome de Mordane, sua mãe (que não estava escrito tão forte) o nome Martin começou a ser escrito, sozinho, como se ali houvesse uma caneta, mas não havia... Conforme o nome ia sendo escrito, diversas vezes, sempre um sobre o outro, Martin foi se sentido ruim, seus órgãos pareciam estar em chamas.

                Assustado, ele se virou para sair dali, pensando naquele maldito caseiro que matava pessoas com seu amaldiçoado livro. Mas então viu na porta do quarto, o nome “Agataha” escrito.

                Era ela a feiticeira amaldiçoada então; Aquela mulher monstruosa! Aquele vilarejo era enfermiço por conta dela...

                Martin de repente sentiu algo quente descer de seus olhos. Apalpou as maçãs do rosto. Era sangue. Tudo desvanecia e ele caiu no chão, enquanto seu nome continuava a ser escrito sem parar.

                Antes de morrer, Martin ainda viu a porta se abrir, uma idosa de sorriso bondoso entrou, olhando para ele. Então disse:

                — Adeus, maldita criança. 

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