O Vendedor de Passados, romance de José Eduardo Agualusa: um lugar de representação, memória e identidades culturais
Por Romilton Batista de Oliveira | 14/04/2011 | LiteraturaO Vendedor de Passados, romance de José Eduardo Agualusa: um lugar de representação, memória e identidades culturais
Romilton Batista de Oliveira
RESUMO
O presente artigo analisa a memória e, respectivamente a identidade no contexto pós-colonial africano, à luz da representação, a obra de José Eduardo Agualusa: O Vendedor de Passados. Teóricos como Nora (1993), Le Goff (2003), Hall (1990), Halbwachs (2006), entre outros, serão de suma importância na construção de um diálogo teórico consistente para afirmar através da pesquisa bibliográfica o processo metodológico interdisciplinar. Pretende-se estudar a concepção de sociedade, cultura e representação inseridas no cenário histórico-social das personagens presentes no romance, compreendendo como a literatura se comporta diante deste processo, levando em consideração o hibridismo cultural e a reconstrução de novas identidades. O período pós-colonial traz à tona a problemática da diáspora através da personagem que pra viver em Angola necessitou de uma nova identidade para ser aceito na nova sociedade angolana, José Buchmann. As personagens do romance são envolvidas numa trama que nos remete à reconstrução da memória através da lembrança de fatos ocorridos no passado, interagindo em torno de um imaginário social e simbólico. A ficção apresentada por Agualusa representa simbolicamente a sociedade angolana, que por sua vez passa a representar todos os países que passaram por esse processo de descolonização.
Palavras-chave: Literatura; Memória; Identidade; Representação; Angola.
1 INTRODUÇÃO
Pensar a literatura é ainda, e cada vez mais, pensar a questão da identidade. Essa questão que já ocupara importante espaço na primeira metade do século, com o avanço dos nacionalismos e, também, com o fenômeno global de dissolução dos impérios coloniais europeus, que se seguiu à Segunda Guerra Mundial e que se configura o ciclo descolonizador, e que se renova nas últimas décadas do século XX.
A identidade de uma nação passa a relacionar-se a uma série de elementos que vão da língua à tradição, passando pelos mitos, sistemas de governo, crença, arte, literatura, etc., passado e presente, mesmo e outro, não sendo, portanto, um fenômeno fixo e isolado. É a crise de identidade que termina colocando em risco as estruturas e os processos centrais das sociedades, abalando a velha estabilidade no mundo social.
No último e neste século, o fenômeno se repete, a literatura, tomada como expressão simbólica, produto da cultura e reinterveniente na cultura e na história representa foco de resistência. Ocorre, entretanto, que a demografia dos novos tempos, da globalização, é a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora cultural e política, os grandes deslocamentos sociais. Ou seja, cada vez mais, as culturas "nacionais" estão sendo produzidas a partir da perspectiva de minorias destituídas, com a pluralização de culturas e identidades nacionais interligadas.
Sendo assim, pretende-se analisar a obra O Vendedor de Passados, do escritor angolano José E. Agualusa, focalizando a reconstrução da identidade através de uma memória, relacionado com a questão da representação cultural pós-colonial africana.
Este estudo é de suma importância por entendermos que boa parte da pesquisa acadêmica brasileira tem se voltado para a problemática dos países de cultura e língua lusófonas, rompendo com o antigo centramento, detentor de um pensamento cartesiano iluminista de sujeito, portador de uma definição fixa, pronta e elaborada num processo contínuo do conhecimento.
A partir desta ruptura com o antigo paradigma, leis e políticas públicas são implementadas em diversos países mediante às exigências da Globalização, escritores, teóricos e romancistas, entre outros, passam a ressignificar seus discursos e passam a produzir novos discursos, novas narrativas inseridas nesta nova realidade. As vozes que foram silenciadas e marginalizadas passam a ocupar o debate acadêmico. A diferença, a alteridade, o outro, a heterogeneidade, o hibridismo cultural passam a ser as novas categorias teóricas ou conceitos-chaves da nova realidade local e global.
Conhecer e refletir sobre a obra O Vendedor de Passados, de J. E. Agualusa é uma forma de re-pensar os currículos e as práticas nas escolas brasileiras acerca de problemas que foram descartados por nossa sociedade. Esta pesquisa, enfim, está alicerçado de componentes culturais interdisciplinares que adentra no espaço literário, realizando um dos grandes objetivos da literatura ? o de ser um lugar de construção de identidades, um lugar dialogizante, um lugar interdisciplinar.
2 ANGOLA PÓS-GUERRA: História, literatura e representação cultural
O ambiente pós-colonial em Angola implicou uma revisão significativa dos valores da tradição em perspectiva com uma memória violenta, do passado recente. À literatura angolana contemporânea cabe, portanto, significar os registros do passado, interrogando na sociedade os valores que devem ser priorizados. Com a sua ficção, José Eduardo Agualusa leva a efeito este processo, ressignificando o presente a partir de um novo paradigma.
No romance o escritor focaliza a memória política em Angola e critica as principais características da sociedade emergente no contexto pós-independência.
Com a decadência e fim do império colonial e a busca por parte dos africanos pelo poder, às vésperas da Revolução dos Cravos, um clima tenso de violência exacerbada se instaurou nos territórios africanos tornando insustentável a permanência de milhões de portugueses neste lugar.
Em geral a propagação da Guerra Fria nos territórios angolanos prende-se ao fato de o MPLA ser financiado pelos países comunistas e a UNITA pela OTAN (com forte atuação norte-americana) e África do Sul.
Dia 15 de janeiro de 1975, a FNLA, o MPLA e a UNITA assinam os Acordos de Alvor que consagram a independência de Angola. Aí, os três movimentos decidem instaurar um regime transitório que duraria 11 meses e a independência nacional seria declarada no fim deste período, depois de eleições democráticas.
Angola é uma Nação que busca afirmar-se como tal, depois de anos de colonização, ou como afirma Artur Carlos Maurício dos Santos ? Pepetela (1990, p. 471)
despojados que fomos de nossa História por séculos de obscurantismo, muitas vezes nos sonhando iguais aos outros, mas sempre temerosos da comparação, nada igualava as tradições da Europa a que tínhamos que ficar para sempre agradecidos porque das trevas nos tirou, quando afinal as trevas vinham de lá e nos escondiam de nós próprios, órfãos de passado...
Desta forma, desconstrói-se o discurso hegemônico que colocava os portugueses como "bonzinhos", heróis e "salvadores" de uma "raça", sendo os africanos os únicos prejudicados por exata falsa verdade.
O romance O Vendedor de Passados é narrado por um réptil (uma osga), apelidada por seu dono, Félix Ventura, de Eulálio. Félix Ventura, o vendedor de passados, vende os seus produtos para os indivíduos da sociedade angolana emergente que o procura desejando esquecer o passado, construindo um outro, reordenando o presente para legitimar o futuro.
No momento em que Ventura opta (mediante o dinheiro deixado pelo estranho que posteriormente se tornaria seu cliente) ser falsário, Agualusa aponta para um sujeito que se esconde atrás de algumas máscaras da sociedade emergente de Angola, que mediante o contexto social acabavam se corrompendo em nome da sobrevivência.
A personagem Félix Ventura, seduzido pela quantia de dinheiro ? dez mil dólares ?, perturba-se pela crise de consciência que se instala. Isto vem confirmar a crise de representação que o povo angolano estava a passar. Conforme Goffmam (2005, p. 222-223)
As rupturas na representação por conseguinte têm conseqüências em três níveis de abstração: personalidade, interação e estrutura social. Embora a probabilidade de ruptura varie amplamente de interação para interação, e conquanto a importância social de prováveis rupturas varie de uma interação para outra, ainda assim parece não haver interação na qual os participantes não tenham uma apreciável probabilidade de ficar ligeiramente embaraçados ou uma ligeira probabilidade de ficar profundamente humilhados. A vida pode não ter muito de semelhante a um jogo, mas a interação tem. Além disso, na medida em que os indivíduos fazem esforços para evitar rupturas ou para corrigir as que não puderem ser evitadas, estes esforços também terão conseqüências simultâneas nos três níveis.
O autor mostra, desta forma, que o homem em sociedade sempre estará interagindo com situações embaraçosas, rompendo ou não com o sentido de representação que possui, resultando num processo de crise de identidade.
Entende-se, desta forma, que, com o fim do período colonial em Angola, a luta, antes por liberdade, passou a ser por poder entre os iguais. A libertação de Angola passou a ser usada como uma máscara que justificaria a luta de angolanos contra angolanos.
No capítulo do romance "Um barco cheio de vozes" percebe-se que Agualusa trás à tona os dois momentos históricos que fazem parte da memória e de sua respectiva representatividade e das mudanças ocorridas através da história:
[...] todos os meus dias são inúteis, eu os passeio, ainda hoje desperta palmas e gargalhadas entre o magro círculo de antigos funcionários coloniais que, nas tardes exânimes da gloriosa Cervejaria Biker, persistem em iludir a morte, jogando cartas e contando casos. Fausto almoçava em casa, dormia a sesta, e depois sentava-se à varanda, a fruir a fresca brisa da tarde. Naquela época, antes da Independência, ainda não havia o muro alto, a separar o jardim do passeio e o portão estava sempre aberto. Aos clientes bastava galgar um lance de escadas para ter acesso livre aos livros, pilhas e pilhas deles, dispostos ao acaso no forte soalho do salão.
(AGUALUSA, 2006, p. 25-26)
Constata-se, assim, que a personagem do romance Fausto Bendito Ventura (pai de Félix Ventura) constrói a memória entre os dois momentos históricos (o colonial e o pós-colonial), focalizando a construção de uma identidade fixa, tranqüila, sem fragmentação. O muro é o símbolo que representa um divisor de memória, de histórias que se cruzam, da "harmonia" e "equilíbrio" em que vivia o povo angolano, antes da guerra.
A história precisa se ancorar na memória, esta sobrevive de lugares. São, então, os lugares, a manifestação da memória. O romance, torna-se, então um lugar de memória, assim como o muro também o é, conforme o que Nora (1992, p. 7, 21. 25, 27) ratifica:
A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular de nossa história. Momento de articulação onde a consciência da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória.
[...] São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivo, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica.
[...] A memória pendura em lugares, como a história em acontecimentos.
[...] o lugar de memória é um lugar duplo: um lugar de excesso,, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações.
Entendemos, desta forma, que a obra literária em análise é um lugar de memória nos três sentidos da palavra: material, funcional e simbólico. Material por registrar a demografia de um lugar, funcional por se tratar de uma hipótese que nos remete à transmissão da cristalização da lembrança, e simbólica por estar relacionada a uma experiência vivida, ao acontecimento. O Vendedor de Passados é um lugar híbrido, de representação do tempo e espaço, da construção e desconstrução da memória, rompendo com antigas identidades e reincorporando às velhas identidades novas , desconstruindo o discurso dominante e hegemônico que privilegiava uma única identidade e descartava as demais.
3 MEMÓRIA E ESQUECIMENTO
A pós-modernidade sugere que a linguagem em que qualquer forma de representação opera não pode escapar a contaminação ideológica. Conforme Hutcheon (1991, p. 227-228), citado por Eagleton "todas as práticas sociais existem na ideologia e por meio da ideologia e, como tal, a ideologia passa a significar ?as formas nas quais aquilo que dizemos e em que acreditamos se liga à estrutura de poder da sociedade em que vivemos?". Estamos envolvidos de representação. Estamos a todo momento representando, descentrando a posição de indivíduos para a posição de sujeitos que entram em cena representacional. Isto é o que sucede na vida das personagens do romance de José Eduardo Agualusa. Em um dado momento da história o Ministro procura por Félix Ventura, pois precisava escrever um diário, e o vendedor de passados deu-lhe histórias magníficas, consistentes com a realidade da classe dominante daquela época.
As relações humanas se interagem em torno de interesses que os sujeitos possuem nas relações de poder. Assim se comportou a personagem José Buchmann quando procurou por Félix para que este lhe "vendesse" um novo passado para justificar seu glorioso presente e futuro. Faltava-lhe apenas um passado consistente e que estivesse nos padrões de exigência da classe dominante.
Passamos a entender que a memória é um instrumento de poder. A memória na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Conforme Le Goff (2003, p. 471) a memória coletiva sofreu grandes transformações com a constituição das ciências sociais e desempenha um papel importante na interdisciplinaridade que tende a instalar-se entre elas, e mais ainda na literatura que, em si constitui como campo vasto de intertextualidade e interdisciplinaridade.
Assim sendo, podemos afirmar que a produção literária, em especial a africana angolana, busca representar, entre outras dimensões de seu papel interdisciplinar, essas transformações que sucedem à sociedade e a formação de um sentido próprio de escrever o homem e sua relação com o mundo.
Pela memória, o passado não só vem à tona, misturando-se com as percepções imediatas, como também se ?desloca?, ocupando o espaço todo da consciência. "A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 1979, 47). É o que sucede no capítulo "O amor, um crime" em sua parte final do romance O Vendedor de Passados quando Edmundo Barata dos Reis confessa sua verdadeira identidade, revelando fatos que aconteceram no passado:
[...] O nosso trabalho era separar as laranjas boas das laranjas podres. Esse tipo, o Gouveia, julgou que lá por ter nascido em Lisboa conseguia escapar. Telefonou ao cônsul de Portugal, senhor cônsul, sou português, estou escondido em tal parte, venha salvar-me por favor, e já agora á minha mulher, que é preta mas espera um filho meu. Ah! Ah! Sabe o que fez o cônsul português? Foi buscá-los aos dois e a seguir entregou-os nas minhas mãos. Ah! Ah! Agradeci-lhe muito ao cônsul, disse-lhe, o camarada é um genuíno revolucionário, dei-lhe um abraço forte, embora enojado, é claro, não pensem que eu não tenho escrúpulos, preferia ter-lhe cuspido na cara, mas dei-lhe um abraço, sim, despedi-me dele e depois fui interrogar a rapariga. Ela agüentou dois dias. Às tantas pariu ali mesmo, uma menininha, assim, deste tamanho, sangue, sangue, quando penso nisso o que vejo é sangue. [...] Sangue, pópilas!, sangue pra caralho, a rapariga, a tal da Marta, com dois olhos que pareciam luas, custa-me sonhá-la, e a bebê aos gritos, o cheiro à carne queimada. Ainda hoje, quando me deito e adormeço, sinto aquele cheiro da criança...
- Cale-se!
( AGUALUSA, 2006, p. 176-177 )
A lembrança é a sobrevivência do passado. O passado, conservando-se no espírito de cada ser humano aflora à consciência na forma de imagens-lembranças, guardadas pela memória individual reconstituído pelo canário coletivo, pela memória coletiva.
Ricoeur (2008) indaga acerca do esquecimento, se é possível ou não ser feliz afirmando que
o mal-estar quanto à justa atitude que se deve adotar perante os usos e abusos do esquecimento, principalmente na prática institucional, é finalmente um sintoma de uma incerteza tenaz que afeta a relação do esquecimento com o perdão no plano de sua estrutura profunda. A pergunta que não quer calar é essa ? É possível falar em memória feliz, existe algo como um esquecimento feliz?
(RICOEUR, 2008, p. 508)
No romance em análise é possível que isso aconteça. Vejamos a seguinte passagem que comprova tal proposição:
Vi-o chegar a esta casa com um extraordinário bigode de cavalheiro do século XIX, e um fato escuro, de corte antiquado, como se fosse estrangeiro a tudo. Vejo-o agora, dia sim, dia não, entrar pela porta de camisa de seda, em padrões coloridos, com a gargalhada larga e a alegre insolência dos naturais do país. [...] Olhando para o passado, contemplo-o daqui, como contemplaria uma larga tela colocada à minha frente, vejo que José Buchmann não é José Buchmann, e sim um estrangeiro a imitar José Buchmann. Porém, se fechar os olhos para o passado, se os vir agora, como se nunca o estivesse visto antes, não há como não acreditar nele ? aquele homem foi José Buchmann a vida inteira.
(AGUALUSA, 2006, p. 65)
A personagem acaba "reencarnando" uma nova identidade, representando ser um outro homem, adequado aos interesses da classe detentora do poder. O seu outro outro , sua outra identidade talvez esteja aos poucos sendo "sepultada" no esquecimento.
As lembranças dos seres humanos continuam permanecendo coletivas e nos são recordadas por outra, ainda que se trate de fatos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que tão somente foram vistos por nós. Conforme Halbwachs (2006, p. 30) "isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem".
4 A REPRESENTAÇÃO QUE SE CONSTRÓI ATRAVÉS DA MEMÓRIA RESSIGNIFICADA PELA LITERATURA
Toda sociedade conta com um sistema de representação cujo sentido traduz um sistema de crenças que torna legítimo a ordem social em vigor. Trata-se de uma complexa rede de sentidos que circula, cria e recria, instituindo-se na luta pela hegemonia. Não é difícil de entender que o imaginário institui verdades, no plano do conhecimento, muitas vezes o real aparece como mentiroso, inautêntico e até odioso. O imaginário social, como um sistema simbólico, reflete e se intrinca nas práticas sociais em que se constroem processos de entendimento, de crenças e de ritualizações. São, pois, processos de produção de sentidos que circulam na sociedade, permitindo a regulação de comportamentos, a identificação e a distribuição de papéis sociais. Isso é vivido de tal forma pelos agentes sociais que passa a representar para o grupo o sentido daquilo que é verdadeiro.
Reportando-se à obra literária em estudo, constatamos que a personagem José Buchmann busca adquirir uma nova identidade, submetendo-se ao imaginário social, imposto ao mesmo para que ele ocupe um lugar na sociedade de prestígio. Outra personagem que foi bem instruída por Félix Ventura foi o ministro que o procurou para ajudar-lhe na publicação de um livro de memórias intitulado "A vida verdadeira de um combatente", e mais uma vez Félix cria eventos para melhor contextualizar a vida de um homem público numa relação com o imaginário social que, certamente, representará mais uma identidade imaginária para um sujeito que precisa se identificar como sujeito participante da estrutura do poder dominante. Desta forma, instaura-se, o que Hall (2006, p. 7 e 9) chama de crise de identidade, afirmando que esta
é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social" [...] Esta perda de um ?sentido de si? estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento-descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos ? constitui uma crise de identidade para o indivíduo.
Na realidade todos os personagens do romance passam por esse processo ? crise de identidade. Isto se constata no momento em que eles procuram pelo vendedor de passados para que o mesmo o "venda" uma identidade mediada pela memória capaz de lhes proporcionar uma vida mais tranqüila e privilegiada, representando a ideologia que predomina na sociedade angolana.
A obra também aponta para a memória de Félix no capítulo intitulado "A chuva sobre a infância" (AGUALUSA, 2006, p. 94-95) quando o mesmo descreve cenas de sua infância:
Gosto de ouvir. Félix fala de sua infância como se realmente a tivesse vivido. Fecha os olhos. Sorri:
? Fecho os olhos e volto a ver os gafanhotos a caírem do céu. Os quissondes, formigas guerreiras, sabes?, os quissondes desciam da noite, de alguma porta da noite com acesso ao inferno, e multiplicavam-se, aos milhares, aos milhões, à medida que os matávamos. Lembro-me de despertar a tossir, a tossir muito, a tossir sufocado, os olhos a arder, em meio ao fumo da batalha. Fasto Bendito, o meu pai, em pijama, a carapinha russa toda desgrenhada, os pés nus enfiados dentro de uma bacia de água, a combater aquele mar de formigas com uma bomba de DDT. Fausto a gritar instruções para os criados por entre a fumaça. Eu ria num assombro de criança. Adormecia, sonhava com os quissondes, e quando acordava eles continuam ali, em meio ao fumo, àquele fumo acre de pequenas máquinas trituradoras, com a sua fúria cega e uma fome ancestral. [...] A Velha Esperança, que na época ainda não era tão velha assim, gritava, implorava, faça alguma coisa patrão! Os bichos estão a sofrer, e lembro-me do meu pai a armar a caçadeira, enquanto ela me arrastava para o quarto para que não assistisse àquilo. [...] Ainda hoje choro a morte de meus cães. Nem devia dizer isto, não sei se me compreenderás, mas choro mais pelos meus cães do que pelo meu pobre pai.
A descrição da memória remete-se às lembranças detectadas pela capacidade de uma memória individual que sobrevive da memória coletiva. Quando Félix narra um evento ocorrido na infância, ele trás à tona outros personagens que fizeram parte desta trama, comprovando, desta forma que a memória individual sobrevive da memória coletiva. Esta, por sua vez, trás à tona uma representação do ausente presente no presente.
Iser (1996, p. 17) afirma que
Os elementos presentes no texto são reforçados pelos que se ausentaram. Assim o elemento escolhido alcança uma posição perspectivística, que possibilita uma avaliação do que está presente no texto pelo que dele se ausenta. [...] E assim o mundo presente no texto é apontado pelo que se ausenta e o que se ausenta pode ser assinalado por esta presença.
Ainda Iser (1996, p. 13):
[...] a relação dupla da ficção com a realidade deveria ser substituída por uma relação tríplice. Como o texto ficcional contém elementos do real sem que se esgote na descrição deste real, então o seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingido, a preparação de um imaginário.
O autor reforça a ideia da presença de algo ausente, de algo que já aconteceu, constatando que a literatura retrata o mundo numa posição perspectivística, representacional por excelência, demonstrando, desta forma, que o real se faz presente no ficcional, e que a imaginação é o ponto de divergência entre ambos.
Conforme Ricoeur (2007, p. 248)
...será enfatizado o fato de que a representação no plano histórico não se limita a conferir uma roupagem verbal a um discurso cuja coerência estaria completa antes de sua entrada na literatura, mas que constitui propriamente uma operação que tem o privilégio de trazer à luz a visada referencial do discurso histórico.
Esta discussão em torno da representação é complexa, principalmente no tocante à memória e à identidade, pois essas três categorias teóricas estão em construção, e sua formação perpassa pelo viés interdisciplinar, o que torna ainda mais paradoxal esta análise. Podemos dar a nossa contribuição a partir da leitura desses múltiplos teóricos que se debruçam acerca destes conceitos-chaves que norteiam atualmente o campo literário, desconstruindo conceitos hegemônicos e tradicionais, transformando os velhos paradigmas de acordo com as novas exigências do mundo pós-moderno.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e aquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo que podemos nos tornar. A representação, compreendida como processo cultural estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.
A obra "O vendedor de passados" é constituída de personagens que são envolvidos por esse sistema simbólico que se serve do imaginário de identidade para se interagir e participar dos benefícios que a sociedade emergente angolana oferece. Os personagens são construções simbólicas apresentadas pela literatura agualusana marcada pela presença da memória de um passado fictício imaginado criativamente pelo vendedor de passados, Félix Ventura. Percebemos também a presença do fenômeno que muitos teóricos denominam de des-reterritorialização, fenômeno responsável pelo hibridismo cultural fortemente presente nesta narrativa. Neste sentido, José Buchmann (JB), entre outros personagens, passaram por este processo, como bem assinala o romance no momento em que JB afirma que sua filha é tal como o pai, nômada. Desta forma se confirma o que tanto declarou Stuart Hall (2006) concernente ao descentramento do sujeito. Este nomadismo (ou mesmo hibridismo, desterritorialização, diáspora ou outro nome que se aproxime desta problemática) foi o que mais marcou a vida dos personagens desta história que, certamente, a partir desses novos "atributos conceituais" pode ser denominada de obra pós-moderna por romper com os antigos padrões de cosntrução romanesca.
A história real de Angola irrompe, atravessa a superfície ficcional do texto de Agualusa, quebra a parede do silêncio e pelas representações das personagens, o escritor nos traz algumas das verdades dos fatos históricos do país onde nasceu. O romance termina com a morte de Eulálio, personagem que narrou a história. A Osga é o símbolo representante da guerra travada pelos angolanos, pois como os africanos morrem combatendo na guerra na defesa de seu país, ela, a osga, também morre na defesa de seu território juntamente com o seu invasor inimigo, o lacrau.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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