O UNIVERSO ONÍRICO DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ: A HIBRIDIZAÇÃO DE GÊNERO EM O AFOGADO MAIS BONITO DO MUNDO
Por Lilian Silva Salles | 12/11/2012 | LiteraturaA HIBRIDIZAÇÃO DE GÊNEROS: UMA COMPOSIÇÃO FICCIONAL.
“O que importa é perceber que a existência
mesma dessas obras, a sua proliferação,
a sua implantação na vida social colocam
em crise os conceitos tradicionais e
anteriores sobre o fenômeno artístico,
exigindo formulações mais adequadas à
nova sensibilidade que agora emerge.”
(Ariano Machado, pesquisador brasileiro)
À perspectiva da teoria da hibridização de gêneros, cujos pontos teóricos recaem no princípio de uma relação entre dois ou mais gêneros literários numa mesma obra ficcional, requer uma observação sutil, sobretudo por romper com a concepção tradicional e linear da pureza de gêneros literários; engendra-se, neste escrito, uma leitura de “ O afogado mais bonito do mundo” de Gabriel García Márquez.
O ponto nodal configura-se em mostrar a presença dos gêneros crônica, conto e o fantástico dentro da composição desta narrativa de Garcia Márquez: trazer à baila a tessitura que erige este texto ficcional como um universo onírico e fantástico marcado pela presença da verossimilhança e da inverossimilhança, onde o gênero híbrido se desenvolve por meio da “mistura” de outros gêneros literários, formando uma nova composição artística.
O UNIVERSO ONIRICO E FANTÁSTICO EM “O AFOGADO MAIS BONITO DO MUNDO”
“O conto é construído para revelar artificialmente
algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre
renovada de uma experiência única que nos
permite ver, sob a superfície opaca da vida,
uma verdade secreta. “A visão instantânea
que nos faz descobrir o desconhecido, não
numa remota terra incógnita, mas no próprio
coração do imediato”
( Rimbaud)
Utilizando-se de uma linguagem verbal que inibe as possíveis tensões permanentes entre o verossímil e o inverossímil, Gabriel García Márquez soube trazer à tona em “O afogado mais bonito do mundo” as relações viáveis entre a ficção e os conteúdos da realidade no qual o histórico, o antropológico, o psicológico e mesmo o social ganham a densidade da inverossimilhança sem a perda da verossimilhança.
Nota-se que neste conto do autor colombiano, a personagem “o afogado” é inserida de forma fantástica no povoado logo no início do texto:
“Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava pelo mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia. Quando, porém, encalhou na praia, tiraram-lhe os matos de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia por cima, e só então descobriram que era um afogado.
Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando-o e o desenterrando na areia, quando alguém os viu por acaso e deu o alarma no povoado.”[1]
(“O afogado mais bonito do mundo”, s.d., p.46,48)
O discurso narrativo de García Márquez transita entre o fantástico e o maravilhoso, à medida que se aproxima e distancia-se do real sem interrupção, sem questionamento, não há uma explicação: os personagens se encontram integrados num universo de ficção total onde o verossímil se assimila ao inverossímil numa completa coerência narrativa, criando o que se poderia chamar de uma verossimilhança interna:
“Quando o estenderam no chão viram que fora muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte estava na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que fosse o cadáver de um ser humano, porque sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e de lodo.”[2]
(“O afogado mais bonito do mundo”, s.d., p.48)
Com efeito, em “O afogado mais bonito do mundo” o narrador busca justificar o fato “sobrenatural” referente ao tamanho desproporcional do afogado, por intermédio de uma explicação bizarra: ”mas pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte estava na natureza de certos afogados”. Logo, a verossimilhança interna do maravilhoso se funde aos gêneros literários conto, crônica e fantástico proporcionando um novo gênero: o híbrido.
Nesse sentido, faz-se necessário o esclarecimento teórico sobre o que é um conto, uma crônica e o fantástico. Veja-se o que diz o escritor Júlio Cortázar sobre o conto:
“Para entender o caráter peculiar do conto costuma-se compara-lo com o romance, gênero muito mais popular e sobre o qual proliferam os preceitos. Afirma-se, por exemplo, que o romance se desenvolve no papel, e por isto no tempo de leitura, sem outros limites senão o esgotamento da matéria romanceada; o conto, por seu lado, parte da noção de limite, em primeiro lugar de limite físico, a ponto de passar a receber da França, quando passa de vinte páginas, o nome de nouvelle, gênero equilibrado entre o conto e o romance propriamente dito.”[3]
Dessa forma, pode-se visualizar que este texto de García Márquez remete à estrutura do conto, pois apresenta uma narrativa curta; Cortázar ao comparar o efeito do romance e do conto no leitor, afirma que o conto precisa causar um efeito de grande impacto desde o início:
“Um escritor argentino muito amigo do boxe me dizia que, no combate que se dá entre um texto apaixonante e seu leitor, o romance sempre ganha por pontos, ao passo que o conto precisa ganhar por nocaute. Isto é verdade, pois o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto um bom conto é incisivo, mordaz, sem quartel desde as primeiras frases.”[4]
Na verdade, a arquitetura do conto garciliano funciona como um “captador ao avesso” que busca se aproximar e atrair os diferentes elementos narrativos pertencentes a gêneros literários também distintos, produzindo assim, uma estrutura híbrida. Em outras palavras, esta narrativa sintoniza os fatos da vida cotidiana de um povoado para singulariza-lo dentro de um universo fantástico, cuja estrutura textual remete ao conto, no qual o espaço físico é limitado.
Veja-se o seguinte fragmento:
“O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedra sem flores, dispersas no fim de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber que nenhum faltava”
(“O afogado mais bonito do mundo”, s.d., p.48)
Desse modo, é comum na literatura Hispano-Americana de García Márquez a presença do espaço rural (ou de pequenos povoados), que representa uma problemática distinta, como por exemplo neste conto: o aparecimento de um afogado num povoado isolado. Do ponto de vista do material literário “O afogado mais bonito do mundo” apresenta como intertexto os mitos e as lendas locais (o vodu, as superstições), na qual perpassa o material das crônicas da conquista da América. Isso acontece porque Gabriel García Márquez está interessado num enfoque sistemático da linguagem e da ideologia do homem mestiço que caracteriza a América Latina:
“Somente, porém, quando acabaram de limpa-lo tiveram consciência da classe de homens que eram, e então ficaram sem respiração. Não só era o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem servido que jamais tinham visto, se não que, embora o estivessem vendo, não lhes cabia na imaginação”
(“O afogado mais bonito do mundo”, s.d., p.49)
Observa-se ainda a presença de uma “literatura de fundação” que recria na ficção a imagem de regiões perdidas no pântano, na ilha ou na floresta e, de certo modo, a partir delas procura reescrever criticamente a história da América em sua origem, veja-se o excerto:
“Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para perceber que já não estavam todos, nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente desde então, que suas casas teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para que a lembrança de Estevão pudesse andar por toda parte, sem bater nas trevas, e que ninguém se atravesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que pena, já morreu o bobo bonito, porque eles iam pintar as fachadas de cores alegres para eternizar a memória de Estevão, e iriam quebrar a espinha cavando mananciais nas pedras, e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos anos venturosos, os passageiros dos grandes navios despertem sufocados por um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar o seu castelo de proa, em uniforme astrolábico, estrela polar e sua enfiada de medalhas de guerra, e, apontando o promontório de rosas no horizonte do Caribe, disse em catorze línguas, olhem lá, onde o vento é agora tão manso que dorme de baixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem onde girar, sim, lá é o povoado de Estevão.”
(“O afogado mais bonito do mundo”, s.d., p.54-55)
Deduz-se assim, que o elemento fantástico introduzido no texto, desencadeia essa “literatura de fundação”: “...e iriam quebrar a espinha cavando mananciais nas pedras, e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos anos venturosos, os passageiros dos grandes navios despertem sufocados por um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar o seu castelo de proa, em uniforme astrolábico...”, pois o gênero fantástico se constrói a partir da laicização das crenças religiosas e das superstições, nesse sentido a narrativa apresenta um discurso fantástico, no qual torna-se sentido próprio o que seria uma expressão figurada:
“No verdadeiro fantástico, guarda-se sempre a possibilidade exterior formal de uma explicação simples dos fenômenos, mas ao mesmo tempo essa explicação é completamente privada de probabilidade interna. Todos os detalhes particulares devem ter um caráter cotidiano, mas considerados em seu conjunto eles devem indicar outro tipo de causalidade.”[5]
Com efeito, pode-se dizer que a literatura de García Márquez é híbrida por excelência: o conto, o fantástico e a crônica são gêneros distintos que se “coagulam” na narrativa.
Veja-se que em “O afogado mais bonito do mundo”, a crônica se manifesta entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e o descolorido de um acontecimento trivial, para a recriação do cotidiano por meio da fantasia e do onírico, uma vez que a narrativa está direcionada para o horizonte do conto, prima pela ênfase posta no acontecimento que prende a atenção do leitor, como mostra o fragmento:
“Alguns marinheiros que ouviram o choro a distância perderam a segurança do rumo, e se soube de um que se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto se disputavam o privilégio de leva-lo (o afogado) nos ombros, pelo declive íngreme das escarpas, homens e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da beleza do seu afogado.”
(“O afogado mais bonito do mundo”, s.d., p.54)
Por essa via, a estrutura da crônica é um desestrutura; a ambigüidade passa a ser sua lei, pois tanto os gêneros do fantástico, do conto, de um poema em prosa ou até mesmo um pequeno ensaio moldam-se simultaneamente dentro da arquitetura da crônica que emerge como uma nova composição literária.
A esse respeito diz o crítico literário Eduardo Portella:
“Se o exercício da crônica pode permitir ao prosador que seja também poeta, ao jornalista que seja filósofo ou místico, ao contador de casos que seja um historiador do cotidiano (...) aponta o crítico Eduardo Portella para o fato de as crônicas tomarem as mais variadas formas, podendo ser até fábulas, como algumas de Millôr Fernandes. E chama a atenção para a crônica enquanto um fazer literário.”[6]
Nuança importante de ressaltar é que em “O afogado mais bonito do mundo”, García Márquez oscila a ficção entre o fantástico e o maravilhoso, à medida que em certos momentos a narrativa não exclui a realidade, entretanto a ‘maravilha’ instaurando-a sem uma solução cabível e sem criar uma tensão ou questionamento, como demonstra o seguinte excerto:
“Os homens que o carregaram à casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto quanto um cavalo, e se disseram que talvez tivesse estado muito tempo à deriva e a água penetrara-lhe nos ossos.”
(“O afogado mais bonito do mundo”, s.d., p.48)
Nota-se no excerto que o leitor lerá sobre o ‘afogado’, e não estranhará, porque nesse mundo de ficção o espaço da vida e da morte são contíguos, sem causar nenhuma emoção, nem nos personagens, nem no leitor.
Em Unheimlich (p. 310-1), Freud distingue o fantástico do maravilhoso, e observa a liberdade de que dispõe o escritor imaginativo de escolher o seu mundo de representação, de modo que esse possa ou coincidir com as realidades que nos são familiares, ou afastar-se delas o quanto quiser. O leitor aceita as regras em todos os casos. Assim Freud explica:
“ O escritor criativo pode também escolher um cenário que, embora menos imaginário do que o dos contos de fada, ainda assim difere o mundo real por admitir seres espirituais superiores, tais como espíritos demoníacos ou fantasmas dos mortos. Na medida em que permanecem dentro do seu cenário de realidade poética, essas figuras perdem qualquer estranheza que possam possuir (...)
A situação altera-se tão logo o escritor pretenda mover-se no mundo da realidade comum. Nesse caso, ele aceita também a condição que operam para produzir sentimentos estranhos na vida real; e tudo o que teria um efeito estranho na realidade, o tem na sua história.”
Segundo o estudioso Todorov, a hesitação do leitor é a primeira condição para o fantástico, uma vez que o imaginário transposto para a literatura chama a atenção para os elementos inquietantes e inexplicáveis ao nível de uma lógica racional:
“O fantástico se define a partir do efeito de incerteza e da hesitação provocada no leitor face a um acontecimento sobrenatural.”[7]
É lícito dizer que, o gênero híbrido compõe-se dentro de um esquema processual, dando origem a uma nova composição artística que se modifica a cada nova estrutura.
Dessa forma, em “O afogado mais bonito do mundo”, García Márquez emprega elementos narrativos distintos para compor uma nova estrutura ficcional.
ÚLTIMAS PALAVRAS: A HIBRIDIZAÇÃO COMO UM MÉTODO DE COMPOSIÇÃO DIFERENCIADO
De tudo exposto, fica evidente que o método de composição em um texto literário se manifesta de diversas formas. Contudo a forma de composição na literatura de Gabriel García Márquez apresenta um tratamento particular, os valores sociais, psicológicos, morais entre outros, manifestam-se de uma forma singular e artística, no qual os elementos de composição dos gêneros literários como os que existem no conto, na crônica e no fantástico, tornam-se em “O afogado mais bonito do mundo” um universo onírico, integrado e analógico.
Enfim, a hibridização de gêneros dentro da obra literária estabelece um método de composição diferenciado, pois o gênero híbrido não constitui um fim em si mesmo. Ele só tem sentido quando estabelece uma combinação particular ( varia de obra para obra) entre os diferentes gêneros literários.
BIBLIOGRAFIA
CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.
______________.Obra Crítica/2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Ed. Cultrix, s.d.
PIGLIA, Ricardo. Formas Breves. São Paulo: Companhia das Letras, s.d.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.
RODRIGUES, Selma Calasans. O Fantástico. São Paulo: Ed. Ática, 1988.
MÁRQUEZ, Gabriel GARCÍA. “O afogado mais bonito do mundo”. In.: A incrível e triste história de Cândia Erêndia e sua avó desalmada. Rio de Janeiro: Record, s.d.
[1] Este fragmento do conto “O afogado mais bonito do mundo” pertence à obra A Incrível e triste história de Cândida Erêndia e sua avó desalmada.
[2] Ibid., p.48.
[3] Este fragmento está na Obra crítica/2 de Julio CORTÁZAR, no capítulo “Alguns aspectos do conto” ,1999, p. 350.
[4] Ibid., p. 351.
[5] TOMACHEVSKI. Thémastique. In: THEORIE de la littérature; textes des formalistes russes presentes par T. Todorov. Paris, Seuil, 1965. p. 288.
[6] Eduardo PORTELLA. Visão Prospectiva da Literatura Brasileira. In.: “Vocabulário técnico da literatura brasileira. 1979, p. 150.
[7] Essa é a tese de Tzvetan Todorov em Introdução à literatura fantástica, p. 188.