O ÚLTIMO SILÊNCIO

Por Paulo Valença | 28/07/2009 | Contos

1

Fora um adolescente retraído. Vivendo mais para si, do que para o mundo e, por isso mesmo, sofria muito. Não se adaptava ao mundo.

O pai olhava-o e, balançando a cabeça, sorria irônico e, com a sua franqueza natural:

- Já era para você se interessar por coisas mais práticas. Em sua idade, eu dava um duro danado! Não sabia o que era moleza. Você não liga para nada!

Ao lado, sua mãe buscava defendê-lo:

- Mas, ele ainda é muito novo.

O pai exaltava-se e, encarando-a:

- Que novo que nada! A vida não é brincadeira não. Falo, para o próprio bem dele. Não vê o outro que apesar de mais novo, se interessa por tudo?

Ele baixava a cabeça, contendo-se para não chorar. Humilhado, sentia-se deslocado, e continuava ouvindo a censura:

- Esse rapazinho irá sofrer muito futuramente. Escute o que estou dizendo, Mas... Cansei de falar. Pode até ser que eu esteja enganado, e ele se endireite. Sei não...

Grande, forte, erguia-se da mesa e em passos ligeiros ausentava-se da sala, cruzava o corredor e se ouvia a porta da frente bater, com a saída dele.

Permanecia cabisbaixo, com os olhos nublando-se... Prendendo-se. Suando. As costas das mãos frias. Por que era diferente do irmão, que era o seu oposto: expansivo, alegre, se destacando em tudo? Por quê?

- Não chore meu filho. O seu pai é assim mesmo. Mas, é porque ele se preocupa com os filhos, a família. Um dia, você o entenderá.

Alisando-lhe a cabeça em um afago, sua mãe prosseguia falando:

- Saia, vá dar umas voltinhas por aí.

Como um sonâmbulo levantava-se e devagar cruzava a sala, o corredor e, logo, ganhava a rua sem veículos ou pedestres, quieta. Afastava-se. A noite ainda nova. A igreja com as duas torres, com as aberturas nas quais os sinos se apresentava e a cruz entre ambas. O céu estrelado. O frio circulando, agradável. Que culpa cabia-lhe em ser calado, indiferente à vida, vivendo noutro mundo, sonhador? E, no futuro, sofreria tanto como o pai sentenciava? Dobrava a esquina. Adiante, a praça com as moças passeando de braços dados. Os rapazes em grupinhos. Os bancos com casais, e senhores encapotados palestrando. Uma risada alta, exagerada. E o pai conversando, esquecido da contrariedade, reentregado ao presente, vivendo-o.

Ele passava, evitando a praça, deparar-se com um conhecido. Curtindo o que sofria, dolorosamente consigo mesmo e, logo, encontrava-se defronte ao cinema Rex. Os cartazes dos próximos filmes. As fotografias. Os artistas em abraços de amantes. A figura bonita de Nyoca – "a rainha da selva!" – a moça que à semelhança de Tarzan, vivia na selva, lutando em defesa dos oprimidos, fazendo justiça. Como gostava de cinema! O cinema era o porto seguro à sua alma sensível, sonhadora. Pensativo, voltava a caminhar. Sem direção, levado pelas reflexões.

Depois, retornava a casa. E, calado como sempre, deitava-se. Na cama vizinha, o irmão dormia. Moreno. Afilado. Bonito. Diferente... Protegendo-se do frio, que crescera, enrolava-se.

No quarto conjugado, a mãe mexia-se na cama, insone. Pensando no filho problemático?

Sem tardar, a voz grossa enchia a casa:

- Marieta?

- Estou aqui, no quarto, Armando.

Os passos duros. A porta sendo aberta. As vozes sussurradas. O irmão ressonando. Alguém andando na calçada. Distante um cachorro latindo.Bem distante... Adormecia.

2

À cama, o corpo reduzido, de ossos furando a pele, o rosto enrugado, o nariz crescido, os olhos sem brilhos, a cabeleira cheia alva e, a voz também irreconhecível, sussurrada:

- É você, Fábio?

Como sempre, em silêncio, avizinha-se do leito.

Disforme pela doença, o rosto cadavérico vira-se, procurando-o. E o braço magro ergue-se e a mão trêmula busca, busca.

Ele entende e, como se temesse magoar essa mão aperta-a devagar e, sendo humano, sem mais se conter... Permite que as lágrimas lavem-lhe as faces frias.

Próxima, a velha – testemunha silenciosa da cena – apressada abandona o quarto e, no corredor, joga-se nos braços do outro filho, que lhe afaga os cabelos finos, branquinhos.

- Temos de ser forte, mamãe. Deus quis assim.

No quarto, a mão sem calor liberta a outra e, mais do que nunca, o silêncio interpõe-se entre ambos.

O último silêncio.