O Trigésimo Aniversário por uma Geografia Nova: Uma reflexão geográfica para a historiografia social crítica
Por Luciano Agra | 30/08/2009 | FilosofiaO que Geografia Humana? O que ela estuda? Muitas perguntas, muitas respostas. Podemos perceber que é um conceito polissêmico, abrangente, complexa, ou seja, este conceito está interligando a própria conceito historiográfico da geografia é que apresenta questões teóricas da Geografia que já receberam uma proposta de solução consistente à 30 anos permanecem vivas no discurso geográfico brasileiro, embora nenhuma crítica tenha sido feita às formulações de Milton Santos, e ninguém tenha feito uma proposta clara de retorno ao passado. As críticas feitas por Milton Santos à definição da Geografia como ciência de síntese, ou à pretensa interdisciplinaridade sem disciplinaridade desta disciplina permanecem ignoradas por parcela significativa da Geografia brasileira, que ainda parece tentada por aquele delírio, denunciado por Lucien Febvre em 1922, de que a Geografia comportaria todos os conhecimentos humanos. Na medida em que a preocupação com a posição da Geografia frente às demais ciências sociais, ou quanto ao objeto da disciplina permanecem ignoradas. Palavras – Chave: Geografia Humana – Historiografia – Conceitos. A Geografia Humana deve trabalhar apoiando-se sobre uma base territorial. Em todos os lugares onde vive o homem, seu modo de existência implica uma relação necessária entre ele e o substrato territorial. É precisamente a consideração deste laço territorial que diferencia a Geografia Humana da Sociologia. Os sociólogos têm tendência a perceber apenas os aspectos psicológicos dos grupamentos humanos, a esquecer as relações dos homens com a terra, a tratar do homem como se ele estivesse desligado da superfície terrestre. Albert Demangeon
Este estudo procurar analisar, contextualizar, intertextualizar, o que é a geografia humana? Isto significa dizer que a Geografia Humana é o estudo dos grupamentos humanos em suas relações com o meio geográfico. A expressão de meio geográfico é mais compreensiva que a de meio físico; ela engloba não somente as influências naturais que podem-se exercer, mas ainda uma influência que contribui para formar o meio geográfico, o ambiente total, a influência do próprio homem. No início de sua existência, a Humanidade foi certamente escrava, pela sua dependência da natureza. Dessa maneira, as obras humanas oriundas de todo o passado da Humanidade contribuem para constituir o meio, o ambiente, o meio geográfico que condiciona a vida dos homens. Assim, podemos adotar como definição da Geografia Humana o estudo das relações dos grupamentos humanos com o meio geográfico.Esta definição da Geografia Humana permite-nos conceber de maneira concreta qual é seu objeto e determinar os quadros e os limites. Ela compreende quatro grandes grupos de problemas que resultam precisamente das relações das sociedades humanas com o meio geográfico.
A Geografia, enquanto Ciência tem dois ramos principais, a geografia física e a geografia humana. Este artigoexamina a diferença fundamental entre ambas. Ao passo que a geografia física aborda todos os aspectos relacionados com o ambiente, a geografia humana trata questões muito mais sensíveis, tais como a capacidade do ser humano, enquanto individuo e em grupo se fundir com o meio em que vive e como certos processos se desenvolvem em tais grupos. Também analisa quão mais detalhadamente a geografia humana se ocupa de aspectos políticos, econômicos, sociais ou demográficos e com tudo o que esteja relacionado com a atividade humana e a sua envolvência num contexto geográfico.
Há mais de meio século, Demangeon afirmou que "a Geografia Humana é o estudo dos grupamentos humanos em suas relações com o meio geográfico". Sendo a expressão "meio geográfico" mais compreensiva que a de meio físico, pois, "[...] ela engloba não somente as influências naturais que podem-se exercer, mas ainda uma influência que contribui para formar o meio geográfico, o ambiente total, a influência do próprio homem". Haja vista, "[...] as obras humanas oriundas de todo passado da Humanidade contribuir]em para constituir o meio, o ambiente, o meio geográfico que condiciona a vida dos homens" (demangeon, 1982, p. 52 - 53). Podemos perceber que esse autor (1982, p. 54 a 57) ainda estabelece três princípios básicos, vale ressaltar: a) em Geografia Humana deve-se evitar os determinismos absolutos, as fatalidades, antes saber que tudo se trata de vontade humana; b) a Geografia Humana deve trabalhar apoiando-se sobre uma base territorial, sendo o solo o fundamento de qualquer sociedade, de qualquer homem; e c) para ser compreensiva e explicativa a Geografia deve encarar a evolução dos fatos, remontando ao passado, recorrendo à História, e não apenas ater-se à consideração do estado atual das coisas. É interessante assinalar que Milton Santos elucida as potencialidades e os deveres de um verdadeiro trabalho interdisciplinar, e diz que:
A interdisciplinaridade não é algo que diga respeito às disciplinas, mas à metadisciplina. Uma geografia, uma sociologia, uma economia, uma antropologia que não tenham o mundo como inspiração na produção própria de conceitos, não se prestam a nenhum trabalho interdisciplinar. Este não é o resultado de trabalhar juntos, mas da possibilidade de um discurso intercambiável, com a fertilização mútua dos conceitos que, apesar dos jargões respectivos, não serão impenetráveis. A globalização vai facilitar essa tarefa. Dir-se-ia mesmo que só na globalização as inter-relações entre disciplinas cabalmente possíveis e a interdisciplinaridade se afirmam plenamente. (SANTOS, 2000, p. 49 – 50)
Assim, afirma Moraes (2005, p. 66), La Blache dessocializava o saber, descomprometendo a Geografia com a prática social. Praticava uma Geografia colonial. Em termos metodológicos, a proposta lablacheana foi um prosseguimento das formulações ratzelianas, entretanto La Blache era mais relativista que aquele e menos generalista. Compartilhavam, sobretudo, o fundamento positivista e metodologias oriundas das ciências naturais, apesar de acentuar o propósito humano da Geografia em seus estudos da paisagem e nas relações homem-natureza, não abordava as relações entre os homens, para quem, inclusive, a Geografia era "uma ciência dos lugares e não dos homens" (MORAES, 2005, p. 61). De outra maneira, saibamos distinguir as diferenças existentes nos trabalhos de Vidal de La Blache, aqueles do início de sua carreira e outros de um Vidal mais amadurecido. Lacoste reconhece este fato quando escreve que:
É preciso perceber que o modelo vidaliano clássico, o do Quadro, essa concepção da geograficidade que elimina os problemas econômicos, sociais e sobretudo os problemas políticos, não foi Vidal de La Blache que o formulou sobre um plano teórico, mas um historiador da envergadura de Lucien Febvre, cujo livro A terra e a evolução humana. Introdução geográfica à história (1922) exerceu uma influência considerável sobre a corporação dos geógrafos. Foi, de fato, durante muito tempo, a principal reflexão epistemológica sobre a geografia e sua evolução, prova capital da carência epistemológica dos geógrafos universitários. Foi na realidade Lucien Febvre quem formulou as posições teóricas que se imputam depois a Vidal, em particular a do "possibilismo". "Vidal não é um construtor de teorias", escreveu Lucien Febvre, que as agenciou em seu lugar. (LACOSTE, 1988, p. 118 – 119)
O trabalho interdisciplinar se coloca como primeira ordem do dia e nem mesmo a Geografia poderá fazê-lo desvinculada de outros saberes, se não for complexa, se não transcender seus consensos e se não se (re)conhecer-(re)completar-(re)encontar no outro, se não se auto-criticar não poderá se reelaborar, e ficará muito aquém do entendimento da complexidade ambiental interdisciplinar. O desejo de a tudo gerir, Moraes aponta que, pode resultar numa gestão ineficaz, e continua:
O abandono do exclusivismo holístico permite que se acate a variedade de ações e a conseqüente necessidade de formações diversificadas para uma boa atuação. O abandono da ética uniformizadora da interdisciplinaridade permitiria um rico equacionamento da questão ambiental num patamar multidisciplinar, o qual poderia fornecer as bases para a definição de efetivos campos transdisciplinares. (Moraes, 1997, p. 32).
Recentemente comemoram - se os 30 anos da publicação do livro "Por Uma Geografia Nova" de Milton Santos, ou seja, tornou-se o marco da Geografia Crítica brasileira. É neste contexto que propomos a fazer uma análise, contextualialização e a intertextualização desta obra, enfatizando mais os três aspectos que são o contexto de sua publicação, as contribuições para o pensamento geográfico e por fim a sua assimilação pela Geografia brasileira.Em nosso pensamento, este conjunto de reflexões, indagações e meditações se fazem necessária para as contribuições de grande importância para a consolidação de um corpo teórico da geografia crítica. Em conseqüência disto, o avanço teórico presente nesta obra permanece sem receber a devida importância. Por Uma Geografia nova nos traz a base do que podemos chamar de pensamento miltoniano. Trata-se de uma obra abrangente que procurou dar resposta a questões que permaneceram pendentes durante a maior parte do século XX. Embora o pensamento de Milton Santos nas publicações da década de 1990 e do início da década atual tenha caminhado rumo a uma teoria mais bem elaborada, mais refinada acerca do espaço geográfico, os fundamentos de seu pensamento certamente estão em Por Uma Geografia Nova, que consegue resolver o problema da inserção da Geografia no conjunto das ciências sociais quando define seu objeto e a coloca no mesmo nível que as demais ciências sociais.
Milton Santos considera a década de 1970 considera como o marco do advento do período da "infoera global". Este novo período histórico, caracterizado por mudanças técnicas, principalmente nas telecomunicações, expansão das infra-estruturas de transporte, acompanhada por novas formas de gestão e planejamento por parte das grandes empresas. Durante o século XX, as mudanças técnicas e sociais ocorreram com grande intensidade, e as novas realidades sociais que surgem vão recebendo diversas interpretações por parte da Geografia, disciplina que também se modifica e cria novas formas de abordagem, através de perspectivas teóricas diversas que foram sendo incorporadas à disciplina. No final do século XX, passamos a viver um período em que estas mudanças são amplificadas, em que ocorre um enorme aumento na intensidade e velocidade no acontecer das relações, e que nos fizeram assistir ao surgimento de um novo período histórico, o período histórico global.
Nesta época ocorreram grandes mudanças no funcionamento do capitalismo, bem como evoluções técnicas que tornaram possíveis o aumento do intercâmbio entre lugares, países e regiões. O grau de tecnificação do território passa por um aumento exponencial. Estas mudanças técnicas, em conjunto com as mudanças econômicas, sociais e políticas têm sua expressão espacial na forma do meio técnico-científico-informacional. Falamos de um período em que as diferenciações e desigualdades espaciais têm uma importância central para a definição das estratégias por parte do capital, que se concretizam através do uso das inovações técnicas, particularmente das redes. Como conseqüência da necessidade de se interpretar esse novo momento, diversas ciências sociais passam a se preocupar com o espaço e a incorporá-lo em suas teorias. Para explicar o mundo contemporâneo foi necessária uma reformulação conceitual da Geografia, que acabou por incorporar um novo corpo conceitual, uma nova abordagem em que a teoria crítica, dialética e marxista passou a ser imprescindível para uma interpretação do novo meio geográfico que então surgia.
Entretanto, a incorporação da teoria crítica ao pensamento geográfico não se deu sem problemas, pois muitas vezes acabou ocorrendo a absorção de idéias e conceitos de áreas como a Sociologia, a Economia, a Filosofia, sem se tomar o devido cuidado de se levar em conta que se tratam de noções vindas de áreas diferentes do conhecimento, que possuem métodos e conceitos particulares. Portanto, as preocupações das diversas ciências sociais com o espaço, suas metodologias e formas de abordagem se contextualizam dentro do conjunto de preocupações de cada uma destas áreas. Quando cientistas sociais não geógrafos se referem ao espaço social não estão trabalhando com a idéia de espaço geográfico, pois a compreensão de questões relacionadas ao espaço possui, na concepção destes cientistas, somente um papel secundário na explicação dos objetos de estudo dessas diversas ciências. Na Geografia, ao contrário, historicamente a preocupação tem sido a de explicar o espaço geográfico. Assim, é comum algo que parece óbvio não ser levado em conta: se referir ao espaço social não é sinônimo de fazer Geografia, da mesma forma que se referir ao tempo não é fazer História, e assim sucessivamente, para outras áreas do conhecimento.
O resultado é que, formulações teóricas que poderiam ser contribuições próprias da Geografia para a análise social acabam por ser abortadas, substituídas pela assimilação fácil daquilo que já foi produzido por outras ciências sociais. A falta de preocupação com o rigor teórico e com as metodologias particulares da disciplina acabou por colaborar para que o discurso de muitos geógrafos permanecesse centrado na capacidade da Geografia de importar, organizar e inter-relacionar os instrumentais teóricos de outras disciplinas, numa aparente tentativa de suprir a ausência de discussão sobre o objeto da disciplina e a construção de seu próprio referencial teórico. Ganharam força as proposições de que a Geografia seria uma ciência de síntese e portadora de um caráter interdisciplinar superior ao das demais ciências. Parcela significativa da produção geográfica acabou abandonando a tradição da disciplina em tratar temas que no final do século XX se tornaram fundamentais para a compreensão do funcionamento do capitalismo contemporâneo. A tradicional preocupação com meio geográfico, com as técnicas que vinha desde os estudos sobre a formação da região paisagem, os estudos da geografia da circulação, ou mesmo as mais recentes preocupações com as telecomunicações foram freqüentemente ignoradas, trocadas por um discurso pretensamente crítico mas estéril, por ser incapaz de dar uma interpretação geográfica para as estratégias atuais do capital. A interdisciplinaridade emergencial é iminente no âmbito do ensino de Geografia. Já dizia Lacoste que:
Ainda louvar-se-ão, daqui para a frente, as virtudes do aproche pluridisciplinar (inter – ou transdisciplinar). Mas este não é cômodo e não é suficiente justapor as relações estabelecidas por diferentes especialistas para perceber, de forma eficaz, a complexidade de situação e a superposição de fenômenos que eles abordam separadamente. Nesses empreendimentos que se querem pluridisciplinares, os geógrafos têm, na verdade, um papel propriamente crucial a desempenhar e é preciso destacar que sua utilidade, na ocorrência, procede justamente (e paradoxalmente) daquilo que lhes vale ser frequentemente denegrido pelos especialistas das outras disciplinas. Os geógrafos, mais que todos os outros, por serem iniciados nos métodos e nas linguagens de bem diversas disciplinas, logram um trunfo numa experiência pluridisciplinar. (LACOSTE, 1988, p. 226 - 227).
O trabalho interdisciplinar se coloca como primeira ordem do dia e nem mesmo a Geografia poderá fazê-lo desvinculada de outros saberes, se não for complexa, se não transcender seus consensos e se não se (re)conhecer-(re)completar-(re)encontar no outro, se não se auto-criticar não poderá se reelaborar, e ficará muito aquém do entendimento da complexidade ambiental interdisciplinar. Temos também uma definição clara do objeto da disciplina, bem como dos limites e possibilidades da interdisciplinaridade. Esta obra não se perde numa discussão da Geografia em si mesma, nem sobre qual seria o papel da disciplina. A preocupação central foi a definição do objeto da Geografia, e o conteúdo do livro se desdobra em discussões sobre esse objeto. É somente a partir desse tipo de clareza que Milton Santos entende ser possível o diálogo da Geografia com as demais ciências. Ross coloca a questão da interdisciplinaridade e multidisciplinaridade de maneira exemplar ao afirmar que:
É evidente que não se pode tratar a pesquisa científica como fragmentos da ciência, bem como não se deve adotar a postura corporativista de muitas categorias profissionais; entretanto também não se pode rotular o tornar-se proprietário de algo que não se pode escriturar em cartório. As ciências da natureza e, sobretudo as chamadas ciências da terra ou geociências, não são independentes e também não têm proprietários. (ROSS, 2000, p. 18)
Permanecem como heranças históricas da Geografia a discussão acerca de sua fragilidade teórica, a fuga da discussão sobre o objeto da disciplina, onde geógrafos ainda se detem na discussão sobre a própria Geografia, relegando a discussão de seu objeto, quando esta ocorre, a um segundo plano. Permanece ainda a fé em seu caráter interdisciplinar superior e na idéia de que a geografia poderia fazer uma síntese do conhecimento das demais ciências. Entre estas permanências, destacamos dois problemas que, embora tenham recebido uma proposta de resolução bastante consistente no livro "Por uma Geografia Nova", continuam tendo uma sobrevida que pode ser constatada facilmente quando consultamos os anais de grandes eventos acadêmicos da Geografia brasileira. São estas, primeiramente,as crenças em que a Geografia seria uma ciência de síntese e, em segundo lugar, como decorrência desta interpretação, a idéia de que a Geografia possua um caráter interdisciplinar superior ao de outras disciplinas acadêmicas. Entendemos que estas concepções são fruto da antiga idéia de que a geografia se encarregaria de estudar inter-relações de fenômenos de natureza diversa e, para entender tais fenômenos, faria uso de instrumentais teóricos de diversas outras ciências. Ao contrário do que normalmente se diz a respeito da Geografia, temos, no livro "Por Uma Geografia Nova", sobre o que concretamente foi a interdisciplinaridade para a Geografia, pois
A geografia padece, mais do que as outras disciplinas, de uma interdisciplinaridade pobre e isso está ligado de um lado à natureza diversa e múltipla dos fenômenos com que trabalha o geógrafo e de outro lado, a própria formação universitária do geógrafo [...] Na realidade, ainda está para ser analisada mais profundamente a coerência de uma autêntica preocupação interdisciplinária entre os geógrafos, potencialmente agravada pelo fato de todos, ou quase todos, estarem absolutamente certos de que trabalham de forma interdisciplinar. Como na realidade isso não se passa, a geografia não se beneficia dessa forma de enriquecimento (SANTOS, 1986, p. 100-101).
Milton Santos ainda discorre sobre as diversas tentativas, na Geografia, de se criar uma interdisciplinaridade, sobre o papel da interdisciplinaridade e conclui que a contribuição da Geografia nessa construção deve se dar a partir de uma contribuição própria, uma contribuição disciplinar da Geografia, e não no papel de ciência de síntese ou articuladora da interdisciplinaridade, que é algo que a Geografia nunca foi, e nunca buscou desenvolver um instrumental para que isso se efetivasse. Para Santos, a idéia de que a geografia seria uma da ciência de síntese, onde, na articulação do conhecimento das diversas disciplinas científicas o seria uma espécie de "maestro", que se encarregaria de reger a orquestra formada pelas outras áreas do conhecimento humano, em que seus especialistas desempenhariam o papel de "músicos". O autor vê nesta abordagem como problemática, pois, entre outros motivos, enfatiza uma discussão da Geografia em si mesma, e não do objeto da disciplina, além de permanecer alheia aos conhecimentos, práticas e teorias geográficas que foram produzidas por diversas gerações de geógrafos. É neste sentido que Vidal de La Blache entendia que a geografia é o estudo dos lugares. Dando ênfase a esta noção, Rui Moreira acrescenta que o modo de vida é "uma forma de estruturar sua existência que o homem realiza através de seu gênero de vida, gênero que varia de acordo com a criatividade do homem com relação ao meio",[onde a técnica tem um papel central] mas, "o gênero de vida depende da técnica e do quadro de intercâmbios do homem entre si e com o meio" (MOREIRA, 2008, p. 68).
Esta preocupação com o meio, com a constituição dos gêneros de vida através da mediação da técnica permanece presente nos desdobramentos da obra vidalina, em autores como Max Sorre ou Jean Brunhes, e entre outros. É importante salientar que, nesses autores, a preocupação quanto ao objeto de estudo se mantém na interpretação dos lugares, das paisagens, das regiões, logo do espaço geográfico. O estudo da inter-relação entre fatores podia aparecer enquanto instrumento de trabalho, mas não como objeto ou função da disciplina. O mesmo raciocínio vale para Richard Hartshorne, geógrafo americano que, com seu método regional, cria uma nova escola de pensamento na geografia. Ele em seu livro "Propósitos e Natureza da Geografia", analisou que a:
diferenciação de áreas", pois "Sejam ou não válidas as objeções ao termo, tudo parece evidenciar que a expressão, por si mesma, é inadequada. E ainda, ela denota mais do que é necessário. Efetivamente, se examinarmos as definições de outras ciências, podemos concluir, por analogia, ser supérfluo afirmar que a Geografia estuda 'diferenças' Todas as ciências consistem no estudo de diferenças. No caso contrário, pouco estudo seria necessário. (HARTSHORNE, 1978, p. 22)
Na década de 1930, Richard Hartshorne, apesar de ter afirmado que a "geografia deveria ser definida antes pelo método próprio e particular de aproximação do que em termos de seu objeto" (HARSTHORNE, 1939, Apud. SANTOS, 1986, p. 119) entendia que a geografia deveria ser definida como o estudo da diferenciação de áreas. Assim, "diferenciação de áreas passa a se considerar o resultado do método geográfico e, simultaneamente, o objeto da geografia" (CORRÈA, 1990, p. 15). Com o aparecimento da geografia teorética, o estudo de inter-relações retorna a ganhar grande importância, e ao mesmo tempo em que a preocupação com o objeto da disciplina e sua constituição ao longo do tempo acaba se "perdendo". Acreditava-se que a geografia quantitativa seria ao mesmo tempo um paradigma e um método, indissociáveis entre si. O resultado acabou por ser uma obsessão com a quantificação e uma confusão entre método quantitativo e análise espacial, que chegaram a ser pensados como se fossem sinônimos. H. BROOKSFIELD apud SANTOS, 1986, p. 50, afirma que "inúmeros dentre os melhores trabalhos derivados da aplicação das matemáticas à análise das distribuições nada mais são que um refinamento e uma sofisticação da descrição gráfica mais simples".
A diminuição da preocupação com o objeto da Geografia a partir de meados do século XX irá aparecer até mesmo na obra de geógrafos como Pierre George que, em 1970, publicou o livro "Os Métodos da Geografia", onde nos apresenta a Geografia como "uma ciência de síntese na encruzilhada dos métodos de diversas ciências" (GEORGE, 1978, p. 7), esta "ciência de relações, implica um processo de pensamento específico, que parte da descrição para chegar à explicação, em três termos principais: observação analítica, detecção das correlações, fusca das relações de causalidade" (GEORGE, p. 7 - 8). George afirma ainda que "a unidade da geografia não pode ser metodológica: a pesquisa geográfica recorre sucessiva ou simultaneamente aos métodos de cada uma das ciências de que se vale para chegar ao conhecimento analítico dos dados incluídos nas combinações que constituem o objeto de seus estudos fragmentários ou globais" (GEORGE, p. 8 - 9). A preocupação com estudos de inter-relação entre fenômenos, a nosso ver a semente de uma noção equivocada de interdisciplinaridade e da atribuição à geografia do papel de ciência de síntese, como se vê da pré-história da Geografia e ganha força quando é buscada sua individualização como ciência, quando
os geógrafos tiveram a pretensão de que ela fosse, antes de tudo, uma ciência de síntese, insto é, capaz de interpretar os fenômenos que ocorrem sobre a face da terra, com a ajuda de um instrumental proveniente de uma multiplicidade de ramos do saber científico tanto no âmbito das disciplinas naturais e exatas, quanto no das disciplinas sociais e humanas (SANTOS, 1986, p. 97).
Também se acreditava que a Geografia seria a única ciência capaz de realizar esta síntese. Milton Santos entende que se tratava, de fato, de uma mania de grandeza que não se justifica, uma pretensão insuportável, pois a Geografia jamais desenvolveu o instrumental teórico necessário para realizar a síntese, e porque seria uma tolice reservar esse papel para uma só disciplina. Apesar de tanta pretensão, o que vimos foi o isolamento da Geografia frente a outras ciências, particularmente das ciências sociais.
Com a geografia, além do mais, estamos diante de um paradoxo que, ao mesmo tempo, é uma ironia. Na verdade essa ciência de síntese é, seguramente, aquela que, na sua realização cotidiana, mantém menos relações com outras disciplinas. Tal isolacionismo é mesmo responsável pelas dificuldades que ela encontra para evoluir. Essa falha já havia sido observada por Ackermann (1963 p. 431-432), para quem somente alguns geógrafos ultrapassaram penosamente o nível das generalidades mais banais acerca da universalidade do método científico. Esse nível de generalização paralisou o desenvolvimento da ciência e impediu a busca de uma verdadeira teoria e de uma verdadeira metodologia geográfica (SANTOS, 1986, p. 98 - 99).
Uma contribuição disciplinar só pode acontecer a partir da existência da clareza quanto ao objeto da disciplina, e das possibilidades da contribuição da própria Geografia ao conhecimento das diversas disciplinas. Em "Por Uma Geografia Nova", temos uma bem acabada proposta nesse sentido. Na verdade uma proposta que já vinha sendo construída pelo menos desde o início da década de 1970, e que continua a ser aperfeiçoada e reelaborada nas décadas seguintes. A partir do início dos anos 1970 ocorreu uma aproximação entre a geografia e o marxismo ocidental. Com essa aproximação, o espaço começa a assumir um papel fundamental na teoria social. É neste sentido que Soja afirma o seguinte:
a própria sobrevivência do capitalismo, afirmou Lefebvre, estava baseada na criação de uma espacialidade cada vez mais abrangente, instrumental, e também socialmente mistificada, escondida da visão crítica sob véus espessos de ilusão e ideologia. O que distinguia o gratuito véu espacial do capitalismo das espacialidades de outros modos de produção eram sua produção e reprodução peculiares de um desenvolvimento geograficamente desigual, através de tendências simultâneas para a homogeneização, a fragmentação e a hierarquização... "esse espaço conflitivo dialetizado é onde se realiza a reprodução, introduzido nela suas contradições múltiplas[1] - contradições que deveriam ser analítica e dialeticamente 'reveladas', para nos permitir ver o que se esconde por trás do véu espacial (SOJA, 1993, p. 65).
Entre os geógrafos e outros pensadores sociais houve uma certa hesitação em admitir que espaço desempenha um papel central na explicação da sociedade. David Harvey e Manuel Castells, apesar de reconhecerem a contribuição de Lefebvre, no início da década de 1970, insinuaram que este tinha ido longe demais, elevando a "problemática espacial urbana a uma posição intoleravelmente central e aparentemente autônoma" (SOJA, 1993, p. 97). Também de acordo com Edward Soja, a partir desses anos 70, até meados da próxima década, ocorrem diversos avanços e recuos nas obras dos geógrafos, no que se refere à importância dada ao espaço para a elaboração da teoria social crítica. Castells promove duas mudanças em aspectos essenciais de suas posições no início da década de 1970. "A primeira vem de um abrandamento de sua postura contra Henri Lefebvre e de uma disposição maior de aceitar a importância de uma problemática assertivamente espacial na interpretação da política e da sociologia urbanas" (SOJA, 1993, p. 89). A segunda é que o estudo do consumo coletivo deixa de ter o papel central que possuía em seus primeiros estudos sobre industrialização urbana. Milton Santos, já questionava que:
é possível falar em Formação Econômica e Social sem incluir a categoria do espaço. Trata-se de fato de uma categoria de Formação Econômica, Social e Espacial mais do que uma simples Formação Econômica e Social (F.E.S.), tal qual foi interpretada até hoje. Aceitá-la deveria permitir aceitar o erro da interpretação dualista das relações Homem-Natureza. Natureza e Espaço são sinônimos, desde que se considere a Natureza como uma natureza transformada, uma Segunda Natureza, como Marx a chamou" (SANTOS, 1977, p. 82).
Ainda em "Por Uma Geografia Nova", o espaço como uma estrutura da sociedade, ao mesmo título que as demais, é defendida em uma crítica à postura de Manuel Castells, que considerava o espaço uma estrutura subordinada. Milton Santos argumenta que "o melhor é guardar no espírito o fato de que nenhuma relação dialética pode excluir da ação um dos seus componentes. Desse modo nos recusamos a imaginar que possa haver estruturas cujo movimento subordinado seria devido exclusivamente às determinações econômicas" (SANTOS, 1988, p. 147). Mais adiante, acrescenta a idéia de inércia dinâmica, embrião da noção de rugosidade. "Se o espaço organizado é também uma forma, um resultado objetivo da interação de múltiplas variáveis através da história, sua inércia é, pode-se dizer, dinâmica. Por inércia dinâmica queremos significar que as formas são tanto um resultado como uma condição para os processos. A estrutura espacial não é passiva mas ativa, embora sua autonomia seja relativa. Como acontece às demais estruturas sociais" (SANTOS, 1988, p. 148).A essência do espaço é social, e este não é apenas formado pelas coisas, os objetos geográficos, naturais e artificiais, cujo conjunto nos dá a Natureza, é tudo isso, mais a sociedade (SANTOS, 1985, p. 1).
Em suma, a sociedade não pode operar fora do espaço para o estudar, temos que levar em conta sua relação com a sociedade, mas é esta dita compreensão dos efeitos dos processos e especifica as noções de forma, função estrutura, elementos fundamentais para a compreensão do espaço. É desta forma, que o aspecto visível da coisa, a função, sugere uma atividade esperada de uma forma, pessoa, instituição, é a atividade elementar de que a forma se reveste. A estrutura implica a inter-relação de todas as partes de um todo, ao passo que o processo pode ser definido como uma ação contínua, desenvolvendo-se em direção a um resultado qualquer, implicando conceitos de tempo e mudança. Por fim do século XX, consideram que o espaço para o entendimento das relações sociais é uma postura que ganha grande importância, o espaço geográfico passa a se situar na ordem do cotidiano. Como já foi dito anteriormente, nas últimas décadas a teoria miltoniana se tornou mais complexa, mais ampla e bem fundamentada, além de ter acompanhado as mudanças pelas quais o mundo passou nesse período, isto é em grande parte dessa evolução da teoria, destacamos que o espaço geográfico passou a ser definido como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ação, ou seja, um conjunto indissociável de sistemas porque o que interessa é os territórios usados, sinônimos de espaço geográfico. Conseqüentemente, o estudo do espaço geográfico só pode ocorrer através do estudo de seu uso.
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