O STF e os dilemas da bioética

Por Thiago Wesley Costa Machado | 31/08/2016 | Direito

Neste capítulo far-se-á um estudo panorâmico de dois julgados do Supremo Tribunal Federal, a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, que versou sobre a constitucionalidade da interrupção voluntária da gestação em casos de fetos anencefálicos, e sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510, que discutiu o conteúdo da Lei de Biossegurança e sua conformidade aos preceitos constitucionais.

Embora ambos julgados não versem especificamente sobre o aborto tal como defendido neste trabalho, a leitura atenta dos votos dos ministros e os argumentos utilizados tangenciam o tempo todo o problema, ao levantar questões fundamentais sobre bioética, início da vida e a melhor interpretação do princípio à vida presente no artigo 5º da Constituição Federal. Um exame atento das decisões do tribunal pode não só iluminar questões levantadas neste trabalho, como antecipar uma possível decisão do STF, caso se veja impelido a decidir sobre a questão central: a constitucionalidade do aborto.

I - A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n°54 e o drama dos fetos anencefálicos

A ADPF n° 54 ganhou notoriedade nacional ao discutir a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128 que impedia mulheres cujos fetos sofriam de anencefalia a interromper sua gravidez. Pleiteava a ação o reconhecimento do direito subjetivo da gestante a realizar o procedimento abortivo sem a necessidade de prévia autorização judicial.

No tocante à definição de vida humana, os votos dos ministros se dividem em: a) aqueles que definem vida pela potencialidade de vida extra-uterina possuída pelo feto b) os que elegem a atividade cerebral como pressuposto. Entre os primeiros, encontram-se os ministros Marco Aurélio, Ayres Britto, Celso de Mello e Joaquim Barbosa. Entre os segundos, Marco Aurélio, Rosa Weber e Celso de Mello.

A definição de vida como existência de atividade cerebral ensejou uma comparação entre anencefalia e morte cerebral. Assim como esta última é encarada, pela Lei de Transplante de Órgãos n° 9434/97, como o marco pelo qual a vida humana tem seu término, a presença de anencefalia em um feto seria o indício de que a vida sequer começara, motivo pelo qual a mulher estaria autorizada a interromper a gravidez. Tal opinião se coaduna com a defendida por este trabalho sobre os limites que o Estado legitimamente poderia impor ao aborto. A mulher, não obstante possuir o direito subjetivo de decidir sozinha algo tão fundamental quanto ter ou não um filho, não pode exercer tal direito de forma indiscriminada, a qualquer tempo, em uma atitude que poderia sugerir um desprezo ou indiferença pela vida que carrega. Um bom limite temporal à realização legal de um aborto seria justamente os primeiros sinais de atividade cerebral emitidos pelo feto, após o qual já se torna razoável supor que este já usufrua de uma sensibilidade à dor e ao sofrimento físico, momento no qual nasceria um interesse concreto por parte deste em não ser ferido ou submetido a qualquer procedimento doloroso.

Uma interessante discussão surgida no âmbito do julgamento foi sobre a distinção dos conceitos biológico e jurídico de vida, que seriam distintos, segundo a maioria dos ministros. O direito, sob esse prisma, não deveria se guiar tão somente pelos critérios fornecidos pela literatura médica ou da ciência biológica, mas sim construir seu próprio conceito, baseado na melhor interpretação dos seus princípios e regras. Esta perspectiva, é importante ressaltar, mereceu críticas por parte do Ministro Cézar Peluso, que aduziu que vida e morte são fenômenos pré-jurídicos, e que não caberia ao Direito montar uma teoria ficcional para ambos os conceitos que desprezasse a realidade concreta de tais fenômenos.

A distinção, no entanto, é pertinente. Isto porque juristas dos mais diversos matizes parecem não entrar em uma concordância sobre um marco inequívoco pelo qual se pode afirmar de modo categórico o início da vida, uns elegendo a concepção, outros a nidação, os primeiros movimentos, o início da atividade cerebral, dentre outros. Todos estes estágios do desenvolvimento embrionário nos parecem, isolados, marcos insuficientes para explicar a atitude de reverência que temos diante do milagre, natural ou religioso, que é a gestação de uma vida humana. O embrião seria inviolável a partir da nidação, mas não alguns dias antes, enquanto se encontrasse nas trompas de falópio, um ovo-zigoto já formado e com patrimônio genético individual? Por quê? Por que tal momento específico da marcha embrionária revestiria o embrião de uma inviolabilidade ou sacralidade que não possuía em momentos imediatamente anteriores?

A decisão da mulher em prosseguir ou não com a gravidez, a nosso ver, seria um marco jurídico muito mais apropriado a partir do qual se poderia afirmar a personalidade jurídica do nascituro, visto que a partir da decisão individual da mulher já se pode afirmar com razoável certeza que o nascituro nascerá, será um dia membro da sociedade, e a partir daí o Estado pode legitimamente impor à mãe, e ao pai, um dever geral de responsabilidade para com aquele que vai nascer.

Um segundo ponto muito importante analisado neste julgamento foi sobre saber se o direito à vida é absoluto, ou se possui uma natureza mais flexível que abra espaço a gradações e ponderações com outros valores e princípios. Sobre isso, resta de grande utilidade transcrever uma parte do voto do ministro-relator Marco Aurélio:

Inexiste hierarquia do direito à vida sobre os demais direitos, o que é inquestionável ante o próprio texto da Constituição da República, cujo artigo 5º, inciso XLVII, admite a pena de morte em caso de guerra declarada na forma do artigo 84, inciso XIX. Corrobora esse entendimento o fato de o Código Penal prever, como causa excludente de ilicitude ou antijuridicidade, o aborto ético ou humanitário – quando o feto, mesmo sadio, seja resultado de estupro. Ao sopesar o direito à vida do feto e os direitos da mulher violentada, o legislador houve por bem priorizar estes em detrimento daquele – e, até aqui, ninguém ousou colocar em dúvida a constitucionalidade da previsão. Aliás, no Direito comparado, outros Tribunais Constitucionais já assentaram não ser a vida um valor constitucional absoluto. Apenas a título ilustrativo, vale mencionar decisão da Corte Constitucional italiana em que se declarou a inconstitucionalidade parcial de dispositivo que criminalizava o aborto sem estabelecer exceção alguma (...)

Além de o direito à vida não ser absoluto, a proteção a ele conferida comporta diferentes gradações consoante enfatizou o Supremo no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510. Para reforçar essa conclusão, basta observar a pena cominada ao crime de homicídio (de seis a vinte anos) e de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (de um a três anos)74, a revelar que o direito à vida ganha contornos mais amplos, atraindo proteção estatal mais intensa, à medida que ocorre o desenvolvimento. Nas palavras da Ministra Cármen Lúcia, “há que se distinguir (...) ser humano de pessoa humana (...) O embrião é (...) ser humano, ser vivo, obviamente (...) Não é, ainda, pessoa, vale dizer, sujeito de direitos e deveres, o que caracteriza o estatuto constitucional da pessoa humana”.

Tal posição dos ministros, além do relator, se opõe frontalmente à concepção majoritária que predomina entre civilistas e penalistas de que o direito à vida elencado no artigo 5° da Constituição Federal seria absoluto, numa interpretação radical e intransigente que não comporta nuances, nem dá margens a uma compreensão do tema que o alcance em toda sua complexidade.

Houve ainda uma discussão periférica, mas importante, sobre até que ponto a permissão do aborto de fetos anencéfalos não obedeceria a uma lógica de eugenia. A palavra, como se sabe, vem carregada de forte semântica histórica por ter sido um dos propulsores políticos do nazismo alemão, em sua obsessão por pureza racial e extermínio étnico. A comparação foi rechaçada por alguns ministros, mas assumida por outros, como Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa e Cesar Peluso. Este último chega mesmo a afirmar que a admissão do aborto de anencéfalos seria uma forma de discriminação, e afirmação de superioridade de algumas formas de vida sobre outras.

Como já se defendeu em partes anteriores deste trabalho, comparar o aborto, de qualquer tipo, com a eugenia praticada pelos regimes fascistas do século XX é um erro, e por vezes mascara uma tentativa de manipular o debate de modo a jogar sobre os defensores do aborto a pecha de discriminatórios ou eugênicos. A política de eugenia praticada por tais estados era uma verdadeira abominação moral, uma violência imposta sobre estratos inteiros da sociedade civil que foram considerados representantes de “raças” mais fracas e degeneradas geneticamente, e que por isso deveriam ser eliminadas. Nunca houve qualquer liberdade de escolha para judeus e demais alvos étnicos. É justamente o oposto do que propõe a tese de liberação do aborto: este seria um direito essencialmente individual, em que o Estado não deveria se imiscuir, sob pena de adentrar de forma violenta e ilegítima o espaço da autonomia privada. Lá se defendia uma noção deturpada de pureza coletiva. Aqui, defende-se a soberania do indivíduo na decisão de escolhas estritamente pessoais.

O relator Marco Aurélio, com sensatez, logo no começo de seu voto optou por descartar a palavra eugenia para caracterizar o aborto de fetos anencéfalos:

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