O Sonho de dona Quinha
Por Léa Mattar Leister | 23/09/2012 | ContosO Sonho de dona Quinha
Em pleno século XXI algumas pessoas ainda trazem em si o ranço de uma educação arcaica, em que a mulher era vista como um ser subalterno - enquanto solteira, devia obediência ao pai, depois de casada, era posse do marido.
Dona Quinha era dona de casa, analfabeta e obedecia cegamente ao seu marido, seu Zé. Homem seco de sentimentos que era, evidentemente, seu algoz.
Dona Quinha vivia confinada entre as paredes de sua casa e dos muros de seu quintal. Só teve um filho, cujo parto realizado em casa teve algumas complicações, por isso, nunca mais engravidou. Ela só via seus pais uma vez por ano, no Natal. Não conhecia o centro comercial da própria cidade onde morava, nunca havia ido a um supermercado. Seu Zé é quem fazia as compras. As roupas eram todas feitas por ela, inclusive as íntimas. Na casa de seu Zé, as coisas funcionavam como ele queria e ordenava.
Um dia seu Zé comprou uma televisão só para ele. Nem a mulher nem o filho podia tocar um dedo sequer naquele aparelho. Na hora das refeições, a mulher lhe preparava um prato e ele almoçava ou jantava na sala assistindo ao jornal, enquanto ela e o filho comiam na cozinha.
Dona Quinha odiava aquele “treco”, pois enquanto seu Zé fazia suas refeições na sala, lá da cozinha eles o escutavam praguejando contra o governo, contra os políticos e contra tudo o que pudesse.
Certo dia, na hora do intervalo do jornal, passou uma propaganda sobre um ferro elétrico a vapor. Dona Quinha, passando pela sala em direção ao quarto ficou maravilhada, nunca tinha visto nada igual, ela parou em frente à televisão e ficou extasiada com tamanha praticidade. Aos gritos, seu Zé fê-la voltar de seu êxtase, então, aquele objeto passou a ser o seu sonho de consumo. Pois o ferro de passar que ela ainda possuía era tão antigo que o cabo elétrico era daquele do tipo removível e pesava como chumbo, fora que, de vez em quando, a resistência precisava ser trocada, mas seu Zé dava um jeitinho e o arrumava.
Dona Quinha encheu-se de coragem e pediu ao marido um ferro daquele tipo, moderno, a vapor e bem levinho. Porém seu Zé arregalou os olhos, encostou-lhe o dedo no nariz e lhe disse aos berros “Veja se tenho cara de palhaço! Você acha que meu dinheiro é capim?” Seu Zé saiu batendo tudo e foi trabalhar. Nunca mais se tocou no assunto. Porém todas às vezes que ela passava roupas, imaginava-se segurando um aparelho daquele que saía um vaporzinho gostoso que umedecia a roupa e que ficava tudo bem passadinho.
Valdo, seu filho, tinha muita pena da mãe, mas não podia fazer nada. Com quatorze anos, conversou com a diretora de sua escola, explicou sua situação e passou a estudar à noite para trabalhar durante o dia, queria tornar-se o mais rápido possível independente e seguir seu caminho, pois ele também não tinha uma boa relação com o pai. Ele sempre dizia: “Mãe, um dia eu vou tirar a senhora dessa prisão.” Ela o abraçava, acariciava-o e dizia que estava tudo bem, que ele não amargurasse seu coraçãozinho de menino.
Tempos depois, na casa de seu Zé, a televisão já era de última geração, porém, o ferro de passar ainda era o mesmo. Um dia, enquanto seu Zé jantava alguém o chamou ao portão. Era voz de mulher. Ele ficou tão perturbado que saiu rapidamente deixando a televisão ligada. Ele demorou, o jornal terminou e a novela começou.
Dona Quinha passou pela sala para ver quem estava lá fora, pois mesmo não ouvindo bem as palavras sabia que ele estava brigando com alguém. Ao passar em frente à televisão, viu uma das personagens da novela nua em pelo. Paralisou-se, não conseguiu dar mais nenhum passo. Ficou envergonhada, como se ela estivesse invadindo a privacidade da atriz. Ela colocou as mãos nos olhos e tal qual uma criança, olhava por entre os dedos, levando a cabeça de um lado ao outro, enquanto lá fora o “bicho pegava”.
De repente seu Zé entrou feito um furacão, ele estava roxo como uma berinjela. Dona Quinha assustou-se. Ficou amedrontada, ele resmungou algumas palavras e caiu durinho no chão – enfarte fulminante.
Dias depois do enterro, o filho levou-a para providenciar sua pensão, ela não entendia nada do assunto, mas em companhia do rapaz sentia-se feliz e segura. Andava pelas ruas como se estivesse em um parque de diversões, tudo era novidade.
Ganhou um seguro vultoso e passou a receber uma pensão muito boa. Valdo disse à mãe: “agora a senhora poderá comprar o quiser e terá que fazê-lo, já que trabalho longe e não poderei assumir esses compromissos. Vou explicar-lhe como proceder daqui para frente e tudo ficará por sua conta, tá?”.
A primeira coisa que dona Quinha fez foi comprar uma mesa de passar roupas e um ferro a vapor do mais moderno, e nem se preocupou com o preço.
À noite, dona Quinha serviu o jantar para o filho na mesa da sala, fê-lo ligar a televisão, armou a mesa de passar, colocou a cesta com as roupas numa cadeira e preparou seu ferro a vapor. Depois, andou para lá e para cá algumas vezes. Olhava para sua aquisição com tanto prazer que parecia ter adquirido algo raro. Seu filho jantava e assistia ao jornal, mas em silêncio observava a cena. Dona Quinha abriu a porta da sala, parou na soleira, olhou para o céu como se seu Zé pudesse vê-la e a ouvir, então, fazendo uma “banana” com os braços falou: “Zé, oi aqui pro cê!”.