O SOBRINHO DA NATUREZA HUMANA

Por EDILSON TRIGO | 22/04/2010 | Filosofia

Edilson S. A. Trigo[1]

A lei que prescreve ao Homem algo contrário à natureza é uma falsa lei e é impossível que dure.[2]

Certo dia um homem, na Atenas um pouco anterior ao período helenístico, saiu às ruas com uma lâmpada na mão bradando: "Estou à procura de um Homem". Não se tratava de um comprador de escravos, muito comum na antiguidade, pois tinha sido um. Não se tratava da procura de amigos, pois era um homem só e que gostava de estar só. Nem tão pouco a busca desesperada de um artesão para a reconstrução de sua casa destruída por um terremoto repentino, pois morava em um tonel um pouco afastado da cidade. Nem se tratava de alguém que agisse por desatinado impulso, mas sua pantomima tinha um fim.

Tratava-se de Diógenes um discípulo de Antístenes, o fundador da escola Cínica, e apresentava um paradoxo com relação à vida dos homens, embutido em tal ato aparentemente transloucado de tal filósofo.

A loucura de tal ato de levar uma luz em pleno dia, como que a dizer que se quer enxergar melhor para encontrar alguém que vivesse conforme as regras estabelecidas pela sociedade desde a aparência até a essência. Ou melhor, estava dizendo que tais leis deveriam ser obedecidas pelo homem procurado, não para que ao fazê-la se tornasse respeitado na sociedade, ou por obrigação, mas que fosse um ato espontâneo seu, já denota que jamais encontrará tal homem essencialmente virtuoso.

Constituía, portanto, na mais radical crítica à sociedade humana e ao conceito de uma virtude estabelecida por ela. Diderot compartilha de tal radicalidade e a expressa principalmente no seu livro O Sobrinho de Rameau quando o Sobrinho (seu protagonista principal) diz: "Poderia ocorrer que chamásseis vício o que chamo virtude e virtude o que chamo vício" (DIDEROT, 1979 p.157). Desta forma ele nega a tese de uma virtude universal ou determinada pela "reta razão", como diz Aristóteles, e toda uma tradição racionalista.

Pois, o que é um homem virtuoso a não ser um bom cidadão, um bom marido, um bom filho... E o bem o que é a não ser seguir regras que fundamentam cada uma destas instituições? O rigor de tais critérios e a grande quantidade de regras faz com que se torne comum descumpri-las.

É preciso saber por que em tudo há na prática algo oposto à tese. É por isso que Diderot, como Diógenes, pega uma lâmpada de dia e sai às ruas para ver se os atos dos homens estavam em concordância com a virtude cristã européia. Isto está bem patente nos seus contos em que ele traz à tona experiências amorosas vividas, talvez, por pessoas reais e que chocavam a opinião pública.

O primeiro dos contos que destacaremos é o de Madame Reymer e Tanier[3], que trata de um homem que não mede esforços para sustentar com bens o "amor" dela. Enquanto ela está a exigir sempre mais, e o explora até a sua morte que acontece quando ele vai a uma viagem caça níqueis para sustentar a amada.

Outro conto também chocante é o de Mademoiselle de La Chaux e Gardeil[4], mulher bela e culta que se apaixona por um obscuro homem de letras colaborador de um projeto enciclopédico do século XVIII. Ela lhe dedica a saúde e bens para ajudá-lo passando noites em claro lendo manuscritos em grego e hebraico. Um dia ele lhe diz não estar mais apaixonado e lhe larga friamente, esta se deprime e posteriormente morre.

E por último o conto de Madame de la Carliere e Chevalier[5]. Mulher que ao se casar com Chevalier pede de forma pública que o juramento de fidelidade seja fiscalizado por todos, pois as palavras são fracas para mantê-la. Quando este cai em um caso amoroso. Ela ao saber rompe com ele. Mas não contente com isso, para angariar consternação pública, arma espetáculos de tragédia e nestas condições morre.

O que Diderot mostra nestes contos não é a atitude "maléfica" de alguns homens com o intuito de condená-los como faz a opinião das pessoas comuns. Mas sim apontar a precariedade das regras prescritas para que se siga sem levar em consideração às paixões dos homens.

Ao se exigir a fidelidade vitalícia do casal quer-se que as paixões dos homens durem para sempre coisa que ninguém pode cumprir, pois, este é um terreno sobre o qual o homem não possui domínio algum.

Também a virtude européia em outros terrenos apresentará problemas como no diálogo entre o sobrinho de Rameau e um filósofo. Rameau demonstra a tal filósofo que ser honesto ou ter uma vida moderada é privilégio de homens com vida economicamente mais estável. Coisa que o mendigo (o sobrinho de Rameau) Rameau não poderia se dar ao luxo de ser, assim como muitos de sua época. Como diz o sobrinho na frase: "A voz da consciência e da honra é muito fraca quando as tripas gritam" (DIDEROT, 1979 p.136). E, dessa forma, mostra a impossibilidade de uma moral que fosse universal e determinada ou pela razão, ou pelos costumes para realizar a felicidade dos homens.

Mas tais fatos trazem o paradoxo de ter revelado a falsidade dos paradigmas que estabeleciam o que era o bem ou o mal. Pois, sobram apenas dois caminhos extremos para se agir no caso do mendigo sobrinho de Rameau: ou mergulha na sociedade sobrevivendo e colhendo os prazeres que conseguir, e que, para isso, tem que lançar mão de todo tipo de patifaria, pantomimas ou mentiras, ou se afasta do convívio social e vive como eremita, tendo a natureza por paradigma moral e por isso mesmo uma virtude de viver longe das mazelas da sociedade, mas uma vida profundamente rigorosa.

Tais únicas alternativas ao mendigo revelam a hipocrisia de uma sociedade, que se diz portadora da civilidade, da moral que deve ser disseminada pelo mundo, de dentro para fora. Não é necessário consultar um estrangeiro, tal fato está ali na sarjeta como que a querer denunciar tal fato. Mas também revela uma saída: o estabelecimento de outro paradigma. É preciso ir à natureza e consultá-la para estabelecer o melhor ao Homem. É preciso mirar as sociedades mais próximas a ela e ver se são mais felizes.

Sobre a natureza, Diderot escreve no Sonho de D'Alambert que tudo provém da matéria, sendo que esta está em constante movimento. E que dos seres materiais provêem os orgânicos em uma cadeia evolutiva. De tal modo que, mesmo que se extinguisse o sol, e a vida acabasse no planeta terra, ao ser restabelecido o sol novamente, a vida ressurgiria.

Diderot dizia também que as matérias possuem sensibilidades inorgânicas inertes e os seres vivos ativa, pois reage a estímulos. Assim um homem ou um animal é sensível desde as pequenas moléculas da matéria. Por isso, para ele tanto os homens quanto os animais são racionais, porém, com diferentes graus de racionalidade. Pois como se originam da mesma fonte, seria inadmissível um ser ter privilégios sobre outros. Assim, elimina-se qualquer ideia de transcendência com relação à racionalidade, ou seja, o que era considerado originário de uma procedência divina é considerado por Diderot como algo puramente humano.

Para examinar os corpos vivos e como eles são, sem incluir a dependência de qualquer vontade externa ou coisas que transcenda o puramente material, Diderot usa algumas analogias: em primeiro lugar o enxame de abelhas. Cada abelha constituiria numa molécula que dentro de si contém muitas outras, cada qual com suas funções específicas bastando tocar em uma para que todo o corpo sinta e aja.

Mas o exemplo mais elucidador a respeito dos seres vivos é o da aranha, pois transmite melhor como funcionam. As teias são os tendões que possuem ligação com o corpo da aranha. Quando qualquer dele é tocado este vibra e faz com que o corpo da aranha seja afetado. Assim, quando sinto minha perna ou quando a movimento são os meus tendões que estão vibrando ou distendendo-se. E o corpo da aranha é o cérebro. Mas tal exemplo dá uma brecha a uma interpretação cartesiana, fazendo distinção entre o corpo, uma máquina, e a alma.

Para evitar isso ele usa a analogia do cravo (instrumento musical de teclas antecessor do piano) para dizer que os seres vivos são apenas mecanismos. A natureza toca o teclado e faz com que se vibrem as cordas ou tendões. Cada função do corpo é explicada por estas vibrações. A visão é a vibração dos tendões dos olhos. A memória também e todas as sensações e paixões.

Porém a formação da linguagem e da racionalidade é feita por convenção entre mecanismos semelhantes. Assim cada animal terá a sua própria. A prova disto, segundo ele, são as interjeições que expressam a mesma coisa em todas as línguas, pois expressam paixões mais naturais entre os homens.

Tais ideias têm algumas posições interessantes na Ética, que trata das ações dos homens. Em primeiro lugar, os seres humanos terão afinidades naturais, pois, possuem mecanismos semelhantes uns dos outros. Assim sendo, só existirá um tipo de Natureza Humana. Sendo que o que é bom para o Homem, é somente para ele e isto constitui um ponto em comum entre os homens. Porém, individualmente cada homem terá certas diferenças dependendo da predominância da corda de cada indivíduo que constituirá um talento. Os gênios são os que possuem predominância excessiva de apenas uma corda.

Em segundo lugar, sendo a razão determinada pela matéria, então agentes externos a afetará. Ou seja, se estou sem alimento meu medo de pensar será um, com estômago cheio outro. Assim as paixões são determinantes para todo nosso modo de agir e é impossível lutar contra isso. Há, portanto, o império da natureza sobre os homens que prescreveu as suas leis. E ninguém é feliz transgredindo-as. Mas será satisfeito ao segui-las por instinto. Será como um cravo tocando uma música harmônica.

Portanto, Diderot diz que a sociabilidade nos homens é natural. Mas como conciliar esta postura otimista em relação à sociedade e ao homem com o radical pessimismo do Sobrinho de Rameau? Tal diferença é bem tratada no Suplemento à Viagem de Bougainville. Ela se dá não pela impossibilidade da existência de uma boa sociedade, mas sim pela distância entre as sociedades que atingiram elevado grau de sofisticação técnica, criando instituições e leis que formaram os homens cada vez mais distantes da natureza e da felicidade plena.

Diderot para superar o radical pessimismo cínico, não fica procurando a virtude, nas ruas da Cidade, sabendo que nunca irá encontrar. Portanto, universalizando que é um problema específico. Ao invés disso, procura mostrar lugares recém descobertos, onde os costumes não foram manchados por normas contrárias à Natureza. Em tais sociedades primitivas em que os homens seguem apenas as leis da natureza estes são integralmente felizes (critério máximo para Diderot, pois a felicidade pode e deve ser atingida mesmo estando fora desta sociedade, embora nunca com a mesma intensidade). Constituindo cada um deste num cravo executando uma melodia bem equilibrada.

Na história do Suplemento, um capelão chega à paradisíaca ilha do Taiti e lhe é oferecida à filha do chefe para ter relações sexuais. E mais, fica sabendo que pode escolher até as que estão vivendo como outros homens. Tais coisas trazem à tona o absurdo contra a natureza que são as leis que prevêem a fidelidade conjugal como única postura admissível no matrimônio como se o homem fosse quem determinasse as suas paixões. Como no caso dos contos de Madame Reymer e os outros. Pois, não se pode dizer que elas sejam boas ou más. São apenas necessidades a serem satisfeitas.

Quando dialogaram o capelão e o chefe do Taiti, "Oru", sobre o que ocorrera. E qual não foi a surpresa do chefe ao saber das proibições de tais práticas e o fato de todos a praticarem às escondidas, porém, assumindo o que não praticavam. Descobre o Homem europeu como um homem dilacerado entre três códigos de leis, uma civil, assegurada pelo Estado, outra religiosa, e outra a lei natural que o chefe praticava mais de perto. Portanto, o Homem Europeu não é nem homem nem religioso, nem cidadão, pois inflige todas as leis, apenas assumindo publicamente.

E aqui está a causa das mazelas das sociedades mais desenvolvidas, tão radicalmente denunciada pelos cínicos, sendo impossível ser virtuoso por seguir tais códigos. E assim o Homem se torna como que um cravo executando melodias desconjuntadas e desarmônicas. E para compensar as suas mazelas entrega-se a excessos de todas as formas. Avareza, patifaria, glutonarias, etc, pois, tal contradição de códigos ocorre em muitas áreas.

Portando, tais leis não restringem apenas a felicidade no aspecto sexual, mas também o acesso às comodidades que um pequeno grupo possui em escala majestosa e o Sobrinho de Rameau na base oposta. Apesar de tais disparates morais e sociais Diderot não prega nenhuma reação violenta como diz no final do Suplemento: que devemos ser como o capelão "monge em França e selvagem no Taiti" (DIDEROT,1979 p.349), porém devemos denunciar as injustiças sempre.

Porém, até aqui ele apenas descreveu o quadro da sociedade primitiva mais de acordo com as leis da natureza e que servem de paradigma. Mas como formar uma sociedade mais de acordo com este. Como estabelecer o que é de Direito de cada Homem em leis conforme as da Natureza?

No seu verbete sobre "Direito Natural" ele trata deste tema na "Enciclopédia"?. Como foi visto, o homem é composto apenas de matéria sendo que suas funções são realizadas por um mecanismo semelhante aos outros seres humanos. E é tal semelhança que os faz naturalmente sociáveis e dependentes uns dos outros. Pois ninguém viveria feliz longe do gênero Humano e nem conseguiria sobreviver muito tempo totalmente isolado.

Também por causa de tal postura naturalista o Homem não é um ser moral. Não há uma lei natural determinada por uma alma ou qualquer instância transcendente, pois as suas paixões são determinantes e até mesmo há racionalidade. Não sendo possível determinar se as paixões são boas ou más.

Mas tal otimismo ontológico com respeito ao homem não entra em concordância com a sociedade européia. Não sendo naturalmente amoral, como determinar o que é justo ou injusto na sociedade Humana?

Sendo os homens dependentes uns dos outros será mal e contrário aos outros do gênero humano, e a si mesmo por consequência, prejudicar outro Homem, pois, ao fazê-lo estamos trazendo contra nós: o próprio Gênero Humano que tanto dependemos. É interessante que tal princípio se aplica em todas as sociedades, do contrário ela se desintegraria por completo. Mesmo as sociedades mais corrompidas, como a européia, dentro de grupos sociais semelhantes como, por exemplo, entre bandidos que prejudicam o resto do Gênero Humano; entre si jamais agem conforme a Vontade de um só, do contrário, se matariam, ou perderiam a proteção uns dos outros.

É por isso que só se pode ver a Vontade Geral expressa seja em frações civilizadas: na ação dos selvagens, e na convenção dos bandidos entre si. Além disso, há a repulsa que um ato contrário ao Gênero Humano, como uma chacina, por exemplo, provoca. O que demonstra que o homem não se sente bem diante da desvirtude. Sendo, portanto, as leis determinadas pela Vontade Geral: sempre boas. E é nesse sentido que é necessário olhar os selvagens como paradigma.

Porém, quando as sociedades de alguma forma se sofisticam, talvez sob influência da Vontade de um gênio que propõe "melhorias", nem sempre estas melhorias são as melhores. Isso porque os gênios por serem seres cuja predominância de uma corda dos seus mecanismos impressionam os outros por seu desempenho em uma matéria, por isso são tomados por sábios a serem seguidos. Ora, o que as pessoas não sabem é que tal é "o mais perigoso dos homens", pois desvia os homens da Vontade Geral e propõe leis em dissonância como a natureza dos homens. Mas, há homens sábios que vêem a totalidade dos homens para determinar o que é justo. Estes são os que deveriam ser seguidos.

Olhando o que escrevi até aqui de uma maneira geral, me parece que há um enorme contraste para Diderot da postura com que encara a sociedade européia no "Sobrinho de Rameau" – este sobrevivendo de patifarias, com relação às virtudes dos selvagens. Uma postura otimista em relação ao homem e a postura mais maleável do verbete "Humano", onde as próprias sociedades injustas têm que preservar um mínimo de respeito ao Gênero Humano para sobreviver. Tendo este respeito alto conteúdo pragmático.

Entretanto, olhando esta postura com referência ao respeito ao gênero humano, será que o "sobrinho" é tão desvirtuado assim? Não seria o seu sobreviver, trazendo ilusória satisfação a uns, e assumindo as suas patifarias: virtudes? O filósofo que o interloca diria: "Não". Ele mesmo diria: "Sim". Mas o Gênero Humano o absolve, pois, ele sobrevive. Afinal o seu pecado não é tão grave assim.

Bibliografia

DIDEROT, Denis. Quatres Contes. Gèneve: Librarie Droz, 1964.

FONTES, L. R. S. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.

DIDEROT, Denis. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores). http://groups.google.com/group/digitalsource



[1] Mestre em filosofia pela PUC – Campinas, professor da Faculdade Adventista de Hortolândia.

[2] Diderot, Diálogo com Catarina II. Cap. 7

[3] DIDEROT, Denis. Quatres Contes. Gèneve: Librarie Droz, 1964.

[4] IDEM.

[5] IDEM.