O SISTEMA PRISIONAL EM CRISE
Por Adriana Azevedo de Araujo Lima | 01/09/2010 | DireitoO SISTEMA PRISIONAL EM CRISE
Um breve estudo sobre a Evolução da Pena
Adriana Azevedo de Araujo
Wilson Moura de Araujo
Antes de adentrar no assunto proposto, far-se-á um breve passeio sobre a história da pena. Para tanto, deve-se remeter a autores consagrados no meio acadêmico, tais como Focault, Garófalo, Lombroso e Zaffaroni, a partir dos quais surge a idéia da pena como fruto de uma tentativa de apaziguamento social, que emerge para conter, ou disciplinar a sociedade, através da punição aplicada aos infratores da lei existente. A pena, nessa instância, apresentava dois importantes objetivos, ambos de caráter repressivo, e assim permanecem até os dias atuais.
Embora não hierarquizados por valor ou momento de atuação, pode-se citar como primeiro o objetivo punitivo, ou corretivo, que castiga àqueles que transgridem e ameaçam a paz social. O segundo objetivo é o exemplar, ou neutralizador, pois com a pena aplicada, inibe-se a repetição da ação delituosa pelos demais membros daquela sociedade, que passam a temer pelos castigos.
Uma das primeiras formas de aplicação das penas refere-se ao acordo para conflitos que existia entre as sociedades primitivas. Consideradas grupos homogêneos, quando um membro do grupo sofria um atentado, ou era executado, todos os membros daquele grupo sentiam-se na obrigação de revidar contra a tribo que executara a ação. Assim, as sociedades tribais viviam em guerra e a pena pelo crime não era aplicada apenas ao seu infrator, mas a todo o grupo ao qual este pertencia.
Na tentativa de diminuir o número de pessoas dizimadas, passou-se a adotar o Código de Hamurabi, em que a pena era aplicada de acordo com o delito, com a adoção da teoria "olho por olho, dente por dente". O criminoso pagaria na mesma medida pelo crime efetuado. A pena aplicada em tal situação era similar ao resultado do crime cometido. Entendia-se que a dor causada à família enlutada deveria ser compartilhada pela família daquele que provocara tal sentimento.
Com isso, o número de inocentes mortos era reduzido de maneira surpreendente, mas havia ainda um problema, pois o poder era delegado a qualquer membro da sociedade que, com o sentimento de justiça aflorado, poderia, per si, aplicá-la. A justiça estava perdendo o seu significado em favor da vingança. Foi então que os eclesiásticos, tentando resgatar o poder involuntariamente partilhado, reuniram-se em torno da adoção do "tempo para reflexão".
"Jogado na solidão o condenado reflete. Colocado a sós em presença de seu crime, ele aprende a odiá-lo e se sua alma ainda não estiver empedernida pelo mal é no isolamento que o remorso virá assaltá-lo" (BALTARD apud FOUCAULT, 1987:199). Aquele indivíduo que cometesse atrocidades que atentassem contra a paz social, permaneceria enclausurado até que, sendo julgado e condenado, pagaria pela pena imposta, que era, geralmente, a capital. Era uma tentativa de converter mais fiéis, pois se o réu se dissesse arrependido, haveria uma possibilidade (que era maior ou menor de acordo com o delito) de ser perdoado, na condição de se converter e prestar serviços forçados à Igreja ou ao Estado. Quando isso não era possível, a própria Igreja o executava.
A partir deste "tempo para reflexão", percebeu-se que a simples reclusão já era um castigo e na maior parte das sociedades a pena capital foi abolida. Dada a miséria vivida por algumas camadas sociais, várias pessoas passaram a cometer atos criminosos para alcançar o direito de serem encarceradas, pois dessa forma teriam pelo menos uma refeição diária e um teto gratuito e seguro, sob o qual poderiam repousar por um determinado tempo. O Estado passou a perceber que isso geraria ônus e então instituiu a fiança, ou seja, a família do encarcerado teria que pagar para recebê-lo de volta, caso contrário, poderia ser executado ou permanecer recluso por longo período.
Criou-se o sistema prisional com fins lucrativos para o Estado. O crime passou a gerar bônus, ao invés de ônus. Contudo, a partir da desigualdade social crescente, foi necessária a criação de uma nova instituição, a polícia, que servia para conter os crimes contra a propriedade. De acordo com FOUCAULT apud KOLKER (2004:164), surgia um novo sistema, chamado "justiça-polícia-prisão".
De acordo com KOLKER (2004), a prisão passou por uma transformação de acordo com o sistema político vigente, ou de acordo com as exigências do sistema econômico predominante na sociedade. Dessa forma, no período feudal, os presos serviam de atração em praça pública, com a sanção através de suplícios e adoção da pena capital; os presos poderiam servir de mão-de-obra barata (como nos fins do século XVIII), ou atuarem como escravos (nas sociedades com economia escravista, ainda no mesmo século), ou ainda, tal como conhecemos nos dias atuais, serem instrumentos de aumento na economia monetária (através das fianças e indenizações).
O que interessa para o Estado, enquanto ente legitimado para manter a paz e a ordem social, é que o preso lhe dê algum tipo de retorno, senão financeiro, moral, através do fortalecimento da confiança dos demais membros da sociedade. O que prevalece nos dias atuais é a prisão que serve "para administrar, seja por via da correção, seja por via da neutralização, as classes tidas como perigosas" (KOLKER, 2004:158). Ou, como afirma FOUCAULT (1987:195): "uma justiça que se diz ?igual?, um aparelho judiciário que se pretende ?autônomo?, mas que é investido pelas assimetrias das sujeições disciplinares, tal é a conjunção do nascimento das prisões, ?pena das sociedades civilizadas? ".
O sistema permanece basicamente dessa forma até hoje, mas há um agravante no que concerne aos momentos da entrada e da saída do preso na penitenciária. A maior parte do judiciário não costuma aplicar penas alternativas, que poderiam ser convertidas em benefícios para a sociedade e ressocialização para o indivíduo condenado. Este, muitas vezes, adentra ao sistema prisional por um ato delituoso leve e sai totalmente revoltado com o modo como foi tratado intra-prisão. Tem-se assim um indivíduo estigmatizado, à margem da sociedade, sem garantias empregatícias ou de qualquer outro tipo, que por ter sido compelido pelos colegas de prisão, pode ter se tornado um exímio aprendiz, apto a praticar crimes maiores do que aquele inicial.
Como uma dentre as soluções, e com base em BALTARD apud FOUCAULT (1987:198-9), FOUCAULT afirma: "A prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre numa certa especialização, é ?onidisciplinar?. Além disso a prisão é sem exterior nem lacuna: não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante."
Esta é a história do nosso sistema prisional, um depósito de personas non gratas, que a sociedade não quer por perto. Amontoadas, enjauladas, em espaços cada vez mais insalubres, alimentadas por um sentimento de revolta, que pode fazer crescer valores opostos àqueles que sempre aprenderam como positivos e necessários para um bom relacionamento social. Mas com uma certeza: caso consigam sobreviver ao período de reclusão legalmente imposto, estarão livres para exercitar tudo o que aprenderam com a experiência no "Espaço de Reeducação e Reintegração Social", vulgarmente conhecido por cadeia ou, no sentido mais coloquial, xilindró, mantido pelos tributos pagos por nós, ditos "cidadãos de bem", ao Estado. Como bem cita FOUCAULT (1987:210): "A prática penal, tecnologia sábia, rentabiliza o capital investido no sistema prisional e a construção de pesadas prisões".
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. Instituições completas e austeras. In: Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 195-214.
KOLKER, Tania. A atuação dos psicólogos no sistema penal. In: GONÇALVES, Hebe Signorine & BRANDÃO, Eduardo Ponte (org.). Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Nau Ed., 2004. p. 157-204.