O Sétimo Cachorrinho

Por JMR | 05/07/2011 | Crônicas

Entre outras atividades desenvolvidas por Raul ao longo da vida, destacou-se certa vez uma "clínica" para cuidar de idosos. Funcionava assim: contatado por pessoas idosas ou seus parentes, ele e sua sócia iam às residências desempenhar as mais diversas atividades, como fazer compras, realizar serviços e manutenções simples. Na maior parte do tempo, contudo, o trabalho era bastante tranquilo, já que os clientes apenas necessitavam de uma companhia para conversar e acompanhá-los em pequenos passeios e banhos de sol.

Mas eis que uma das clientes, Dona Cecília, possuía uma cadelinha poodle. Certa vez, a poodle engravidou e Dona Cecília solicitou a Raul que entrasse em contato com clínicas veterinárias da região e pesquisasse preços para realização do parto dos cãezinhos. Raul constatou, assim, que o preço cobrado era geralmente muito caro ? cerca de R$ 100 por filhote que sobrevivesse ? e, sempre preparado para qualquer novo desafio, se ofereceu para acompanhar o parto cobrando apenas uma taxa módica de R$ 50, independentemente da quantidade de nascituros. Afinal, assistir o nascimento de cachorros deveria ser tarefa bem fácil ? quantos não nascem e sobrevivem sem nenhum cuidado? Dada a confiança que a velha senhora depositava nele, a oferta foi prontamente aceita.

Chegado o dia do grande acontecimento, Raul pegou dinheiro com Dona Cecília para cuidar dos preparativos: comprou toalhas, luvas, máscara cirúrgica, tesoura, algodão, gazes, talco, esparadrapo e até avental. Certamente a velha senhora ficaria orgulhosa de seu alto grau de profissionalismo!

Para realização do trabalho, Raul instalou a poodle, cuidadosa e confortavelmente, num dos quartos da casa. Dona Cecília ficaria na sala, pois, sendo extremamente impressionável, não aguentaria acompanhar a cena (ou, nas palavras diretas de Raul, "ela tinha nojo"). O combinado era que, à medida que os cachorrinhos fossem nascendo, Raul narraria os fatos a Dona Cecília, informando o estado dos mesmos, tamanho, se tudo estava transcorrendo bem e os procedimentos que adotava.

Após tudo preparado, Raul não teve que esperar muito para o parto ter início ? de fato já era o momento, parecia até que a poodle vinha aguardando seu "médico" para entregar-lhe seus rebentos. Nasceu, assim, o primeiro cachorrinho, saudável. Raul secou o pobre cuidadosamente, com a tesoura cortou a ponta do rabinho, para que se formasse o característico "pompom" quando o filhote crescesse, fez um curativo e colocou-o na cestinha, aguardando pelos irmãos. Veio o segundo, o terceiro... E o procedimento foi se repetindo, contando-se seis cãezinhos, todos saudáveis. Raul narrava os fatos com o máximo profissionalismo a Dona Cecília, que, impressionada e feliz, ouvia tudo ansiosamente caminhando pela sala ao lado.

O parto transcorria tranquilo, até que nasceu o sétimo cachorrinho. Totalmente estranho, diferente dos demais, escuro, maior, em nada parecido com um poodle. Raul foi tomado pela desconfiança - que aberração seria aquela? Um cachorro mutante? Sua imaginação fértil não chegou a conjecturar muito a respeito, pois já estava cansado e o animalzinho, como os demais, necessitava de cuidados. Logo após secá-lo e constatar que o bichinho era saudável, Raul pegou a tesoura para cortar a ponta do rabinho. Porém, desta vez, a tesoura recusava-se a fazer o trabalho, já cega pelos cortes anteriores. As lâminas não cortavam, as duas pontas dobravam-se sobre o rabo do já aflito cãozinho. Raul continuava tentando, sem conseguir sucesso e percebendo que estava causando vários ferimentos no rabinho sem conseguir cortá-lo. Isso o deixou nervoso, fazendo com que tentasse ainda com mais afinco, repetidas vezes, sem sequer olhar o que estava fazendo. Foi assim que, num gesto forte e decisivo, porém com os olhos fechados, conseguiu realizar o corte. Ao abrir os olhos, todavia, grande lhe foi o susto: não havia cortado apenas a ponta, mas todo o rabo do cachorro. Mais que isso: o corte foi tão eficaz e incisivo que não só extraiu-lhe todo o rabo, mas parte do traseiro do pobre animal, que agora se contorcia em dores! O sangue começou a jorrar e Raul suava frio. O que fazer?

Adaptabilidade, criatividade, capacidade de raciocínio, são atributos necessários às pessoas que conseguem resolver problemas difíceis e sair de situações complicadas. Raul encarou o problema de frente. Primeiro, cuidou de omitir o nascimento do sétimo cachorrinho a Dona Cecília, disse apenas que, pelo visto, o parto tinha acabado e que ele estava fazendo uma avaliação dos nascituros. Enquanto isso, preparava um curativo no grave ferimento que havia causado ao estranho filhote: fez uma verdadeira frauda para o animal, no intuito de estancar o sangue. Sabia, porém, que não poderia apresentar um ser naquele estado a Dona Cecília, pois ela jamais entenderia! Nem mesmo ele tinha certeza se o filhote sobreviveria, já que perdera muito sangue e mostrava-se sem forças. O que fazer?

Raul recolheu as gazes, algodão e toalhas sujas, deixando tudo pronto para que Dona Cecília tivesse uma boa visão de seu profissionalismo e ficasse feliz com seus novos animais de estimação. Sabendo que não poderia deixar ela ciente de seu fracasso com o sétimo cãozinho, decidiu tomar uma atitude drástica: colocou o pobre animal, já desfalecido, no bolso de sua jaqueta e fingiu ignorar esse "detalhe técnico" da operação realizada.

Feliz e entretida ao ver sua poodle com seis lindos filhotinhos, Dona Cecília pagou o apressado Raul, que prontamente se retirou em direção à clínica veterinária mais próxima. Não queria ficar com encargo de consciência e nem teria coragem de jogar o pobre e sofrido animal que trazia em seu bolso no lixo, ou matá-lo de uma vez. Explicar ao assombrado veterinário o que havia acontecido foi uma tarefa extremamente incômoda, até mesmo humilhante para ele. O veterinário decidiu aceitar o pobre animal e ver o que poderia fazer, mas cobrou R$ 50 de Raul, justamente tudo que ele tinha ganho pelo parto. Se era esse o preço a pagar pelo desencargo de consciência, que fosse. Raul pagou, deixou o animal e foi para casa em passo apressado, como se assim pudesse esquecer mais facilmente a fracassada experiência.

No dia seguinte, ao passar novamente pela clínica veterinária, foi informado da morte do cãozinho. Isso não lhe causou surpresa, afinal o pobre já estava semimorto quando chegou à clínica. De fato, talvez tenha sido melhor assim. Afinal, não seria possível aparecer, depois, com um filhote naquele estado para Dona Cecília e confessar o ocorrido. Perderia a confiança da senhora, certamente ela não o contrataria mais e ainda falaria mal dele para todos os conhecidos. Além disso, se o animal deformado sobrevivesse, quem iria ficar com um cão sem rabo e com "meia-bunda"? Se Raul aceitasse essa tarefa, seria difícil se esquivar das perguntas e chacotas dos curiosos, teria que carregar esse fardo, uma prova de erro seu, por muitos e muitos anos. A morte do estranho filhote foi, assim, uma bênção.

Mas por que esse sétimo filhote era tão diferente de seus irmãos? Seu nascimento seria um presságio de que as coisas passariam a dar erradas, como de fato foi sua curta existência? Sempre inquieto e curioso, Raul começou a juntar informações a respeito, conversando com o veterinário que havia recebido a infeliz criatura. Ficou sabendo que os cães, ao contrário do ser humano, podem realizar concepção dupla, isto é, uma cadela pode ter filhotes de diferentes cachorros num mesmo parto. Mais tarde, investigando na casa de Dona Cecília, constatou que a poodle havia cometido o ato, de forma escondida de sua dona, com o pastor alemão do vizinho, pela cerca do quintal. Isso explicava o nascimento de um filhote tão diferente dos demais ? esses sim, legítimos filhos de poodle, decorrentes de encontro devidamente escolhido e supervisionado por Dona Cecília.

E as falhas de Raul nessa infeliz experiência com parto canino não terminaram por aí. Ficou sabendo também que, para a formação dos famosos pompons no rabo dos poodles, é necessário que o corte no rabinho dos nascituros seja realizado em sua terceira auréola. Em todos os seis filhotes sobreviventes, Raul realizou o corte na segunda auréola! O destino reservava aos mesmos, no máximo, um tufo emaranhado de pêlos, jamais um pompom. Nas palavras de Raul, seriam todos "cachorros zoados".

Felizmente, com o passar do tempo, Raul mudou novamente de trabalho e nunca mais viu Dona Cecília, que a esta altura já é morta. Também não chegou a ver o resultado de seu trabalho, não viu como os poodles (zoados) ficaram. Mas ele sabe que o caminho da sabedoria é não ter medo de errar. E isso é o que lhe importa.