O sertão de Euclydes da Cunha

Por Mario Henrique R. Suzigan | 05/09/2011 | Literatura


Faz 10 meses que terminei de ler "Os Sertões" de Euclydes da Cunha. Talvez, uma das melhores leituras que fiz na vida. E, com certeza, uma das mais difíceis. Porém, nada insuperável.

O livro é um retrato científico-histórico-jornalístico da Guerra de Canudos com detalhes impressionantes. A narrativa é recheada de opiniões ácidas e pessimismo em relação ao ser humano, frutos da própria angústia do autor, que fez parte da última expedição militar responsável por exterminar a comunidade de Canudos.

Para quem não sabe, a Guerra de Canudos foi deflagrada contra uma comunidade, situada no interior do estado da Bahia, entre os anos de 1896 e 1897, pela recém instaurada República Brasileira.

É muito dificil de caracterizar a comunidade de Canudos, mas existe unanimidade entre historiadores para afirmar que era uma comunidade religiosa, liderada por um líder fanático ? Antônio Conselheiro ? que não aceitava o fim da monarquia e a instituição do casamento civil, e profetizava que essas e outras características do novo regime de governo eram sinais dos "fins dos tempos".

Também é cediço que a comunidade era autosustentável e seus membros possuíam passados diversos. Do pistoleiro e prostituta que procuravam, nas palavras de Antônio Conselheiro, rendenção por seus pecados ao homem simples do campo que, desiludido com a igreja católica e as arbitrariedades das oligarquias locais, procurava algum sentido para a sua existência. Em suma, todos eram bem vindos a Canudos.

Em que pese o fanatismo religioso, pode-se afirmar que a comunidade de Canudos e seus seguidores não ofereciam riscos à recém instaurada República. Todavia, a comunidade era uma afronta à igreja católica e ao poder das oligarquias locais, bases de sustentação do novo governo. E, devido a essa ameaça à supremacia dessas classes, o Estado declarou guerra à comunidade de Canudos, cuminando em seu completo extermíno.

É verdade que as primeiras cem páginas se referem à descrição do semi-árido do Nordeste. Concordo que não há nada de provocativo ou intrigante nessas descrições de relevo, clima, mata e fauna. Contudo, essas descrições são essenciais para entender os capítulos subsequentes, que podem ser dividos em dois blocos: o homem e a guerra.

No capítulo "O homem", o autor se dedica a descrever quem eram os habitantes que compunham a comunidade de Canudos. Nesse sentido, traça um perfil determinista de como a região semi-árida do Nordeste determina um homem que é extremamente místico e, ao mesmo tempo, um sobrevivente de um meio inóspito.

Com essas duas características delineadas ? misticismo e condições naturais adversas ? conclui-se que a comunidade de Canudos, sem qualquer intenção beligerante, criou um exército de fanáticos algozes. E, também por esse motivo, o exército brasileiro sofreu, em condições similares aos americanos na Guerra do Vietnã, para aniquilar a comunidade de Canudos. Faço essa comparação porque, da mesma forma que o exército americano, o exército brasileiro travou uma guerra com um inimigo altamente motivado e adaptado ao território inóspito. Enquanto os americanos foram destroçados pelos vietnamitas durante dez anos, o oficiais brasileiros insistiram, a base da pólovora e canhão contra foices e paus, até a aniquilação completa de Canudos.

Caso o leitor consiga ultrapassar esses dois primeiros capítulos ? "A terra" e "O homem" ? reconhecidamente díficeis de serem lidos, não terá problemas para ler o restante do livro, que se trata do conflito propriamente.

O restante do livro são seis capítulos ? "A luta", "A travessia do Cambaio", "Expedição Moreira César", "Quarta expedição", "Nova fase de luta" e "Últimos dias" ? que descrevem como a República Brasileira iniciou um conflito com prepotência e muita incompetência e o terminou com muita truculência e barbárie em face dos seus "inimigos".

Após a tomada de Canudos, o autor narra com extrema frieza o que os oficiais do exército brasileiro achavam das degolações dos prisioneiros de guerra, uma vez que a comunidade já havia sido dominada e não se sabia o que fazer com os vencidos. Em uma das passagens do livro, justificava-se a necessidade de degola dos "perdedores" com o exemplo de uma avó, que procurava desesperadamente, como um animal ávido, restos de comida para dar aos dois netos que passavam fome. Na "nobre" lógica militar, a degola de prisioneiros era mais digna do que mendicância pelos escombros da guerra.


"A degolação era, por isto, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança. Dente por dente. Naqueles ares pairava, ainda, a poeira de Moreira César, queimado; devia-se queimar. Adiante, o arcabouço decapitado de Tamarindo; devia-se degolar. A repressão tinha dois pólos ? o incêndio e a faca."[1]


Na verdade, tais comentários fascínoras refletiam a raiva consciente e inconsciente dos militares, fruto do longo conflito com a comunidade de Canudos, que teve como final um pequeno saldo positivo, resumido em quatro expedições militares, muitas baixas e a destruição de qualquer vestígio da comunidade que "desafiou" a República.

Decerto, se o livro não cultivar o leitor pela boa prosa, o cultivará pelos temas de interesse universal e atual que aborda: fanatismo religioso, o papel do Estado e a elite que o controla, estratégias de guerras em território inimigo, propaganda ideológica, etc. Esses são só alguns temas que o autor disserta com maestria nas entrelinhas de um diário preciso sobre uma guerra apolcalítica.

Por fim, ressalta-se que os temas abordados no livro são muito atuais, principalmente no Brasil.

Desde o início do século XXI, o Brasil passa por situações similares ao início da República, em que novos paradigmas na sociedade se atritam com setores mais conservadores. Seja do surgimento de uma nova classe média e o, conseqüente, desconforto de uma elite tacanha, seja no conflito entre um arcaico e novo conceito de família e relacionamentos humanos. Por esses motivos suscitados e outros sequer tangenciados, ler "Os Sertões" é fazer uma leitura atual (velha) sobre a sociedade brasileira.

Como citar: SUZIGAN, Mario Henrique Ribeiro. O sertão de Euclydes da Cunha. Fonte:http://suziganadvocacia.webnode.com

[1] CUNHA, Euclydes da. Os Sertões. 39ª Edição. Publifolha, 2000. Página 478.