O Século XX e suas questões a partir de "O corpo e o enigma sexual" de Gerard Vincent

Por Fabiane Tamara Rossi | 17/04/2010 | História

            O século XX passou e trouxe consigo várias mudanças e inovações na forma de vivermos, de nos vermos e vermos o outro. As facilidades de comunicação, locomoção, a mudança na noção do tempo entre outros assuntos, influenciaram todos os setores da sociedade, inclusive nas Ciências Humanas, e, neste caso, na História enquanto ciência: A História Nova, localizada primeiramente na França, mas que já ganhou adeptos em todo o mundo, expandiu o olhar dos historiadores para outros setores sociais, para além do econômico e político, priorizando a história do cotidiano social e suas questões.

            Uma importante iniciativa destes historiadores da História Nova foi a elaboração da bastante criticada coleção “História da Vida Privada”, na qual todas as questões referentes ao cotidiano europeu eram problematizadas.

Para este artigo escolheu-se um texto em específico nessa tão comentada coleção:  “O corpo e o enigma sexual", escrito por Gérard Vincent e encontrado no quinto volume da série que trata de questões do século XX – as quais podem ser compreendidas ou estendidas até para os dias atuais, visto a proximidade de tempo que vivemos entre séculos XX e XXI.

            Neste texto, Gérard discute a linguagem do século XX em relação ao corpo, abordando diversos temas como o culto ao corpo, as formas de alimentação, as doenças, a velhice, a morte, o orgasmo, o homossexualismo, a transsexualidade, a pornografia e a prostituição. Utiliza-se para isso de fontes como as ilustrações, estatísticas e comparações, bem como recortes de jornais, dossiês e documentos médicos, fazendo ganchos interdisciplinares (antropologia, psicologia, economia, demografia, sociologia).

            Vincent mostra, através de comparações, as mudanças do modo de pensar o corpo ao longo dos séculos, apontando para a conclusão de que a sociedade no século XX é mais narcisista e individualista que as outras passadas: o culto ao corpo (tanto seu exterior quanto seu interior) permeia a sociedade com suas dietas e novos esportes e ginásticas, impostos, segundo o autor, pela mídia (a estética da magreza às mulheres, por exemplo).

            A ânsia em obter o corpo perfeito fez a sociedade do século XX buscar novas formas de se alimentar: o açúcar, ouro branco em outros séculos, vira um grande inimigo público, na ânsia de buscar uma alimentação mais saudável e menos patológica: ter barriga, para uma pessoa do século XX, é ameaçador: criam-se novas doenças (bulimia, anorexia). Vincent também constata a variação na alimentação segundo os meios sociais e a proliferação dos fast-foods (a alimentação submetida ao ritmo de trabalho). Por que se come? Não só interesse nutricional, mas também alimentos que nos causam euforia, como estimulantes e estupefantes. O que se come? Coisas atraentes, mas sempre com medo da "obesidade" e das doenças.

            As doenças são outro assunto trabalhado por Vincent, mostrando a evolução da medicina no século XX: da dor aos analgésicos, do médico de família ou especialista, do paciente ao cliente, e da criação de clínicas psiquiátricas e sanatórios (separação entre medicina e psicologia ou psiquiatria). Ressalta a diminuição de número de mortes e o aumento da expectativa de vida, bem como trabalha com o conceito de "domesticação da morte": no século XX perde-se a noção de vida após a morte, racionaliza-a, porém esta constitui-se num assunto pertencente ao mundo dos segredos, não se fala sobre ela: "o moribundo é privado de sua morte, e a sociedade de seu luto. Só se chora em âmbito privado" (p.340). A morte ocorre com mais freqüência nos meios rurais, em aposentados e também com pessoas que não possuem um cônjuge ao seu lado (vale mais para os homens que para as mulheres).

            O lugar para se morrer no século XX são os hospitais e clínicas (80% dos óbitos), tendo mais chances de sobrevivência as pessoas mais jovens e com melhores condições sociais. O universo de convivência do moribundo passa a ser o médico, a família e o social (tabus e imperativos). Mudam-se os padrões de vida e morte: quando um paciente está realmente morto?

            Discute, então, a eutanásia (ativa e passiva), prática proibida por lei e posta no campo do segredo que, segundo Vincent, deve permanecer lá: "A decisão cabe à consciência dos personagens dessa ciranda macabra: o doente, o médico, o parente, o amigo" (p.345). Discute também o suicídio, considerado um ato de coragem para a psicologia e um ato de covardia para a Igreja, porém também cercado pelo segredo.

            Vincent aponta opções do que se fazer com o morto: enterro, cremação, o tempo de luto, o túmulo, a conservação da memória, a herança. No caso da herança, constata que no século XX, passa a ser transferida quase no final da vida, quanto que antigamente recebia-a no início da vida ativa; e que não consiste apenas em bens econômicos, mas também na perpetuação da família, conjunto de bens carregados de afetividade.

            Segundo Vincent, no século XX, com aumento da expectativa de vida (de 60 para 80 anos), há uma "proliferação dos velhos" e seu universo diferenciado. Não se tem mais a noção do velho como detentor de sabedoria e conhecimento (com exceção da política): a aposentadoria é a única saída (esta também influenciada pelas desigualdades sociais: quem é mais rico se aposenta antes e com melhores salários). Vincent ressalta a importância da família para o envelhecer bem e enfatiza o crescente comércio de produtos para a terceira idade, como tinturas, cirurgias, nutricionistas. Bem como a criação de clubes da terceira idade e universidades para idosos.      

            Outro tema discutido por Vincent é a história da sexualidade: orgasmo, homossexualidade, bissexualidade, transsexualidade, pornografia e a prostituição no século XX. A história da sexualidade evidencia a quebra de tabus sexuais, a maioria impostos pela Igreja, transgredidos ao longo do século (o orgasmo feminino ou o sexo para procriação, por exemplo). É com a Revolução Cultural das décadas de 1950 e 1960 que a sexualidade assume a espera pública, não sendo mais considerada uma doença, mas parte integrante das sensibilidades humanas. Essa revolução se dá, em grande parte, pelas inovações na psicologia realizadas por Freud. Na segunda metade do século XX surgem os sexólogos, e com eles, novas formas de ver o orgasmo feminino e de encarar outros assuntos referentes ao campo sexual, como a masturbação, não sendo mais considerada como um pecado mas sim, como parte integrante da realidade biológica do  ser humano.

            Por que  ficamos sexualmente excitados? Vingança, traumas, hostilidade, risco, ilusão... Freud usa o termo "fantasmagonias" para caracterizar esse conjunto de sensibilidades humanas: "...graças ao fantasma, o adulto, ex-criança vitimada. Encontra sua vingança na vitória erótica" (361). Entre os fantasmas existentes, Vincent coloca o da violação como o mais freqüente (desejada tanto por homens como por mulheres); mas também há o incesto e o sadomasoquismo.

            No século XX há uma transgressão de limites entre o "ser homem" e o "ser mulher", os homens incorporam mais sensibilidades femininas do que ao contrário. Vive-se no século XX o amantismo e uma maior tolerância entre o casal, buscando o orgasmo sem inportar-se para quem assume qual papel. Vincent constata uma mudança na atitude das mulheres: o desejo por homens violentos, que "garantam" seu prazer. O controle sexual se reintroduz, substituindo o "dever conjugal" de outrora pelo "direito (dever) ao orgasmo”.

            O campo sexual também pertence aos homossexuais, visto como crime para uns e doença para outros, é uma prática antiga, praticada livremente na Grécia Antiga e posta no campo do segredo pela cultura judáico-cristã. Após a segunda metade do século XX os homossexuais saem da clandestinidade, passam a fazer parte das sensibilidades humanas.

            Na segunda metade do século XX, as primeiras cirurgias de mudança de sexo causam debates entre o Direito e a Psicologia sobre a transsexualidade e a identidade sexual. Segundo Freud, a cirurgia não era uma mudança de sexo, apenas uma retificação. As cirurgias enfim são liberadas, tem a haver com a emancipação da sexualidade.

            A pornografia também é impulsionada com o advento da literatura pornográfica (Marquês de Sade é um de seus percursores). Vincent ressalta a fluida fronteira entre o erotismo (permitido) e a pornografia (condenada). É no século XX que proliferam os sex-shops e as salas de projeção de "filmes X".

            Outro tema discutido por Vincent é a antiga prática da prostituição, profissão que requer, segundo o autor,  se não sigilo, pela menos descrição. A prática da prostituição fica ameaçada em razão da epidemia de sífilis, que só se acalma após a segunda metade do século XX, com o surgimento dos antibióticos.

            Vincent conclui seu texto, tentando afirmar a tese de Philippe Ariès de que a humanidade tende para a constituição de uma sociedade unissex., na qual dá-se a intercambiação de papéis, a não-polarização dos papéis de "homem" e "mulher": um futuro sem segregações em razão do sexo e onde tanto a mulher estará inserida no campo do homem, como o homem executará tarefas típicas do universo feminino.

 

BIBLIOGRAFIA:

 

GERÁRD, Vincent. O corpo e o enigma sexual. IN: PROST, A & GERÁRD, V. História da Vida Privada 5. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.