O relógio
Por Romano Dazzi | 18/05/2009 | CrônicasO RELÓGIO
De Romano Dazzi
Uma das experiências mais fascinantes, na minha infância, era ficar na loja do relojoeiro, ao lado de minha casa.
Ele me permitia ficar lá pelo tempo que eu quisesse, desde que não mexesse em nada.
E esta imposição era muito difícil de obedecer.
As mãos são um meio de aquisição de informações muito importante para a criança; para entender melhor o que está à sua volta, ela precisa tocar, sentir, mexer - e eventualmente quebrar .
E quando se trata de relógios, há sempre muito para quebrar...
O meu relojoeiro consertava qualquer relógio.
Mantinha na parede, funcionando e com a hora correta, uns vinte cucos suíços, de todo tipo e tamanho, e com vozes diferentes.
Na hora certa, eles iniciavam uma conversação - pior ainda - um bate-boca barulhento, saindo e entrando das casinhas;
Eu os olhava fascinado enquanto se inclinavam cumprimentando-se e tentava imaginar o que estariam dizendo um ao outro naquelas rápidas conversas.
Nunca consegui entender nada; provavelmente falavam alemão.
Depois, tudo voltava ao normal; o dono puxava as correntinhas douradas, fazendo subir os contrapesos em forma de pinha, prontos para a representação seguinte.
A curiosidade de ver a repetição desse acontecimento levou-me mais de uma vez a ficar por lá, esperando a hora passar.
Foi aí que percebi quanto pode demorar uma única hora.
Um dia passa depressa, porque você tem montes de tarefas; mas uma hora, minuto por minuto, é bem mais demorada, acredite.
Às vezes,meu relojoeiro me levava para consertar o relógio da fábrica .
Dele também eu gostava muito; era enorme, branco, imponente; servia para controlar a entrada e saída dos operários.
Quando a fábrica estava parada, o tique-taque dele era altíssimo, poderoso.
Durante o dia, de qualquer lugar do salão, onde trabalhavam duzentas pessoas, os longos ponteiros pretos podiam ser vistos, avançando lentamente, mas constantemente, como se estivessem empurrando o destino..
Todos sabiam, o tempo todo, quanto faltava exatamente, para a ruidosa saída.
Mais tarde, quando a modernidade chegou e os grandes mostradores sumiram, percebi que todos nós tínhamos perdido um parâmetro importante, deixando a cada um a responsabilidade de ler o seu próprio tempo.
Aí, sem poder consultar o grande relógio de parede, você perguntava as horas a um grupo de pessoas e as respostas nunca coincidiam: são 3:15 – são 3:13 – são 3:17 – são 3:20......Cada um regulando-se por um tempo próprio, um deles adiantado, pensando estar atrasado, outro atrasadíssimo, tomando tempo ..
Hoje, não. Hoje estamos todos com tempo certo: hora exata, minutos e segundos perfeitamente ajustados.
Até décimos de segundos, em alguns relógios, como se estivéssemos sempre empenhados em uma corrida de formula um.
– Senhor José, o senhor está chegando 23 centésimos de segundo atrasado, com esses papéis. Da próxima vez, não vamos perdoar...
Mas não se deixem enganar; todos os relógios, menos um, medem um tempo fictício, que não se aplica a nenhum de nós.
Tentamos agarrar, na divisão e na repetição das horas e dos minutos, uma entidade ampla e impalpável, que nos escapa sempre, a qualquer nossa tentativa de retê-la.
O tempo, medido pelos relógios, não é o nosso tempo, o tempo da nossa existência, da nossa respiração, do nosso batimento cardíaco; é um tempo imaterial, fluido, inexistente; uma ficção, que colocamos na parede, assim como outras, para fugir da nossa própria realidade.
O nosso tempo é limitado, escasso, fugidio.
Não se repete, como tentam nos convencer aqueles ponteiros que voltam e voltam e voltam.
Não se renova, só porque, após ter contado 24 horas, recomeçamos de zero.
Aquele passou, não volta mais.
Este é novo, e vai se acabar em um instante.
Por isso, todos os relógios são mentirosos – não merecem o menor crédito.
Menos um: o relógio de areia, também chamado de ampulheta.
Os gregos o chamavam de “clepsidra” ; a origem do nome é incerta:
pode vir de “clesis” – o chamado; ou de “cleptes” – o ladrão.
Como se vê, ambas servem. Eu opto pela segunda..
O tempo é realmente um ladrão...
A ampulheta, dizia eu, não mente.
Mostra o tempo que está escorrendo inelutavelmente, grãozinho a grãozinho.
Mostra o tempo que passou – que se transformou em um montinho de areia, porque você o perdeu , quer o tenha aproveitado bem, quer o tenha desperdiçado; e não o reencontrará - nunca mais.
Mostra o tempo que falta e tacitamente indica o que você pode – e deve – fazer com ele. Como um amigo verdadeiro, não lhe conta histórias, não encobre a realidade.
E alerta: “memento: tempus fugit” – lembre-se: o tempo foge.
Use-o, aproveite-o, abuse dele.
Faça de cada grãozinho, um momento inesquecível, colorido, barulhento, explodindo na noite, como um foguete de festa.
No grande relógio de areia que mede a nossa vida, só vemos quanta vida passou, quanta desperdiçamos. Não podemos ver quanta ainda passará.
Ninguém tem o poder de virá-lo, ninguém recomeça.
Apenas continua... até a areia toda se escoar.