O regionalismo na obra “Bichos” de Miguel Torga

Por antonia angelina | 08/11/2011 | Literatura

O REGIONALISMO NA OBRA “BICHOS” DE MIGUEL TORGA

 

Antonia Angelina dos Anjos Pinheiro¹

 

RESUMO: Apesar de não aceitar o termo “regionalismo”, a obra de Miguel Torga revela postura contraditória. Buscando identificar características regionalistas em sua obra, comprovada pelo forte sentimento de amor à terra, é que esse trabalho está subsidiado em pesquisa bibliográfica que auxilia nessa compreensão. Abordaremos a obra “Bichos” mas ressaltamos que essa temática pode ser encontrada na vasta produção literária de Miguel Torga o que só evidencia o apego às tradições, à terra, à sua gente, a elementos que só Torga numa intimidade profunda pode retratar com fidelidade e tornar visível aos olhos de todos.

PALAVRAS – CHAVE: Literatura regionalista. Miguel Torga. Terra.

 

1-INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por finalidade apresentar o estilo regionalista de Miguel Torga, apesar de combatido pelo próprio, mas que evidencia-se no sentimento telúrico, o amor à terra, analisado na obra Bichos, precisamente nos contos “Madalena” e “Vicente”. O que nos possibilita estudar e conhecer um pouco mais dessa grande expressão  artística portuguesa que foi o escritor Miguel Torga.

 

2- A DEFINIÇÃO DO QUE É REGIONAL NA OBRA “BICHOS” DE MIGUEL TORGA

 

Miguel Torga pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha nasceu em São Martinho de Anta na sua querida Trás- os –Montes, entre Vila Real e Bragança, situada entre uma zona fria e outra quente. “Um reino maravilhoso”, é assim que o autor descreve sua terra natal e que passa a exaltar em suas obras, descrevendo paisagens, citando costumes e crenças, revelando-nos personagens que representam seu povo simples e humilde, assim como ele .

________________________

  ¹Acadêmica do Curso de Letras da UVA, Habilitação em Língua Portuguesa regularmente matriculada na disciplina Literatura Portuguesa II.

Apesar de realizar literatura regionalista em que mostra o homem em conflito com a natureza, a terra, os elementos, e Deus, Miguel Torga não aceita a

denominação “escritor regionalista”, o que entra em contradição, quando lemos  suas obras.

Buscando achar semelhanças com a literatura regionalista brasileira temos que considerar que a mesma seguia duas linhas (uma rural, outra urbana) que a respeito comenta Afrânio Coutinho, (1997, p.264):

 

(...) em ambas, a preocupação dominante é o homem: de um lado, o homem em relação com o quadro em que se situa, a terra, o meio; é a corrente regionalista ou regional, na qual, em sua maioria, o homem é visto em conflito ou tragado pela terra  e seus elementos, uma terra hostil, violenta, superior às suas forças.

 

 

Se compararmos a definição de Afrânio Coutinho, sobre o regionalismo brasileiro, com as obras de Miguel Torga, aquelas em que há a exaltação da terra natal, a descrição de paisagens, de tradições peculiares a um povo, a observação  do clima, vegetação, do “modus vivendi” das pessoas, principalmente dentro da linha ruralista em que se baseava a maioria de suas obra, podemos afirmar que Miguel Torga faz sim, literatura regionalista, não necessariamente se prenda somente a este tema.

 

3- O SENTIMENTO TELÚRICO DO AUTOR NA OBRA BICHOS

 

Miguel Torga desde o início de sua produção literária assumiu tendência individualista e confessionalista  e que já eram-lhe visíveis mesmo quando ainda fazia parte da revista “Presença” em 1929, do qual se separou em 1930, alegando imposição de limites à liberdade de criação. O que revela muito do seu caráter artístico sempre preocupado com o fazer literário.  Para cada reedição do livro de contos “Bichos”, 1940, fez questão de rescrever cada uma delas, o que somam mais de vinte reedições ao todo.

Escolheu seu próprio estilo, independente até mesmo do movimento literário da época , o “Presencismo”.

Além do forte sentimento telúrico (o amor à terra ) é temática constante em suas obras os sentimento humanista, que consiste numa exaltação do homem como ser  louvável até mais do que os deuses, por enfrentar as dificuldades da terra, de se opor à própria Natureza e mesmo assim ser capaz  de semear  as serras cheias de penedos bravos, como fazem os homens transmontanos.

A terra é para Torga a fonte de forças, o ventre materno. Só com os pés fincados na sua terra de origem é possível compreender as condições humanas. Podemos observar essa característica nos contos de Torga. A  condição humana de suas personagens é sempre analisada no contato com a terra, que o autor conhece muito bem.

No conto “Madalena” do seu primeiro livro de contos, Bichos”, vemos logo no início a descrição da paisagem árida e hostil  que parece se opor a empreitada de Madalena.

 

Madalena arrastava-se a custo pelo íngreme carreiro cavado no granito, a tropeçar nos seixos britados por chancas e ferraduras milenárias. De vez em quando parava e, através dum postigo aberto na muralha das penedias, olhava o vale ao fundo, já muito longe, onde o corpo lhe pedira para ficar, à sombra de um castanheiro. O corpo. Porque a vontade fizera-a atravessar ligeira a frescura tentadora da veiga e meter-se animosa pela encosta acima. Tudo estava em Ordonho a tempo a sua hora. Por isso, era preciso reagir contra a própria natureza e andar para diante, custasse o que custasse. (BCHOS, 1983, p. 20)

 

 

Percebemos que Torga trata de detalhes de lugares (Roalde, Ordonho) que existem na sua Trás-os-Montes, do caráter conservador de sua aldeia, que até hoje cultiva uma tradição arcaica, agrícola e de pessoas humildes e solidárias.

Madalena empreita caminhada solitária, vencendo as adversidades da terra, subindo serras para chegar a seu destino e parir o seu filho longe de tudo e de todos. Sente sede e deseja fortemente “água da Tenaria”, só esta fonte é capaz de saciar sua sede. Com fortes dores tem o filho ali mesmo em meio a paisagem seca e estorricante e como “bicho” enterra com os pés o filho que nascera morto.

A solidão é sua única companheira e característica comum às personagens de Torga do qual comenta Massaud Moisés (2001, p. 262): “a solidão, a sensação do condenado a vibrar entre estímulos opostos e a buscar na terra  de origem um consolo utópico”.

Madalena sentia a necessidade de repor as energias e tomar a água da Tenaria, condições possíveis apenas de volta à aldeia: “Eram horas de regressar. Eram horas de voltar à aldeia e matar aquela sede sem fim na fonte fresca da Tenaria” (BICHOS, 1983, p. 29).

No conto Vicente, da mesma obra, podemos constatar a terra como ventre materno, a liberdade humana como direito inalienável dos homens.

BICHOS, apresenta personagens bichos com características humanas e humanos com características de bichos.

Vicente é um corvo que apresenta a insatisfação por está preso na Arca de Noé. Simboliza a insubmissão do homem aos elementos da natureza e ao próprio Deus. Sua condição só é entendida de volta ao “ventre quente da mãe”, porque “Miguel Torga é sempre o mesmo homem de pés fincados na terra transmontana, porque nela espera encontrar a explicação para a condição humana” (MOISÉS, 2001, p. 262).

Vicente deixa a Arca em busca de terra seca.

 

Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço fora devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. (...) Escolhera a liberdade, e aceitara desde cedo esse momento todas as consequências da opção. (...)  a total autonomia ad criatura em relação ao criador ... (...)Três vezes uma onda alta, num arranco de fim, lambeu as garras do corvo, mas três vezes recuou. A cada vaga, o coração frágil da Arca, dependente do coração resoluto de Vicente, estremeceu de terror. A morte temia a morte. Mas em breve se tornou evidente que o Senhor ia ceder. Que nada podia contra aquela vontade inabalável de ser livre. Que, para salvar a sua própria obra, fechava, melancolicamente, as comportas do céu. (BICHOS,1983, p.65)

 

Novamente percebemos a solidão da personagem, a volta à terra de origem, como explicação para a condição humana e o sentimento humanista, em que o ser humano é louvado, depois de vencer as dificuldades impostas pela Natureza e de questionar a divindade quanto ao livre arbítrio.

Para Torga o homem só é feliz se for livre na sua própria terra. Esse sentimento é expresso em “Diário V”, por causa da ordem de não poder deixar  Portugal durante a ditadura salazarista, uma das mais longas, em que teve muitas de sua obras apreendidas. A respeito comenta o autor:

 

 

Posso finalmente sair de Portugal, (...) mas já não me sinto preso na pátria onde vivo em desarmonia com os meus. Quando quiser, abro a porta e vou arejar. E o desespero tornou-se menos pungente e a vontade de abandonar o barco menos inadiável. O homem pode aguentar enormidades concretas, desde que sonhe alívios abstractos. O que ele não pode é viver sem nenhuma esperança. Mesmo que seja só a esperança de fugir...” (1949 apud RIBEIRO, 2001, p.11)

 

 

 

Nesta citação percebe-se uma alusão ao conto Vicente quando diz: “a vontade de abandonar o barco”.

Mas Portugal é o “ninho” a que se refere o autor, e do qual é retirado quando migra para o Brasil devido a má condições econômicas.

O ninho é também o aconchego do pintassilgo pequenino e depenado do conto “Jesus” da obra em questão.

Não foge à obra de Miguel Torga o retrato de sua terra. A  maior parte de suas características literárias estão vinculadas ao forte sentimento telúrico que evidencia-se na exaltação de sua terra natal, de suas tradições, de sua gente. Sempre preocupado em mostrar o homem na sua relação com a terra e o próprio meio.

 

CONCLUSÃO

Miguel Torga deseja escapar da imagem regionalista, mas é contradito pelas características presentes em suas obras. Nos contos analisados pudemos perceber seu amor à terra  e a preocupação em mostrar o homem em contato com  essa terra, com o meio em que está inserido. Sempre capaz de superar todas as adversidades, força que só é possível se seus pés estiverem fincados na terra transmontana, de onde vem toda explicação para a sua existência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

COUTINHO, Afrânio (dir); FARIA Eduardo de (co-dir). A Literatura no Brasil. 4 ed. São Paulo: Global, 1997.

 

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 31ed. São Paulo: Cultriz, 2001.

 

TORGA, Miguel. Bichos. 13 ed. Coimbra, 1983.

 

RIBEIRO, Carlos Leite. Portal CEN, 1998, Disponível em: http://www.caestamos.org./pesquisas_carlos_leite_ribeiro/miguel_torga.html.Acesso em: 07 jun. 2011.