O RECURSO DA INTERTEXTUALIDADE NO UNIVERSO DA LINGUAGEM
Por Claudimécia Brito Trancoso | 06/01/2015 | EducaçãoO RECURSO DA INTERTEXTUALIDADE NO UNIVERSO DA LINGUAGEM
Claudimécia Brito TRANCOSO[1]
RESUMO: A proposta é a de analisar alguns dos elementos intratextuais, extratextuais e intertextuais, estruturadores de diversos universos textuais, observando de que forma estes se interrelacionam e dialogam entre si, contribuindo para uma criação original, desvestida do velho e cristalizado aparato sígnico real. Pretende-se, ainda, analisar esses elementos presentes na Literatura Brasileira de forma que o diálogo seja estabelecido no envolvimento com os três elementos propostos.
PALAVRAS – CHAVE: Intratexto. Extratexto. Intertexto.
1 Introdução
Muitos são os mecanismos inseridos no universo da intertextualidade, capazes de estabelecer diálogos com o passado, com aspectos vindos, tanto de outros textos, quanto da própria realidade, carregada de valores e ideologias. As vertentes intertextuais tanto do intratexto como do extratexto fazem parte desse rol de elementos dialógicos e, como tais, são alvo de diversos estudos.
No entanto, apesar da grande variedade de pesquisas sobre esses mecanismos intertextuais, pode-se dizer que ainda existem controvérsias entre os críticos, no que diz respeito à valoração da obra e da relação que mantém com outros discursos literários.
Refletindo sobre a variedade de concepções que a intertextualidade pode assumir, este estudo pretende levantar dados que precedem o termo intertextualidade, e analisar a relação que existe entre o extratexto, o intratexto e o intertexto e de que forma esses elementos estão aplicados ao contexto de determinadas obras da Literatura Brasileira.
A partir de tal análise, objetiva-se mostrar os diversos valores incorporados pela intertextualidade. Valores esses que contribuem e muito para que a literatura, e também as outras artes, sejam constituídas em grandes objetos artísticos, provando, assim, que muitos autores buscam em suas leituras, seja de mundo ou de escrituras de outrem uma desconstrução, seguida de recriação e estruturação da obra de arte, tornando-a una e transfigurada do “real”.
2 Percurso diacrônico - histórico da intertextualidade
Como o percurso que envolve o fenômeno da intertextualidade não é restrito, é necessário compreender um pouco como surgiu tal conceito, como se manifesta e quais são os aspectos deste mecanismo, que encontra no diálogo entre diferentes textos e discursos, o seu modo de conceber a composição textual. A intertextualidade (e suas mais variadas manifestações) faz parte do projeto época-texto, fator de alta relevância para as primeiras atribuições dos sentidos herdados de outros espaços textuais e que se fez produto de intertextualidade. Num resgate a uma concepção posterior, dita por Bakhtin (apud BRAIT, 2007), a resposta é que tudo que se fala ou se escreve já foi dito ou escrito anteriormente.
Contudo nada mais coerente, no universo intertextual, do que uma retomada aos gregos, para mostrar a tão questionada busca do já escrito, a fim de construir uma literatura que dialoga com o seu tempo, podendo ser compreendida a partir de seu contexto. Pode-se, então, começar com o plagium, palavra que é de origem grega, significando, primeiramente, a comercialização escravocrata de indivíduos livres ou de propriedade alheia. Posteriormente, passa a fazer parte de uma conotação voltada à literatura: no sentido de possuir ou vender um texto que não seja de autoria própria.
Segundo a definição de Edmundo Bergler (1989), o plágio significa: “adoção como própria da propriedade intelectual de outrem, sem que cite a origem verdadeira” (apud TELES, 1989, p. 40). Os questionamentos em torno dessa forma de intertextualidade provêm de muito longe. Muitas acusações se fizeram presentes na história filosófico-literária. “Platão, por exemplo, acusou Eurípides de ter plagiado a filosofia de Anaxágoras, sendo que o próprio Platão não ficou isento dessa pecha” (idem, p. 41). Vários foram os plagiadores, ou pelo menos, assim considerados. Virgílio, como cita Gilberto Mendonça Teles (1989, p.45), foi até mencionado em livro, pelo poeta Marcial, que o acusou de roubar-lhe os versos. Essa trajetória perpassa a literatura francesa (Montaigne, Baudelaire, Victor Hugo, Balzac, Stendhal), outras literaturas estrangeiras e, com certeza, a brasileira, que muito tem de outras literaturas, principalmente da europeia.
Com base, ainda, nas explicitações de Gilberto Mendonça Teles (1989, p.47), sobre o plágio, é viável compreender que, escritores do passado, mesmo obedecendo a modelos, construíram marcas próprias e intransferíveis às suas obras, afinal, “só é válido o plágio que for melhor que a obra plagiada” (idem, ibidem). Fica, entretanto, a certeza, de que o ato de ler é a ação de produção e reprodução de textos que acrescentariam ao texto lido, originando intertextos, que não diminuem o valor literário da obra ou a sua literariedade.
O que hoje é considerado abertamente um plágio, como mera cópia, crime autoral, em certos momentos foi compreendido como uma solene homenagem. A utilização da ideia de outros autores poderia significar interpretação ou reinterpretação, compartilhamento do então produzido. Pode-se afirmar que, todo texto é um intertexto, desde que resulte de várias leituras prévias de um determinado autor.
Visto que a preocupação da maioria dos autores estava em imitar o mais fielmente possível o texto original, a intertextualidade começou a ganhar diferentes formas, e, a literatura busca em outros espaços textuais não mais a imitação, o plágio de suas estruturas ou temas, mas uma reelaboração destes, ou melhor, uma nova leitura que tire deles um significado diverso e plural.
Partindo para essas outras formas correntes do processo intertextual, pode-se afirmar que a intertextualidade é equivalente a uma “aurora” sem fim. Seja através do plágio, paráfrase, paródia, citação, epígrafe, alusão, referência, não importa. O que se conflui, como determinante, nesse contexto, são os diálogos propostos entre os textos. Uma produção que retoma outra, com sua finalidade peculiar.
Antes que Bakhtin se pronunciasse acerca da intertextalidade, muitos de seus colegas formalistas já manifestavam suas idéias sobre o assunto, não se referindo ao termo específico, mas a construção do sentido estava estabelecida. Tinianov intui sobre a intertextualidade. Victor Chklovski, por exemplo, em sua Teoria da Prosa diz o seguinte:
A arte é feita para dar a sensação de coisa enquanto coisa que está sendo vista e não enquanto coisa reconhecida; o procedimento da arte é o procedimento da representação entranha: a arte é o meio de viver a coisa no seu processo de fazer-se; em arte, o que foi feito não tem importância (apud LOPES, 2003, p. 72).
Nota-se, no discurso de Chklovski, essa idéia de que a obra se reconstrói continuamente. A cada nova criação surgem as particularidades de um novo objeto. Nesse sentido, a obra é sempre inacabada, incompleta, existe pelos seus silêncios, pelo que não diz daquilo que está fora dela (elementos extratextuais), independente de ter sido ou não advinda da inspiração de outrem, ela é completamente una, mesmo estando carregada de relações plurais.
Outro formalista, Eichembaum, citado por Edward Lopes, defende que “todo texto é absorção e transformação de outro texto” (apud LOPES, 2003, p. 72). Está ou não, falando de intertextualidade? Retomando Chklovski, comentado por Eichembaum, tem-se outra proposta:
A obra de arte é percebida em relação com as outras obras artísticas, e com a ajuda de associações que são feitas com elas. Não apenas o pastiche, mas toda a obra de arte é criada paralelamente e em oposição a um modelo qualquer. A nova forma nos aparece para exprimir um conteúdo novo, aparece para substituir a velha forma que perdeu seu caráter estético (idem, p. 73).
Com Bakhtin, o termo intertextualidade, ganhou existência, nasce no âmbito da linguística e está ligado à noção de dialogismo. Comprova-se: “Enquanto conceito operacional de teoria e crítica literária, a intertextualidade foi estudada primeiro pelo pensador russo Mikhail Bakhtin” (PAULINO, WALTY, CURY, 2005, p. 21). Assim, a linguagem ganha sua concepção própria, num espaço de intersubjetividade. O entrelaçamento das vozes discursivas, ou seja, a polifonia se propaga e se influencia, constantemente. Mas, além de Bakhtin, alguém mais se ateve ao termo intertextalidade, pois, na França, Julia Kristeva, desenvolveu tal conceito, não se esquecendo de seu precedente, confirma, dizendo:
Uma descoberta [ a intertextualidade] que Bahktin foi o primeiro a introduzir na teoria literária: todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar de noção de intersubjetividade, instala-se a intertextualidade, e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla (KRISTEVA, 2005, p. 68).
A intertextualidade, desse modo, joga com diferentes sentidos que podem ser abstraídos quando uma obra dialoga com outra. Neste sentido, procura-se evidenciar o caráter duplo da linguagem, na medida em que o fator intertextual não propõe uma significação única para o texto, mas, ao contrário, deseja ressaltar uma dualidade de significados, proporcionada pelo trabalho com a linguagem na obra artística.
Nessa retomada textual, teorizada por Kristeva, na década de 60, surge mecanismos que fazem acontecer o processo. As atividades do leitor e do autor se intercambiam e o objeto texto, que resulta do tecido de significados construídos por meio de outros contextos literários, se apresenta como um espaço em movimento, um móbile sempre aberto a diferentes configurações.
Conclui-se, então, que a dialogia ou a intertextualidade, como alguns teóricos colocam, não foi criação de Mikhail Bakhtin, portanto, metaintertextualmente, ele retoma obras de seus confrades formalistas e fundamenta o conceito, dando ao seu discurso características reformadoras, originais e poderosas, em que tanto a teoria do discurso, quanto a teoria literária são mencionados intensamente, no que se refere às atribuições de sentido, qualificados pela enunciação, dando-lhe certos poderes ou certas consequências.
3 Proposta de investigação dialógico-textual: extratexto, intratexto e intertexto
Como não há fronteiras entre a polifonia, o dialogismo e a intertextualidade, estes são abordados numa ótica de inter-relação, que direciona os diálogos entre os textos, lembrando que o dialogismo e a polifonia prevalecem sobre a intertextualidade. Segundo Koch (2002, p. 68) todo o caso de intertextualidade é polifônico e dialógico, mas nem todo caso de polifonia e dialogia se constitui em intertextualidade, porque nem sempre pode ser visualizado na relação textual.
Seus conceitos de superioridade são evidenciados no entrecruzamento dos três elementos, que não se confundem, mas estabelecem uma reunião de vozes discursivas independentes e muitas vezes polêmicas (polifônico), promovendo a arte do diálogo reproduzida nas ideias dos sujeitos que constituem a linguagem (dialógico), gerando mecanismos que encontram no diálogo entre diferentes discursos o seu modo de conceber a composição textual (intertextual), deste modo, “o discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação” (BAKHTIN, 1995, p.144).
Num processo inconcluso e inacabado, a obra é reelaborada a cada nova leitura, os sujeitos se modificam e as personagens evoluem, constantemente, emerge-se a polifonia e o dialogismo bakhtiniano como fator concatenado às afirmativas, como:
O dialogismo e a polifonia estão vinculados à natureza ampla e multifacetada do universo romanesco, ao seu povoamento por um grande número de personagens, à capacidade do romancista para recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada (BRAIT, 2007, p. 192).
O romance passa a ser um componente literário importante para todos esses diálogos estabelecidos na desconstrução realizada pelo interlocutor no ato da enunciação, e tais conflitos discursivos ganham força na década de 70 e se estendem à contemporaneidade, promovendo outras conotações, outras nomenclaturas. Seguindo os padrões discursivos de se reportar a textos anteriores verbais e não-verbais, surge um campo de linguagem permeado de aspectos dialógicos produzidos a partir de leituras dinâmicas e variadas do que está fora e do que está dentro. De um lado tem-se o extratexto, do outro, o intratexto. Baseando-se nos radicais das palavras citadas, a conceituação se faz presente, facilmente, mas não se limita apenas a isso, O extratexto, no universo do que está fora-do-texto literário, interferindo na sua logicidade ou produção de sentidos/semanticidade, promove tentativas de estabilização de sentido de um determinado texto, por meio de premissas que lhes são exteriores, desde fatos biográficos, dados históricos, até mesmo documentos anexos a uma determinada obra (fotografias, facsimiles, cartas, etc.).
Assim sendo, a obra de Bakhtine, contrapondo-se aos formalistas russos, depois franceses, que fecharam a obra em suas estruturas imanentes, reintroduz a realidade, a história e a sociedade no texto, visto como uma estrutura complexa de vozes, um conflito dinâmico de línguas e de estilos heterogêneos ( COMPAGNON, 2001, p. 112).
O que vale, contudo, não é analisar o texto, partindo do que está fora dele, mas a partir da força estabelecida por ele, em função dos aspectos exteriores acoplados à linguagem, que gera a verossimilhança desejada. A obra cria sua própria realidade, não em termos de cópia, mas de invenção de um mundo – o mundo da obra de arte, que obedece ao seu próprio princípio compositivo de modo autônomo.
A investigação, aqui proposta, utiliza-se de um recurso primeiro, a linguagem, para desvendar conhecimentos que giram em torno da literatura enquanto potência simulativa da realidade, que, internamente, sintetiza todos os possíveis níveis de construção da estrutura textual. Busca-se a partir de um “mundo” exterior ao texto, produzir linguisticamente, um novo “mundo”. “Esse ‘mundo’ tem um vínculo direto com o mundo da realidade empírica, mas, não é, em si, essa realidade empírica” (HUTCHEON, 1991, p. 165). A questão é que todo discurso busca através da linguagem, incluir ligações extratextuais, tranformando o extratexto em textualidade. Confere-setais argumentos na Estrutura do texto artístico, de Iuri Lotman:
As ligações extratextuais de uma obra podem ser descritas com a relação do conjunto de elementos fixados no texto, com o conjunto dos elementos a partir do qual foi realizada a escolha do elemento utilizado, que é dado (LOTMAN, 1978, p. 102).
O texto artístico, contudo, estabelece relações, busca-se uma interação entre aspectos sociais, culturais, políticos, étnicos etc. e a obra em si mesma. Não havendo subordinação entre eles; pelo contrário, são independentes. Mas nessa independência, surgem pontos alusivos, referenciais, estilísticos, no contexto da obra, e às vezes semelhanças tão profundas, que vão além das simples coincidências e que podem gerar leituras intertextuais, de um texto visto “como entidade autônoma, com um sentido imanente” (HUTCHEON, 1991, p. 65). O texto liberta-se das influências de fora, para mover um horizonte ficcional em sua essência literária, mas “a obra é uma totalidade, cuja função é dar uma representação às contradições do mundo histórico ‘real’ “(LUKÁCS apud MAINGUENEAU, 2001, p. 7).
Diante de tantos recortes, ora explícitos, ora implícitos, o processo de construção de um texto por meio de outros, dá-se, também, no intratexto. Seria possível um mesmo autor, trabalhar suas obras, intratextualmente? Aí está uma nova possibilidade de desvendamento dos mecanismos que contribuem para a intertextualidade. Um mesmo autor retoma em outro contexto, seja ele anterior ou até mesmo, posterior, novas obras. O que acontece, na verdade, é uma releitura do já escrito, numa proposta de escritura relacional. “As co-incidências, ou intersecções, são elaboradas pela retomada de segmentos de textos do próprio autor” (KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p. 121). O dentro-do-texto, não tem um fim em si mesmo, mas é retomado, mesmo que seja para dar continuidade à produção literária de certo autor, com suas características literárias próprias, é claro.
Nessa medida, pode-se pensar através de Maingueneau (1976), quando ele afirma que “um discurso não vem ao mundo numa inocente solitude, mas constrói-se através de um já dito em relação ao qual toma posição” (apud KOCH, BENTES, CAVALCANTE, 2007, p. 14). Assim, nenhum discurso está isento de associações, sejam elas extra ou intra textuais. O que é levado em consideração são os artífices lingüísticos trabalhados a partir daquele novo contexto, devem ser variáveis e funcionarem como mediadores entre o texto e o leitor e podem potencialmente influenciar a leitura e a recepção do texto, fator sumariamente relevante.
Todos os elementos textuais são mobilizados pela criação, entretanto, não são estáveis, enfrentam uma instabilidade encontrada em práticas discursivas anteriores, até chegar-se ao seu sentido próprio, marcado pela temporalidade, que o criador reveste em uma cadeia de significantes, que transcendem os seus limites, com a certeza de que, segundo Michel Foucault:
As fronteiras de um livro nunca são bem definidas: por trás do título, das primeiras linhas e do último ponto final, por trás de sua configuração interna e de sua forma autônoma, ele fica preso num sistema de referências a outros livros, outros textos, outras frases: é um nó dentro de uma rede (apud HUTCHEON, 1991, p. 167).
Essa ligação do texto a outros é complexa e gera um entrelaçamento entre o extratexto, o intratexto e o intertexto, permitindo uma melhor compreensão por meio de uma relação de analogia com outras obras, e que se pode dar em vários sentidos: na estrutura do texto; nas ações; nas personagens; na trama dos fatos, em referências a determinados objetos, enfim, em tudo o que possa estabelecer um diálogo entre os textos.
A interterxtualidade, confirmada na literatura, pelos temas retomados, seja através do extratexto ou do intratexto, enfatiza e dá nova feição aos mitos e as emoções humanas e “o passado chega à forma de textos e de vestígios textualizados – memórias, relatos escritos publicados [pelo mesmo autor ou por outros], arquivos, monumentos, etc. (LACAPRA apud HUTCHEON, 1991, p. 168).
Sendo a linguagem humana biológica, psicológica e social, mediante avanços da semiologia, surge um criador, possuidor de um objeto, a obra de arte. E esta, se lançará ao outro, num processo de alteridade que “é uma dimensão constitutiva do sentido” (FIORIN, 2003, p.36). Seu efeito será constituído a partir da relação entre enunciador e enunciatário, no espaço criado entre o eu e o tu. A proposta é dada pela tessitura do texto, organizada e estruturada segundo o objeto da significação, atrelado ao objeto da comunicação, pertencente a uma cultura, de sentido totalmente ligado ao contexto sócio-histórico. Por isso, vale salientar as ideias bakhtinianas: “prega a análise do todo do texto: de sua organização, da interação verbal, do contexto ou do intertexto” (BARROS, 2003, p.2).
Novos horizontes discursivos permeiam o Contexto da obra literária através de abordagens como as de Dominique Maingueneau, que confirma a importância das teorias de Bakhtin para as reflexões acerca da intertextualidade. Comprova-se, contudo, que:
Colocando-se a primazia do interdiscurso sobre o discurso, considerando as obras como o produto de um trabalho sobre o intertexto, esse tipo de pesquisa desestabiliza as representações comuns da “interioridade” das obras. As últimas aparecem menos como monumentos solitários do que como encruzilhadas, nós em séries múltiplas de outras obras, de outros enunciados (MAINGUENEAU, 2007, p. 21).
Tal encruzilhada, acima citada, propõe uma interdiscursividade que transcende o universo do senso comum, promovendo uma comunicação entre os textos, produzindo outros textos, originados do chamado “original”, são únicos, por isso “originais” também.
O todo do texto é o ponto de partida para se fazer um levantamento da capacidade interdisciplinar proveniente da análise do discurso, de detectar os recursos lingüísticos e não-lingüísticos que resultam na combinação e transmissão das vozes discursivas. E mais:
É necessário observar no conjunto do enunciado, do discurso, de que forma a confluência das vozes significa muito mais uma interpretação do discurso alheio, ou a manipulação na direção da argumentação autoritária, ou mesmo a apropriação e subversão desse discurso (BRAIT, 2003, p. 25).
Esses aspectos dialógicos a serem observados, exigem a presença de um terceiro, que ao penetrar no enunciado será incumbido de compreender o que ali está e interferir no sentido daquele contexto, promovendo um processo interativo de descobertas, sendo capaz de resgatar elementos que proporão diálogos futuros, com outros universos textuais, sabendo diferir os aspectos valorativos da obra, que podem estar relacionados a outras, mas que possui configuração arquitetônica própria de todo discurso.
Com isso, instaura-se a polifonia dentro da obra, estabelecendo conflitos entre leitor-obra e “a resposta deve ser encontrada na atitude crítico-interacional desse leitor com seu objeto de informação, segundo a lição Bakhtiniana do conhecimento como processo dialógico” (BRAIT, 2003, p. 26). Ainda seguindo as concepções de Brait (2003) sobre Bakhtin, a idéia de “diálogo inconcluso” e “atitude dialógica em direção ao sentido” permeia de forma transformacional o mundo da intertextualidade.
Semioticamente, Fiorin (2003) diz que não se constrói uma geração de sentidos textuais sem fazer um percurso que vá do simples e abstrato ao complexo e concreto. Esse simulacro de metodologias insere cada vez mais, no contexto intertextual, os desafios assumidos quando se tem textos e textos, que incorporados uns aos outros, podem gerar mecanismos que reproduzirão construções sintáticas, de forma que determinados artistas ou autores, farão alusões, referências a outros. E até mesmo se apossarão do estilo alheio. Nessas trocas enunciativas, perde-se a autonomia discursiva, ganha-se características intertextuais.
Para condensar ainda mais o trajeto das relações textuais, é fundamentalmente importante integrar a ironia à intertextualidade. Estabelecendo-se um alto grau de investigação da linguagem intertextual, a recepção crítica sobre a ironia aplicada aos diversos mecanismos intertextuais, tornando-os com características diferenciais, apesar das influências, aparecem quando enuncia-se as obras de modo a ler o avesso, o contrário, do que diz sua denotação. Tantas leituras transformadas em obras literárias, mas nem sempre os autores mantêm a mesma ideia do texto inspirado. Às vezes, o contrário do sentido é o que prevalece; a intenção depreciativa e sarcástica em relação a outrem é o que faz muitos autores criarem obras inovadoras, de caráter inusual.
A ironia é um dos elementos fundantes dentro do processo de intertextualidade, uma forma de transformação da literatura preexistente, por isso, para que o diálogo intertextual aconteça, pede-se uma espécie de ampliação das possibilidades de leitura e, por consequência, a dimensão irônica do texto. No jogo texto/contexto, a composição da atitude irônica pode desdobrar-se em mais de uma direção, por outro lado, a relação no interior do texto literário resulta, geralmente, da incongruência ou oposição dos vocábulos e imagens, pela a inclusão de impulsos opostos e complementares.
Resultante de um inteligente emprego do contraste, a ironia visa perturbar o interlocutor e, diferentemente do sarcasmo, tem qualquer coisa de construtivo, condicionada estreitamente ao ambiente psicológico e verbal no qual se move. Segundo Beth Brait (1996), trata-se de uma forma particular de linguagem, pois requer do destinatário uma “competência discursiva especial”, que se dá no contato com diferentes tipos de textos, a partir da familiaridade com seus recursos de construção.
Nesta linha de pesquisa, que estuda a ironia a partir de uma dimensão contemporânea da linguística, esta é surpreendida como um procedimento intertextual e interdiscursivo, considerada um processo de meta-referencialização, de estruturação do fragmentário, e que, pela organização de recursos significantes, pode provocar efeitos de sentido como a dessacralização do discurso oficial ou do desmascaramento de uma pretensa objetividade em discursos tidos como neutros. Com isso, a ironia é detectável na oposição entre os recursos discursivos e a narração, ou o universo literário em si, entretanto é um recurso relativo e menos reservado, de caráter confrontador, forma de expressão ambígua do discurso.
Sendo a ironia uma constante na literatura, ela aparece também com intensa força no jogo intertextual parodístico (em tempos remotos), não que esteja ausente em outros mecanismos intertextuais, mas neste, o olhar crítico, consegue enxergar além. Um tom irônico diferencial prenuncia o enredo. “A paródia é, pois, uma forma de apropriação que, em lugar de endossar o modelo retomado, rompe com ele, sutil ou abertamente” (PAULINO, WALTY, CURY, 2005, p. 36). A ironia oferece uma poderosa arma, por que permite aos autores um afastamento, um exercício distanciado e dissimulado da crítica em suas obras.
A ironia é vista, aqui, não como figura de retórica ou feições filosóficas, mas especificamente como termo associado à intertextualidade. Ao passar para a literatura a paródia ganhou “o sentido de imitação humorística de um modelo sério” (TELES, 1989, p. 43). Assim, convém relacioná-la a seguinte visão de ironia: “o interdiscurso irônico possibilita o desnudamento de determinados aspectos culturais, sociais ou mesmo estéticos, encobertos pelos discursos mais sérios e, muitas vezes, bem menos críticos” (BRAIT, 1996, p. 16). Há ou não uma forte ligação entre a paródia e a ironia?
Todavia, a palavra “intertextualidade” precisa ser cuidadosamente determinada contra qualquer noção errônea. A possibilidade de haver má compreensão faz que muitos leitores (inclusive críticos) não saibam atribuir à obra seu valor literário. A inspiração verbal não significa uma mera cópia, como se os escritores fossem instrumentos meramente passivos: copiar, simplesmente, sem intenção de revelar o que é de outrem, não é inspirar. A inspiração verbal estabelece até que ponto vai a intenção do autor, estendendo-se tanto à forma como à substância. Diz-se “como”, não precisando explicar o porquê do método da operação criadora, mas somente é dado conhecer o resultado. A arte fez uso das características natural de cada autor, e por um ato especial da linguagem, habilitou-os a comunicar ao leitor, por meio da escrita, a sua produção artística. Observa-se por meio dessa relação, o desvendamento do que estaria associado ao “como”.
A operação intertextual junta-se à atividade criativa ou crítica do escritor, operando por meio dele. Ainda que não se saiba explicar o modo de tal operação, conhece-se os seus resultados junto à literatura ou outras artes. Certamente esta maneira de ver a respeito da inspiração refere-se às produções, como elas saíram das mãos dos escritores originais e chegaram a outras, por isso precisa-se do auxílio de um minucioso criticismo textual de tal maneira que possa aproximar-se tanto quanto possível do tempo e das circunstâncias em que foram criadas, afinal, os valores ideológicos atuam desde a criação, a publicação, a circulação, a leitura, o ensino, a crítica e a canonização da obra.
4 A Literatura Brasileira em suas relações com os elementos extra, intra e intertextuais
Diante dos diálogos em torno da Literatura Brasileira e sua relação com o conceito de intertextualidade, é fundamentalmente relevante explicitações que entrecruzem as ideias de intratexto, extratexto e intertexto a partir da constituição da obra literária, seja em prosa ou verso. Muitos textos literários brasileiros, não sendo diferentes dos demais, não possuem um sentido imanente e sim o da relação que estabelecem com outros textos, de um mesmo autor ou de autores diferentes, e também com certos elementos que lhes são exteriores. O sentido, agora, passa a ser compreendido em particular, interpretando, deslendo e inovando a escritura. Tudo isso gera a Angústia da influência, explicitada por Harold Bloom para tranquilizar aos que escrevem, buscando influências externas, ou até mesmo aos que aprovam tais atitudes, dentro da arte. Assim, Bloom retoma Goethe, que diz:
Todas as realizações dos antecessores e contemporâneos de um poeta não pertencem por direito a ele? Por que deveria ele esquivar-se de colher flores onde as encontra? Só tornando nossas as riquezas dos outros damos existência as alguma coisa grande (apud BLOOM, 2002, p. 100).
É claro que, diante de tais questionamentos, retomados por Bloom, persistem as relações de anterioridade e posterioridade e estas chegam ao Brasil, marcadas de um dialogismo que permite aos clássicos, aos modernos ou as vanguardas uma reescritura num contínuo que não é mais regido pelo tempo e sim pelo conflito, pela valoração indiferente à cronologia. Todas as obras brasileiras, que se enquadram no mundo da intertextualidade isentam-se de avaliações inferiores a partir da teoria de Eckerman, que afirma:
Há toda essa discussão sobre originalidade, mas ao que equivale? Assim que nascemos o mundo começa a influenciar-nos, e isso prosegue até morrermos. E de qualquer modo, que podemos de fato chamar de nosso, não ser a energia, a força, a vontade! (apud BLOOM, 2002, p. 100).
Desconstruindo o que muitos críticos dizem sobre esse trabalho intertextual que permeia as obras dos autores brasileiros, com tanta intensidade, pode-se afirmar que não é este o fator-chave, no julgamento de valor de uma determinada obra, dessa forma, convém exemplificar muito do que a literatura mantém com outros universos artísticos, sabendo que “nossos desejos privados, em sua maior parte, [o dos autores brasileiros, por exemplo,] nascem e se alimentam à custa de outros” (MONTAIGNE apud BLOOM, 2002, p. 104). Desejos estes, quando alimentados, geram resultados artísticos peculiares.
Pensando nas diversas dimensões comunicativas das obras brasileiras, surge, primeiramente, um impasse das articulações entre texto e extratexto, na obra de José de Alencar, Senhora. Há, no romance alencarino, intertextualidades buscadas fora do texto, numa vida social do ambiente falso dos salões contrapondo à superioridade da vida rural e do homem do campo sobre o ambiente e o habitante urbano, de uma sociedade corrompida. Mas a intertextualidade de Alencar não ficou apenas nos elementos cotidianos de uma época. Suas leituras sempre estiveram voltadas para autores franceses, especialmente Balzac.
De onde José de Alencar buscou as vozes da aristocracia, da burguesia e da pequena burguesia? A preocupação de muitos críticos é com relação à realidade criada por Alencar, alegando não ter muita relação ou nenhuma relação com a brasileira. A certeza, talvez não esteja aí e sim de que “ser influenciado significa receber fluido etéreo que descia das estrelas sobre nós, um fluido que afetava nosso caráter e destino, e que alterava todas as coisas sublunares” (BLOOM, 2002, p. 76). Então, ser influenciado por Balzac ou outro escritor francês, não interferiu em nada, no valor literário de Senhora. No contexto do romance tem-se um novo autor, que não se ausenta da narrativa. A todo o momento, o seu desencanto e o seu ceticismo aparecem, sob disfarce de ironia que vai até o sarcasmo.
Ainda em Senhora, outro elemento remete a mais um jogo intertextual, por meio do intratexto. Buscando traçar os perfis das protagonistas criadas pelo autor, o que se tem de comum entre ambas? Não seria Diva, Lucíola e Senhora irmãs? Não comporia as heroínas, o cenário do Rio de Janeiro? Mulheres cariocas que mostram a evolução da sociedade imperial, marcada por uma alienação que as europeizava, na época. Estabelece-se um diálogo versátil, de um texto que retoma outro, dentro do universo de um mesmo autor. O intratexto faz-se presente e amplia o conceito de intertextualidade, na obra em questão.
Não podendo deixar de lado o grande escritor brasileiro, retoma-se as possibilidades de criação literária brasileira acerca de diálogos possíveis em Machado de Assis, especificamente em Memórias Póstumas de Brás Cubas, já que “os poetas não são leitores comuns, e, sobretudo não são críticos, no sentido verdadeiro de críticos, leitores comuns elevados ao mais alto poder?” (BLOOM, 2002, p. 80). Machado de Assis, realmente, não foi um leitor comum e suas leituras trouxeram bons frutos. O público leitor, não qualquer leitor, teve o privilégio de descobrir na literatura machadiana, vários outros universos textuais.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), os diferentes enunciados mantêm forte relação entre si. Pululam citações, referências, apropriações, alusões, etc., subtraídas de um imenso espaço de textos. O entrecruzamento textual em tal obra é abrangente e complexo. O extratexto estabelece o papel da História na obra, que se confirma a partir das afirmações de Katia Muricy:
A história será sempre um jogo de interesses. [...] Assim, o pai de Brás Cubas tem um “ódio puramente mental” ao imperador Napoleão, pois a força, de convencer os outros de sua postura política, acabou acreditando nela. A gênese de sua postura é a opinião pública conjugada a seu interesse: ser nobre garante prestígio social. A invenção dessa nobreza se dá pela repetição da maneira através de duas gerações e, ao fim, nobre, só lhe resta odiar abstratamente as idéias liberais francesas. Uma mentira repetida por algumas décadas torna-se um ideal, um princípio – gênese irônica dos valores de nossa cultura (MURICY, 1988, pp. 104-105).
A História é fato assumido no texto machadiano, mas outros elementos exteriores ao texto (extratexto) ganham sentido artístico. Há ironia à precariedade da Ciência de sua época. Qualquer indivíduo teria autorização para inverter medicamentos e, no caso, um remédio para cura espiritual, melancólica, apenas por dinheiro e vaidade. Tudo vira ficção, o que vem de fora, ganha uma conotação diferenciada do real, vira verossímil.
Diante da heterogeneidade dos elementos textuais, que constituem os mecanismos intertextuais, são inúmeras as possibilidades de leitura, permeadas de influências e regressos. O jogo discursivo realizado em Memórias Póstumas de Brás Cubas ultrapassa os limites do conceito básico de intertextualidade. “Dum texto para outro, o tom, a ideologia, o próprio movimento da cena mudaram, não ao acaso, mas por uma série de contradições de simetrias termo a termo” (JENNY, 1979, p. 16). Os movimentos que inserem o texto de memórias intensificam as mudanças de sentido. Quem leu Memórias Póstumas de Brás Cubas há de se recordar que Quincas Borba é uma personagem que aparece no capítulo LIX, intitulado Um encontro, sendo narrado assim:
Imaginem um homem de trinta e oito anos a quarenta anos, alto, magro e pálido. As roupas, salvo o feitio, pareciam ter escapado ao cativeiro de Babilônia; o chapéu era contemporâneo do de Gessler (MACHADO DE ASSIS, 1999, p. 136).
O jogo intratextual permite ao autor exercitar o melhor de sua ironia, porque o antigo companheiro é um filósofo cujo pensamento formula uma não menos inusitada teoria social, o humanitismo, primor de crítica ao liberalismo militante. No Romance Quincas Borba, a personagem é retomada, morando em Barcelona, metida com sua interminável filosofia e o cachorro, cujo nome, também Quincas Borba, é uma das figuras mais sutis da ironia machadiana. Extratexto, intratexto e intertexto invadem a narrativa e traz a tona a conotação de que
a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operando por um texto centralizador, que detém o comando do sentido (JENNY, 1979, p. 14).
Como se não bastasse, amplia-se ainda mais o universo intertextual machadiano, além dos diversos mecanismos, este trabalha uma intratextualidade dupla: faz referência a personagem de uma obra posterior (Quincas Borba), e prossegue, chegando à epígrafe desta obra, que revela uma outra leitura intratextual, contudo magnífica:
Este Quincas Borba, se acaso me fizeste o favor de ler as memórias Póstumas de Brás Cubas, é aquele mesmo náufrago da existência, que ali aparece, mendigo herdeiro inopinado, e inventor de uma filosofia (MACHADO DE ASSIS,1998, p. 9).
Além de tantas idas e vindas textuais, o autor faz alusão ao chapéu de Gessler, que para quem não sabe, foi magistrado de Alberto I – Duque da Áustria e Imperador do Ocidente de 1298 a1308. O chapéu do duque foi colocado no topo de uma árvore para obrigar, ditatorialmente, os suíços a reverenciá-lo. Com isso, o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas quer dizer que o chapéu de Quincas era velhíssimo. Em simples discrições, o autor localiza-se fora do tempo e utiliza de uma técnica narrativa inusual, carregada de aspectos intertextuais,
levando o horizonte da ficção literária brasileira para um ponto jamais imaginado.
Essas tantas leituras e releituras também compõem o cenário poético brasileiro, surge, então, Carlos Drummond de Andrade, mestre em reler seus poemas, inserindo neles atributos de outrem. As várias figurações da cidade de Belo Horizonte é um exemplo:
Belo Horizonte
Meus olhos têm melancolias,
Minha boca tem rugas.
Velha cidade! As árvores tão repetidas. [...]
(apud PAULINO, WALTY, CURY, 2005, p. 54).
A intimidade do eu poético com tal cidade adquire conotações diferentes. Primeiro exalta-se a cidade, depois a profana, criando o poema Triste horizonte, que em poucos versos já se percebe a mudança: “Esquecer , quero esquecer é a brutal Belo Horizonte que se empavona sobre o corpo crucificado da primeira (idem, p. 55). Critica, agora, o progresso, a evolução humana. Simplesmente passa-se de Belo Horizonte a brutal Belo Horizonte. A familiarização no primeiro poema, vira lembrança nostálgica no segundo.
Dialogando ainda com a poesia drummoniana, chega-se No meio do caminho:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra. [...]
(ANDRADE, 1967, p.64)
Ao ultrapassar a pedra no meio do caminho, uma nova pedra surge. Agora ela não é mais a mesma. Sofreu uma releitura textual:
[...]
Uma pedra no meio do caminho
Ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
De toda a precisão se incorporam
Ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
Sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
Chamejante. Me perco em Apollinaire.
Adeus Maiakovski. (ANDRADE, 1967, p. 137)
Assim, a leitura primeira, retomada como releitura segunda, no segundo verso do poema Consideração do poema, em seu livro Rosa do povo, promove um desvendamento do mecanismo de intertextualidade, pois Drumonnd faz referência à sua poesia. O intratexto, esta implicitude cria um diálogo intertextual que se estende nos versos posteriores do poema, em que o eu poético celebra os poetas contemporâneos, referindo-se ao furto feito a estes, contudo:
Excluir, este outro, de sua contemplação da beleza que existe nos textos de um grande contemporâneo seria tão sensato e fácil quanto decidir que sua mente não mais deve ser espelho de tudo que há de belo no universo visível (BLOOM, 2002, p. 151)
Esse processo comparativo, envolvendo a imagem especular, comprova mais uma vez a possibilidade de influências artísticas externas, que como diz Bloom (2002): não apenas deve-se estudar um grande autor, mas é fundamental que se estude, afinal ele é obra-prima da natureza. Assim, a intertextualidade é incorporada por Carlos Drummond na forma e no conteúdo de sua poesia.
Mais uma vez um jogo que envolve o intratexto e o intertexto. Entretanto, os discursos poéticos se caracterizam, em resumo, pela ambivalência intertextual interna e externa. Isso acontece em função de vozes e leituras que se multiplicam. As verdades ditas “universais” são substituídas pelo diálogo de “verdades textuais” (contextuais), mas, convém lembrar que “o texto é um artifício semanticamente ‘reticente’, que organiza de antemão as contribuições de sentidos que o leitor deve efetuar para torná-lo inteligível” (MAINGUENEAU, 2001, p.21), portanto, a relação leitor-autor-texto é o princípio essencial para mergulhos em universos literários, a fim de descobrirem-se mecanismos intertextuais, que compõem infinitas possibilidades, pois, não apenas José de Alencar, Machado e Drummond, muitos e muitos outros podem ser lidos por meio do olhar da intertextualidade.
5 Considerações finais
“Tudo se reduz ao diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada resolve; duas vozes são o mínimo de vida.”
Mikhail Bakhtin
Através dessa breve reflexão, evidenciam-se tentativas de mostrar quantos mecanismos intertextuais, intratextuais ou extratextuais são colocados à prova, enquanto contribuintes de uma linguagem que deixa de ser mera construção, fechada em si mesma, para compor um universo dialógico, polifônico, de enunciados que são, constantemente, remetidos a outros, criando uma representação discursiva multidimensional.
Pode-se, contudo, afirmar que o mais angustiante, num processo como esse, é conviver com ideias que se divergem e se entrelaçam, formando um todo complexo, pois a crítica assume caminhos, que muitas vezes causam incertezas, principalmente quando se tem tal afirmação:
Mas um certo tipo de crítico gasta seu tempo dissecando o que lê em busca de ecos, imitações, influencias, como se ninguém jamais fosse ele mesmo, mas sempre um composto de muitas outras pessoas (BLOOM, 2002, p. 57).
Muitos preocupam com esses elementos exteriores à obra e com a pluralidade do autor, esquecendo-se de que os autores se dissolvem em novos textos por meio da intertextualidade, criando uma construção permeada de figurativização, que deixa de ser mera influência, para se transformar num campo escritural infinito de semantizações. A cada nova leitura, novas descobertas a cerca do que a obra tem de literariedade e não do que ela tem de aspectos alheios.
Portanto, a intertextualidade pode ser vista como um recurso de criatividade e criticidade, sem ser mera busca de fontes que não lhe é própria. Os autores não se tornarão menos originais por isso, e a obra de arte, independente das interferências, terá sua tessitura embrenhada no tempo da enunciação, possibilitando diálogos com uma infinidade de textos e uma transfiguração do real concreto para o real artístico.
Extratexte, intratexte et intertexte: une propotion de lecture dialogic
RÉSUMÉ: Cet article se propose analyser les éléments extra-textuels; intra-textuels et intertextuels qui permettent la strueturation de la textualité. L’ étude se base sur observation de comment ceux-ci se relationnent et dialoguent entre eux, et contribuent ainsi a la création originale et au renouveau de l’ ancien. Ces procédés visent la crystalisation de l’ appareil signique réelle. Dans une seconde partie, le travail prétend analyser ces eléments dans la litterature brésilienne.
MOTS-CLÉS: literature brésilienne; extratexte; intratexte; intertexte; dialogisme.
6 Referências
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LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 4 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
_____. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Record, 1998.
[1] Professora na UniRV- Universidade de Rio Verde. Professora efetiva e licenciada pelo Estado de Goiás. Mestre em Letras: Literatura e Crítica Literária pela PUC - Goiás. meciatrancoso@hotmail.com.