O RÁDIO NAS COMEMORAÇÕES FARROUPILHA: UM ESTUDO...
Por Luciano Braga Ramos | 18/04/2017 | AdmO RÁDIO NAS COMEMORAÇÕES FARROUPILHA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE OS DISCURSOS REPRODUZIDOS PELO RÁDIO NOS 150 ANOS DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA
INTRODUÇÃO
No ano de 1985, ocorreu no Rio Grande do Sul, uma significativa mobilização por parte do Governo do Estado, junto com instituições privadas e associações para as promoções dos festejos do sesquicentenário da Revolução Farroupilha. O ato se revestiu de tamanha pompa que em muitos aspectos ganhou ares de espetáculo. O papel do rádio foi relevante nesse aspecto por reproduzir diariamente discursos que se intitulavam “memória farroupilha”. Esse trabalho tinha por pretensão, supostamente, criar status de memória coletiva. Sobre o conceito de “memória” Jaques Le Goff (2003), diz, que a memória, atuando como a propriedade de reter informações passadas, serve aos propósitos dos homens no sentido de reter também, informações que estes representam como passadas. O autor fala que nesses casos a memória passa a estar à mercê dos interesses das elites políticas. As transmissões tinham por objetivo: levar aos ouvintes rio-grandenses fatos e lances históricos e “heroicos” da época da Revolução Farroupilha.
As mais destacadas emissoras de rádio do Rio Grande do Sul contribuíram com o Governo do Estado para tal trabalho. Em correspondência enviada ao presidente da comissão do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, emitida pelo Secretário de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, Francisco Salzano V. da Cunha, esse fazia o seguinte comunicado ao Palácio Piratini:
Ao cumprimentá-lo cordialmente, comunico a Vossa Excelência que, a partir de 05.06.85, serão transmitidas, para todo o Rio Grande do Sul, através das emissoras de rádio: Gaúcha, Difusora, Pampa, Farroupilha e Capital, as chamadas radiofônicas alusivas ao Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, produzidas pelo Departamento de Ensino Supletivo, como parte integrante do Projeto Divulgação da Revolução Farroupilha. (CUNHA, FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOUÇÃO FARROUPILHA CAIXA2, CORRESPONDÊNCIA 1985).
A correspondência pode trazer alguns indícios sobre os sujeitos que atuaram como colaboradores do plano do Governo do Estado, não só para divulgar as “memórias” da revolução, mas sim como participantes do trabalho de memória pensado pela elite política no poder.[1] As chamadas radiofônicas começariam no segundo semestre de 1985, o que pode sugerir a intenção de um trabalho mais intenso sobre a difusão da memória selecionada. Também pode ficar evidente a colaboração da mídia e sua associação às instituições de ensino que juntamente com a Secretaria de Educação, trabalharam na promoção daquele projeto de memória, possa, nos mostrar a estreita relação do setor púbico e privado. A negociação entre as emissoras e o Estado se deu por meio do Secretário de Educação e Cultura do Estado, inclusive sobre os horários que tais chamadas iriam ao ar. De acordo com Cunha:
Essas chamadas serão vinculadas no horário das 20h às 20h30min e, a critério das emissoras, também em horário comercial, durante o dia. Em anexo estou enviando uma cópia do scripit das chamadas radiofônicas. (CUNHA, FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOUÇÃO FARROUPILHA, CAIXA 2, CORRESPONDÊNCIA, 1985).
A narrativa de Cunha mostra a abrangência das chamadas, isso intui que a partir do segundo semestre de 1985, seria, com o auxilio da mídia, que seria enfatizada as narrativas que poderiam sustentar a memória sobre a Revolução Farroupilha. Para nós, o que torna esse trabalho com sentido é justamente esses scripts citados por Cunha, que possibilitam interpretarmos e analisarmos, como parte da memória farroupilha foi depois de elaborada, “levada” até a casa dos sul-rio-grandenses via rádio, e da forma como essa narrativa foi induzida, por meio da verbalização de um trabalho de memória.[2]
Assim, na pretensão de dar continuidade nesse trabalho, analisamos as cópias das chamadas radiofônicas, que estavam junto com a correspondência acima encontradas no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. As chamadas versam sobre os mais variados assuntos referentes às comemorações da revolução, e também podem dar pistas sobre os aspectos políticos, econômicos e sociais, assim também, como narrar os fatos e “heróis” idealizados. Os scripts, não estão assinados, apesar de anteriormente sabermos pela documentação acima citada, quais agentes estavam envolvidos naquele trabalho.
Os scripts seguiam uma ordem de formatação, onde no seu cabeçalho, há a identificação dos responsáveis pela produção. Assim, na cópia das chamadas radiofônicas, primeiramente observa-se que estas traziam o nome da Secretaria da Educação e Cultura, e logo em seguida mencionava o departamento de Educação e Cultura. Quanto aos locais de datas de gravação apareciam em branco, supostamente por estes estarem destinados a várias rádios como já mencionado na página acima. Ainda, nas chamadas, pode-se observar o roteiro que deveria ser seguido pelo locutor, que num primeiro momento poderia, pela análise, ser somente o reprodutor dos textos conforme o script proposto. Assim, nosso próximo passo será a análise dessas narrativas.
- A NARRATIVA E A REAFIRMAÇÃO DA MEMÓRIA
Nos trabalhos que envolvem a memória da Revolução Farroupilha, observa-se certa continuidade um tanto repetitiva no trabalho de rememoração dos fatos, que procuram ser relacionados com a situação política e social do presente. Esse trabalho desenvolvido pelas elites parece procurar sempre buscar naquele passado uma continuidade que justifique as ações do presente.[3] Dessa forma a Revolução Farroupilha, é (re) posta por tais organizadores como a herança do passado da sociedade rio-grandense. Tais indícios podem ser analisados nas chamadas radiofônicas analisadas nesse trabalho. Nesse sentido, o que parece uma narrativa reiterada, e na verdade a contemplação de uma exaustiva narrativa que deseja ser enfatizada no trabalho rememoração da Revolução Farroupilha e seus vultos.
As chamadas iniciavam com o locutor dizendo: “Memórias da Revolução Farroupilha”, seguida de uma narrativa sobre o acontecimento, finalizando a chamada com legendas como:[4] “Povo rio-grandense! Comemora com entusiasmo o Sesquicentenário da Revolução Farroupilha”. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2). Essa narrativa é bem sugestiva do ponto de vista apelativo para que de certa forma, algo que foi organizado pela elite política, fosse aceita como uma iniciativa de comemoração por parte do povo. De outra forma se pode interpretar que essa narrativa impelia os ouvintes a se associarem as comemorações.
O conteúdo, das chamadas poderia estabelecer a ligação que se pretendia entre o passado e o presente, deste modo, supostamente, por tal movimento do trabalho de memória, se “estreitaria” o tempo no sentido de aparentar uma continuidade entre o passado e o presente. No entanto, devido ao fato das cópias das chamadas radiofônicas não estarem numeradas, foi necessário selecionarmos, a partir de uma suposta cronologia, que foi observada pela sequencialidade dos fatos expostos e do conteúdo de suas narrativas.
As chamadas radiofônicas que nos chegaram são no número de trinta e nove. Dividimos a documentação, procurando uma coerência entre as narrativas, tentando mapear a sequencialidade e a historicidade de tais narrativas. Assim, começamos por elencar as narrativas que tratavam da organização das comemorações no sesquicentenário, e que procuraram relacionar os acontecimentos daquele período com os acontecimentos daquele presente. Da mesma maneira, foi possível notar que narrativa pretendia dar uma origem comum ao povo rio-grandense. O primeiro documento inaugura, via transmissão de rádio o anúncio das comemorações oficiais sobre a Revolução Farroupilha.
As comemorações do ano do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha foram instituídas pelo governador do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor Jair Soares. Serão celebradas durante o transcurso do ano de mil novecentos e oitenta e cinco, quando se comemora os cento e cinquenta anos da eclosão daquela luta civil que durou dez anos. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Assim, a população era avisada das comemorações oficializadas pelo Estado, afirmando que o ano de 1985, seria de constantes comemorações entorno da rememoração da revolução. Da mesma forma, para a década de 1980, pode ser o início da retomada da divulgação e da reapropriação da revolução pelo Estado, e as rádios, o canal de difusão de tais ideias.[5] Ao final da chamada, o locutor finalizava dizendo “Gaúcho!... vive com emoção as comemorações do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha”. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2). Dessa maneira, a narrativa poderia impelir a população rio-grandense a se “sentir” a presença das comemorações, que insinuavam que todos sul-rio-grandenses, eram “gaúchos”.
Em outro momento, a chamada, anunciava os procedimentos adotados pelo Estado para o decorrer do ano de 1985, deixando a população a par dos eventos e sobre seu funcionamento.
Para comemorar o Sesquicentenário da Revolução Farroupilha, foram organizadas comissões e subcomissões que programaram um extenso calendário de eventos promocionais. Um dos momentos mais significativos das comemorações estão sendo os deslocamentos do Governo do Estado para as antigas capitais farroupilhas: Piratini, Caçapava do Sul e Alegrete, onde se assentou o Governo gaúcho durante o decênio histórico. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Acima, uma das narrativas, que nos instigam a questionar a ideia de continuidade, entre o passado e o presente, naquilo que Erik Hobsbawm, denominou de “invenção das tradições”.[6] O governo do Rio Grande do Sul buscou uma aproximação com um passado adequado às necessidades daquele presente, visto o processo de reestruturação pelo qual passava o Brasil, se redemocratizando, e a busca pela reafirmação do regionalismo no caso do estado sulino. Importante, sobretudo, é a busca desses sujeitos, por um vínculo entre o passado e presente no simbolismo que representaria a “retomada” das antigas capitais farroupilhas, onde o governo buscava uma ancestralidade com os “homens” de 1835. Tanto mais, sendo esse discurso um possível instrumento, que tinha por intenção incutir ideais de ancestralidade em seus ouvintes.
Dando sequencialidade à análise das narrativas, procuramos em outro desses documentos, indícios do trabalho de memória pretendido para o Rio Grande do Sul e sua população, no sentido de reedificar as bases da memória farroupilha, como “memória de um povo”. Percebe-se uma retomada na narrativa, de algo que se constrói com o propósito de um “não esquecimento”, de algo que se quer selecionar como memória.
A História é uma memória coletiva e todo povo que esquece seu passado, passa a repetir os mesmos fatos, experiências e caminhos, porque, embora os tempos sejam diferentes, os seres humanos são iguais na sua essência.
O Exército Farroupilha que em seu apogeu chegou a 3.300 homens, estava reduzido a mil combatentes. Este punhado de homens enfrentou o Pacificador Caxias, com 12 mil soldados, até mil oitocentos e quarenta e cinco, em mais de 32 combates, sendo que nos de Ponche Verde os farroupilhas perderam cem homens, no de Batovi, mais de 80 e no de Porongos,100. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Afirmava-se que a farroupilha é parte do passado do povo, e que a memória coletiva, é fruto da história, porém, diga-se, da história que as autoridades, faziam a partir da memória institucionalizada. Em seguida, o discurso ressaltava os episódios passados, dando a noção de que os gaúchos lutaram contra o império, como se todo rio-grandense à época da revolução fosse farroupilha, tal elemento mascarou a dualidade política dos rio-grandenses historicamente conhecidas. Finalizando a chamada acima, o locutor convidava: “Povo rio-grandense! Comemora com entusiasmo o Sesquicentenário da Epopeia Farroupilha” (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2). Ao que parece, mais uma vez era delegado ao povo o compromisso de se associar as comemorações, novamente reproduzindo a revolução como a “epopeia” dos gaúchos.
Além de a citação anterior fazer uma relação de aproximação entre presente e passado, narrando os feitos dos soldados e suas batalhas, a próxima citação, analiticamente, elabora uma sequência, tratando das questões sobre a ideia de regionalismo. Esse fato pode ser pertinente em um momento de reafirmação do regionalismo naquele ano de 1985. Sob o título de “Memórias da Revolução Farroupilha” os locutores levariam aos seus ouvintes, aspectos do que seria a estruturação da sociedade daquele período, um conteúdo significativo se relacionado com o contexto político e social do presente das comemorações.
Alguns aspectos sociais muito importantes para se compreender a Província de São Pedro, no momento do decênio histórico: o aparecimento de uma sociedade regional no momento em que a sociedade nacional amadurecia em organização e personalidade; o papel desempenhado pela estância, unidade social básica, na formação econômica, social, cultural e política da província; núcleos urbanos, dispersos pelo território, influindo sobre os dinamismos sociais; um clima intelectual e político, de certo modo denso, vinculado ao que se poderia chamar de “modernas aspirações brasileiras”; organização administrativa do território e dos partidos, em conexão bastante próxima com a realidade econômica e social. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Sobre os aspectos da formação da sociedade rio-grandense, a narrativa parecia explicar a formação de um regionalismo já a época da revolução, tendo como motor da formação dessa sociedade a estância. Representava-se a estância como o estereótipo da formação social rio-grandense, nas esferas: econômica, política e cultural, a narrativa expõe o tipo repensado para ser o representante da gênese da memória do povo rio-grandense. Por outro lado, para além do regionalismo, a narrativa traz a ideia de um movimento que trazia “modernas aspirações brasileiras”, o que poderia ser supostamente absorvido pelos ouvintes como um sentido de vínculo com o Brasil do qual o Rio Grande do Sul sempre fizera parte. Nota-se, a presença na narrativa, do discurso regional e o nacional lado a lado, o que poderia sugerir a pretensão de “recado dado” aos brasileiros e rio-grandenses no presente, no sentido de unidade por parte do discurso das elites.
Quanto à questão das chamadas se dirigirem a origem rio-grandense tendo como pano de fundo o período da Revolução Farroupilha, encontramos outra locução que pode dar sentido a anterior, evidenciando aspectos pertinentes para aquele momento. A próxima chamada analisada indica pistas de como estava sendo pensado pelos organizadores das comemorações o trabalho de memória.
O Rio Grande Farroupilha era constituído por homens de origem lusitana, negros e escravos, indígenas e colonos alemães. A população era reduzida: pouco mais de 100.000 pessoas e predominantemente rural. A ocupação principal na Campanha era a da indústria do gado, e a fração da população nacional e estrangeira que se dedicava ao comércio, indústria de transporte, artes mecânicas e a indústria fabril representava fração muito pequena. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Portanto, a narrativa procurava se adequar ao presente, dando uma origem que contempla várias etnias na formação social do gaúcho, mas com predominância para a zona rural da Campanha. Ou seja, percebe-se a tentativa de arrebanhar um número maior de pessoas sob a “bandeira farroupilha”, resignificando a origem dos sul-rio-grandenses as vésperas do sesquicentenário da revolução. O sesquicentenário da revolução coincidindo com a reorganização da república democrática brasileira, caberia aos organizadores do evento direcionar o discurso a respeito dos elementos de memória que deveriam ficar evidentes, como mostra a citação abaixo, sobre os supostos princípios republicanos dos farroupilhas.
A adoção de uma Constituição Republicana foi uma das primeiras preocupações do novo governo farroupilha. Criaram-se escolas. Foram abertas novas estradas. Surgiu o serviço de correio e foi concedida alforria aos escravos de seu exército. O governo Farroupilha também não se descuidou das relações de amizade com a República do Uruguai e com as províncias Argentinas de Entre Rios e Corrientes. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Podemos estar diante de uma narrativa, um tanto emblemática sobre os princípios políticos da Revolução Farroupilha. Por um lado a narrativa pode sugerir que a revolução criou um Estado independente, por outro faz alusão aos princípios republicanos, que supostamente – como foi uma regra no centenário da Revolução Farroupilha[7] – foram o embrião do republicanismo no Brasil. Em outra chamada analisada, seu discurso, converge para o pensamento de Moacyr Flores sobre os propósitos da revolução afirmando que:
A República Rio-Grandense era separatista porque possuía bandeira, hino e escudo de armas como símbolos da pátria. Em suas cartas, Bento Gonçalves, Netto, Mariano de Matos e Domingos José de Almeida referiam-se a que fundaram uma nova nação. A República dava cidadania e considerava os brasileiros de outras províncias como estrangeiros. As notícias oriundas das demais províncias eram consideradas pelo jornal O Povo como sendo do exterior. CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Portanto, comparando as narrativas acima, predomina o discurso do separatismo em detrimento da brasilidade, no entanto não é possível afirmar que tal narrativa, pudesse ter a finalidade de expressar puramente essa ideia. Antes, podemos intuir que o propósito de levar ao ar tal ideia de separatismo dos farroupilhas, é justamente reafirmar um Estado sulino que sempre primou pela autonomia. Mas há também um apelo ao regionalismo reafirmando esse em tempos de redemocratização da nação brasileira, como se a elite pleiteasse no presente, reivindicações semelhantes as do passado.
Mas em contraponto a ideia de separatismo, encontramos em outras chamadas, narrativas que, pareciam atender mais aos anseios do presente, lembrando que não era o separatismo a pauta do presente. Para o sesquicentenário da Revolução Farroupilha, a elite no governo “lembrava” a sociedade sobre os princípios políticos que o processo de redemocratização deveria ater-se. Propósitos que o trabalho de memória pretendia “resgatar” no passado farroupilha. Nesse aspecto em uma curta chamada, ficava claro que a Revolução Farroupilha, no discurso dos colaboradores da elite política do sesquicentenário foi:
(...) um movimento liberal que pretendia a liberdade garantida pelas leis, a federação, com a autonomia da província e do município, o controle do poder e do município e o controle do poder do Estado pelos representantes do povo. CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Pode-se notar a necessidade de se afirmar a garantia dos direitos liberais, defendidos em todas as esferas governamentais, com a ideia de que o governante é representante do povo. Podemos sugerir que tal discurso, pertence muito mais as ansiedades políticas do presente e da manipulação da memória no mesmo. Já na análise de outra narrativa, mostra-se a preocupação em manifestar-se que a Revolução Farroupilha foi contra o sistema imperial, e não contra o Brasil.
A Revolução Farroupilha faz parte dos movimentos liberais que abalaram o Império do Brasil no período regencial. O movimento farroupilha classifica-se como revolução, porque de modo com o conceito liberal da época, houve uma mudança na forma de governo. Pela primeira vez, no Brasil, instituiu-se de fato um governo republicano, de 1836 a 1845 abrangendo a Província do Rio Grande do Sul, Lages e Laguna, em Santa Catarina. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Assim, A revolução Farroupilha, também, por esse trabalho de memória, não se afastava da ideia de que foi pioneira na implantação de uma república em solo brasileiro, afastando a ideia de que foi uma revolução contra o Brasil, mas antes contra o Império. Porém o Império era o sistema político vigente, o que podemos intuir que, para a elite imperial, os farroupilhas representavam a cisão da nação brasileira naquele momento, o que poderia descaracterizar a “brasilidade” da Farroupilha. Dessa forma a suposta brasilidade reivindicada no centenário e no sesquicentenário da revolução, é antes, uma construção do presente, atendendo as necessidades da elite do século XX, que por mais que a revolução seja representada como separatista ou não, parece não pleitear tal cisão para o tempo presente.
Ainda analisando as narrativas que o Estado do Rio Grande do Sul produziu para o sesquicentenário da revolução, os autores ressaltaram motivos externos que motivaram os farroupilhas à busca da autonomia. De acordo com tal narrativa:
O país estava em grande inquietação quando D. Pedro I abdicou. As Províncias desejavam autonomia e, no Rio Grande, esse desejo era ainda mais ardente por influencia do Prata onde a federação já era vitoriosa. Outra causa eram os tributos que recaíam pesadamente sobre os fazendeiros, prejudicando o comércio do charque. A Província se encontrava em completo abandono. Nenhuma obra de utilidade pública era realizada. Alguns homens, responsáveis por esse clima, colaboraram para a eclosão do movimento farroupilha. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Os antecedentes da Revolução Farroupilha, segundo a narrativa, representavam um movimento, que ao que parece somente se insurgiu pela ausência de um governo central, fato que teria levado as elites locais ao movimento. Outra questão pertinente, é que a citação pode dar o entendimento a respeito da elite do movimento ser de charqueadores, portanto definindo assim a elite que deu impulso a revolução. Esse fator foi muito explorado em 1985, na reconstrução da memória da Revolução Farroupilha, idealizando como figura principal na formação da sociedade rio-grandense, o gaúcho. Mas em outra chamada analisada, encontramos indícios de que a elite charqueadora, em parte era responsável pela competição desigual com o charque do Prata, o que faz com que possamos questionar quanto ao abandono ao incentivo do produto por parte do governo central. Sobre o preparo do charque a narrativa afirmava que:
O preparo do charque foi à primeira forma de industrialização que se destacou no Rio Grande do Sul. Em 1822, existiam 22 charqueadas em Pelotas. Cerca de quatrocentas mil cabeças eram, anualmente, abatidas para o fabrico do charque. A charqueada foi um empreendimento compensador, mas o preparo do produto deixava bastante a desejar, o que causou uma depreciação ao findar o período farroupilha. (CORRESPONDÊNCIA. FUNDO DO SESQUICENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA. AHRGS CAIXA 2).
Apesar do trabalho de memória pretendido nas chamadas radiofônicas, percebe-se que essas oscilavam, no caso da narrativa acima, assim como representava o charque como principal indústria, por outro lado lembrava-se da precariedade do preparo do produto. Mesmo a charqueada sendo o “motor” da economia, podemos deduzir que traçar uma relação entre passado e presente, buscando uma continuidade no presente (1985), poderia soar um tanto apelativo. Por outro lado, aquele trabalho de memória, assim como em outros períodos, sempre buscou na figura do gaúcho e do seu meio o “herói” mítico fundador da sociedade rio-grandense. Esse homem seria o ancestral, que era a “personagem frequentada por tabela” da qual segundo os defensores da memória farroupilha, todo rio-grandense derivava. Assim, a memória manipulada pelas elites, foi cumprindo com os propósitos da mesma, retomando o passado pela celebração organizada com fins muito específicos: de dar um sentido de identidade ao sul-rio-grandense naquele contexto.
Conclusão
A Revolução Farroupilha, a cada vinte de setembro, vem à tona pelos trabalhos de rememoração organizados pelas elites e pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. Uma memória que parece não admitir esquecimentos, e que por consequência, trona-se um porvir, que vai colaborando para a reedição de uma memória que convida os sul-rio-grandenses a comemorá-la. A questão não é a crítica ao que os sujeitos no presente fazem, por meio de suas práticas, na construção das representações do seu passado. Mas é como esses compreendem o quanto tais representações podem sofrer intervenções que as tornem turvadas pela manipulação da memória a serviço das elites. Dessa forma, com consciência da fragilidade da memória talvez os sujeitos possam avaliar o quanto as comemorações têm de construção do presente na busca pela presença constante do morto, quando a necessidade da memória se faz presente.
FONTES
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul – AHRGS.
Fundo do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Caixa 02. Correspondência da Secretaria de Educação para o presidente da Comissão do Sesquicentenário da Revolução Farroupilha Julho de 1985.
FLORES, Moacyr. A Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed., Campinas, São Paulo: 2003.
MENEZES, Ulpiano T. B. Educação e museus: sedução, riscos e ilusões. Porto Alegre: Faculdade Porto-alegrense de Educação, Ciências & Letras, jan/jun 2000, p.91-101; nº27.
PESAVENTO, Sandra Jathay. Resentimento e Ufanismo: Sensibilidades do Sul Profundo. In: Bresciani; Naxara (organizadoras). Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.
RAMOS, Luciano Braga. Um Lugar de Memória para a Revolução Farroupilha: A Construção do Monumento a Bento Gonçalves da Silva em Porto Alegre 1934-1936. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo, 2015.
[1] Emprego o termo “trabalho de memória” por entender que a memória, conforme apontou Ulpiano Bezerra de Menezes, é um produto do presente, pois parte do presente para atender as expectativas dos homens do presente em relação a um passado apropriado. Como já mencionado: de acordo com Jaques Le Goff, a memória como propriedade de reter informações passadas, acaba por também comportar as informações que os homens representam como passadas. Assim, a memória é um trabalho entorno de um passado que tenha significado para o grupo que o traz ao presente pela memória.
[2] No que se refere ao poder da mensagem verbal via radiodifusão, pode-se pensar que esse movimento de comunicação oferece material psíquico para a produção de imagens mentais que por consequência do trabalho de memória realizado contribuem para a criação de um imaginário coletivo sobre a Revolução Farroupilha para o ano de 1985.
[3] Sobre o assunto ver também: PESAVENTO, Sandra Jathay. Resentimento e Ufanismo: Sensibilidades do Sul Profundo. In: Bresciani; Naxara (organizadoras). Memória e (res) sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.
[4] Nota-se que as legendas procuravam estar sempre associadas à narrativa principal, de forma a impelir uma reflexão sobre a narrativa, por parte dos ouvintes.
[5] Nota-se que a narrativa tratou a “revolução” como luta civil, fato um tanto incoerente com a ideia do separatismo como aparecerá em outros momentos. Para Moacir Flores a revolução foi separatista porque criou uma república nos seus quase dez anos de existência. FLORES, Moacyr. A Revolução Farroupilha. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
[6] De acordo com o historiador Eric Hobsbawm: “Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado”. (HOBSBAWM, 2008, p.09).
[7] Sobre essa ideia de continuidade entre os homens do passado, e a gênese da república no Brasil ser o movimento farroupilha ver: RAMOS, Luciano Braga. Um Lugar de Memória para a Revolução Farroupilha: A Construção do Monumento a Bento Gonçalves da Silva em Porto Alegre 1934-1936. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo, 2015.