O QUE É A JUSTIÇA
Por FABIO FERNANDES | 11/04/2009 | Filosofia
Introdução
O objetivo geral deste trabalho visa identificar o esforço de Platão em definir o que é a justiça, decorrente nos quatro primeiros livros da República, sobretudo uma análise que pretende diferenciar o método que Sócrates utiliza no livro primeiro para atingir o conceito de justiça, e as diretrizes que ele toma com relação aos demais livros. O objetivo específico se limitará à forma que o debate da justiça sai do livro I aporética e entra nos demais livros com definições e conceitos expositivos. Sendo que, a finalidade será esclarecer as definições da justiça apresentadas nos quatro livros, visando, sobretudo à base nos conceitos que regem a filosofia platônica e Socrática.
É de fundamental importância no início deste trabalho, que em primeira instância tratemos de distinguir o Sócrates do primeiro livro do Sócrates apresentado por Platão nos demais livros da República, em virtude de fazer com que esta separação seja um prelúdio, que de certo modo, implicará diretamente nas definições da justiça e na distinção das duas filosofias, a platônica e a socrática.
1.1 Filosofia Platônica e Filosofia Socrática
Em primeiro momento, é importante ressaltar que a refutação não é a finalidade da filosofia socrática. A dialética explicitada nos diálogos de primeira época de Platão, assim como no primeiro livro da república, tem como finalidade a não-refutação, mas sim averiguar a concordância sobre aquilo que o interlocutor afirma saber e aquilo que ele acredita. Isto é determinado quando Sócrates faz uso prático de sua filosofia dialogando com o interlocutor, e deseja atingir o ponto principal de seu método, que é a harmonia do logos (razão) e do érgon (ação). Frequentemente deturpado, muitas vezes mal interpretado, é dito por alguns comentadores que a finalidade do Elenchos seja a princípio a refutação. Mas é perigoso afirmar que o Elenchos seja necessariamente refutação, visto que Sócrates procura achar alguém que saiba sobre aquilo que discursa e que não se contradiz.
O livro I da República é caracterizado, sobretudo, por ressaltar a “ignorância” socrática, pois evidentemente trata-se de um diálogo semelhante aos de primeira época, onde encontramos a filosofia do “não saber socrático”; nestas obras “conhecer não é recordar”, sendo esta uma perspectiva de uma filosofia platônica, que se desenvolve nos diálogos de terceira época e a partir do livro II da República.
No livro primeiro, para que Sócrates faça uso do Elenchos, implica dizer que há uma necessidade de ferramentas para se chegar à verdade ou convencer e refutar o interlocutor no que diz respeito à definição do que seja a justiça. Estas ferramentas são: o silogismo e a epagogé. Ambos têm o mesmo objetivo, diferenciando-se em alguns aspectos. A rigor, tanto um como o outro são meios para examinar através de premissas e conclusões a linguagem e a ação até que se chegue a uma concordância ou á refutação do interlocutor. O silogismo ao qual Sócrates recorre é também muitas vezes mal interpretado. Alguns o tomam como puramente retórico, outros o confundem como uma determinação da sofística. Mas se analisarmos com mais precisão o que Sócrates faz, e o que ele vai chamar de filosofia, não é puramente retórica e nem mesmo um método sofista, e é de fato diferenciado em virtude da pretensão de obter a verdade sem a preocupação de ludibriar o interlocutor.
Para que o silogismo seja efetivado, Sócrates sempre se posiciona como perguntador, e por meio da eróteses, ou seja, da arte da pergunta, averigua por um conjunto de premissas se há uma contradição naquilo que o interlocutor acredita como verdadeiro. É preciso que o interlocutor aceite as proposições demonstradas e analise a si mesmo. Se for constatada uma contradição, logo é de fundamental importância a refutação, pois é o maior bem que se pode fazer a alguém que acha saber, mas não sabe daquilo que acha saber. Este silogismo usado por Sócrates é bastante específico no que diz respeito a sua finalidade. Diferente do Aristotélico, o silogismo de Sócrates aponta para que o discurso racional (logos), precisa essencialmente concordar com a ação (érgon). Somente desta forma, pode-se chegar à verdade.
A epagogé é também uma forma de silogismo que parte na maioria das vezes do particular para o geral, sendo que as premissas são fundamentadas através de exemplos, sobre os quais Sócrates utiliza de adágios práticos do cotidiano, ou seja, exemplos do dia a dia, visando facilitar a compreensão e preparar o cenário para uma possível refutação, induzindo o interlocutor a achar uma definição universal.
O primeiro livro da República é caracterizado pelo Sócrates que não sabe, mas que no decorrer dos demais livros fica evidente que não há espaço para a ignorância socrática, sendo que, Platão apresenta sua própria filosofia, uma teoria do conhecimento, onde o axioma, ou seja, o princípio e pressuposto de todo saber é o conhecimento das formas, o conhecimento inteligível (Noesis), implicando na maiêutica, conhecer é recordar (memória), onde alcançar as formas, o conhecimento verdadeiro, é aniquilar as sombras, aniquilar o conhecimento sensível.
O Sócrates do primeiro livro da República é sobretudo o espelho da própria filosofia socrática, ou seja, o método especulativo visando questões éticas, preocupação com a argumentação, caracterizado especificadamente pelo elenchos, é o que diferencia o Sócrates dos demais livros que é um personagem mais expositivo e conceitual.
Podemos afirmar, portanto, que aquilo que diferencia o primeiro livro da República para os demais, é necessariamente o que diferencia o método apresentado nos primeiros diálogos de Platão para os de terceira época. Mas não somente o método, mas também as questões que envolvem a filosofia socrática que necessariamente giram em torno de implicações éticas e morais e que a partir do livro dois essas implicações serão definidas, conceituadas na construção da cidade ideal e na harmonia que a cidade paralelamente apresenta em relação com a alma do indivíduo.
1.1 A Aporia!
Sócrates caminhando até o Pireu com o intuito de fazer as orações à deusa e de celebrar a festa que os habitantes faziam, é encontrado por Polemarco filho de Céfalo¹, que impede por determinado período Sócrates de partir. Ao chegarem à casa de Polemarco, Sócrates e seus amigos se deparam com vários personagens, dentre eles: Lísias e Eutidemo, irmãos de Polemarco, Trasímaco de Calcedônia² e Céfalo. Sócrates é bem recebido pelo anfitrião da casa, que em retribuição elogia a Céfalo dizendo ser prazeroso conversar com pessoas de idade avançada, como se necessitasse de informações sobre os caminhos da vida em que ainda deveria percorrer. Sendo assim, Céfalo passa a falar da experiência própria e a defender que esta fase da vida, segundo a educação tradicional, ou seja, os poetas, será pesado às pessoas que não apresentam sensatez.
Observa-se que no início do livro I, a discussão a princípio não é sobre o que é a justiça, o foco do diálogo será convertido quando Sócrates questiona Céfalo se ele suporta bem a velhice não devido ao caráter, mas as riquezas que possui. Neste ponto do diálogo em (330a-e), as palavras justiça e injustiça surgem como pressupostos de análises de condutas éticas e morais. Sócrates, a partir de (331a) conduz os argumentos à questão sobre o que seja a justiça.
A definição de Céfalo é sobretudo a concepção de justiça da Grécia antiga, que visa a educação ditada pelos poetas. Esta primeira definição reflete o próprio estilo de vida do ateniense e deste modo, sinônimo de justiça, portanto, é não cometer falta aos outros, não tomar o que pertence ao próximo, devolver o que é do outro. (330e)
(...) Não ludibriar ninguém nem mentir, mesmo involuntariamente, nem ficar a dever, sejam sacrifícios aos deuses, seja dinheiro a um homem, e depois partir para o além sem temer nada. (...) Falas maravilhosamente, Céfalo - disse eu. – Mas essa mesma qualidade da justiça, diremos assim simplesmente que ela consiste na verdade e em restituir aquilo que se tomou de alguém ou diremos antes que essas coisas, umas vezes são justo, outras vezes injusto fazê-las?
(PLATÃO, A República, 331c).
Neste ponto do diálogo, Sócrates inicia a investigação acerca do que seja a justiça e faz um questionamento a Céfalo: “será que isto mesmo é a justiça?”. Será que devolver ao outro aquilo que lhe é devido corresponde aquilo que é justo? Sendo que, um sujeito em são juízo pede para que guarde suas armas, e o mesmo sujeito tempo depois em desespero pede a restituição, seria porventura justo restituir-lhe o que é devido? Será sensato? Seria bom? Nesta parte fica claro o uso da epagogé e do silogismo, ferramentas próprias do método socrático evidente nos primeiros diálogos de Platão. A investigação socrática resulta na refutação das premissas de Céfalo, que se retira logo após concordar com Sócrates. Polemarco então, assume a discussão, apropria-se da definição do pai e melhora em certo aspecto afirmando ser a justiça fazer bem aos amigos e mal aos inimigos, concepção de justiça advinda do poeta Simônides, ainda uma inclinação à tradição.
A princípio há duas questões propostas pelos interlocutores: o que é a justiça e qual sua utilidade. Polemarco ao conceber sua idéia de justiça, sua definição visa em específico à praticidade da justiça e não um conceito universal. Sócrates mais uma vez refuta a definição proposta e de fato, fazer mal a um inimigo é de certa maneira, fazer com que eles se tornem mais injusto, portanto, fazer mal a um inimigo é cometer uma injustiça e não se pode em determinada ação utilizar-se da justiça para fazer o mal, ou seja, não se pode atribuir vingança à justiça.
“A justiça é a vantagem do mais forte” (338c)
A terceira definição de justiça é feita por Trasímaco. Para ele, a justiça é uma espécie de preponderância de quem faz a lei. Quem está no poder tem o domínio sobre a classe que cumpre a lei, consequentemente, a classe dominada cumpre a vontade do mais forte. Entretanto, segundo Sócrates, se um governante se enganar e fizer uma lei que o prejudique e se alguém cumpre esta norma, isto de modo nenhum será conveniente a quem é mais forte. (340c) Trasímaco é talvez o mais versátil dos interlocutores que dialogaram com Sócrates. Sem dúvida alguma possui em seus argumentos a lógica e a inteligência, semelhante ao silogismo erístico Aristotélico, onde a argumentação é necessária tanto como a conclusão e as premissas representadas como endoxais, mas que na verdade não são sendo a finalidade a vitória, típico sofístico. Embora Trasímaco apresente boa argumentação, Sócrates o refuta através de seu método dialético e o livro um da República se caracteriza, sobretudo pela aporia. Nenhum dos interlocutores chega a uma conclusão do que seja a justiça. Sócrates é logo, o filósofo que sabe que não sabe e procura achar alguém que saiba o que é a justiça, alguém que possa ensinar o que seja a justiça.
1.3 A Exposição!
A partir do segundo livro da República, a investigação acerca da justiça deixa de ser uma especulação no sentido em que Sócrates passa a ser mais expositivo, os interlocutores que antes travavam os debates em torno do elenchos, no livro dois em diante serão mais ouvintes e telespectadores do que interlocutores. É importante ressaltar que a metodologia apresentada após o livro um, é de certa maneira, aquilo que parte da tradição afirmará ser a própria filosofia platônica; a pretensão filosófica não está apenas no âmbito moral como denota nos diálogos de primeira época, mas envolve agora uma perspectiva total da polis, uma teoria do conhecimento onde a dialética deixa a esfera do elenchos e dá lugar à conceituação, a exposição da teoria das formas, sobretudo um paralelo entre a estrutura da polis grega e a estrutura da alma, a tripartição da alma do indivíduo. A filosofia assume desta maneira, uma forma conceitual, e o papel do filósofo, objetiva principalmente para Platão as concepções da liderança política. O filósofo é aquele capaz de governar porque somente ele possui o conhecimento das formas, somente ele conhece a virtude, o que é melhor para todos, o que é a coragem, o que é a justiça.
Na mesma medida que Platão constrói a cidade ideal, organizando-a em todos seus aspectos, buscando harmonizar as classes dos governantes, guerreiros e artesãos, Platão quer de certo modo, censurar a poesia e ressaltar que somente o conhecimento das formas produz a educação verdadeira, a educação consistente e real. O livro II e III da República caracteriza-se principalmente em torno da construção da cidade e visa criticar a educação tradicional ao mesmo tempo em que se cria um novo conceito de educação. A questão sobre a justiça fica estacionada por um determinado tempo, mas que é retomada no livro quatro, mais específico quando...
(...) Se descobrirmos a natureza da justiça, porventura entenderemos que o homem justo em nada difere dela, mas em tudo lhe é semelhante? Ou dar-nos-emos por satisfeitos, se se aproximar bastante dela e dela participar mais do que os outros? _Assim, dar-nos-emos por satisfeitos. (PLATÃO,427d)
Uma vez terminada a fundação da cidade, a questão sobre o que é a justiça é retomada. Sócrates utiliza agora não o elenchos, mas definições, expondo sobre o que é a coragem, a sabedoria, a temperança e a justiça. O que nos interessa neste trabalho é objetivamente sobre a justiça, portanto, em (433a), afirma Sócrates:
Mas escuta, e diz se eu digo bem. O princípio que de entrada estabelecemos que devia observa-ser em todas as circunstâncias, quando fundamos a cidade, esse princípio é, segundo me parece, ou ele ou uma das formas, a justiça. Ora, nós estabelecemos, segundo suponho, e repetimo-lo muitas vezes, se bem te lembras, que cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para a qual a sua natureza é mais adequada. (PLATÃO, 433a)
No livro IV, portanto, surge a definição da justiça. É a justiça, o princípio para fundar a cidade, é a harmonia resultante de cada classe cumprir sua tarefa designada pela natureza própria do indivíduo, nisto consiste o equilíbrio, a justa medida; o governante deve desempenhar seu papel assim como os guerreiros e os artesãos. O paralelo que Platão faz do conceito de justiça ser princípio e fundamentação da cidade, uma harmonia entre as três classes, é justamente o mesmo conceito que reflete a justiça na alma, uma harmonia no que diz respeito à tripartição da alma.
1.4 Conclusão
A justificativa de abordar este tema para a pesquisa, teve, sobretudo, o intuito de discernimento a respeito do que seja a filosofia platônica e filosofia socrática, seus respectivos métodos, e suas diretrizes. Sendo assim, alcançado o objetivo, nada resta a não ser concluir o trabalho com o trecho, que de certa maneira, instigou Sócrates no livro I, a iniciar sua investigação acerca da justiça.
“A doce esperança que lhe acalenta o coração acompanha-o, qual ama da velhice – a esperança que governa mais que tudo, os espíritos vacilantes dos mortais”. (PLATÃO, 331a)