O quarto na fazenda Santa Catarina
Por Sandra Oliveira | 04/03/2010 | ContosO ano era de mil novecentos e doze.Na Bahia ,os fazendeiros de cacau enriqueciam com a crescente safra e exportação do produto.Entre eles havia o coronel João Antonio,um homem entre vinte e cinco e vinte e oito anos,mais ou menos,alto,forte e muito rigoroso no trato de sua fazenda e seus funcionários.Nunca precisou falar duas vezes,era temido por todos que o conheciam mas também respeitado por ser reconhecido como um homem justo.Ainda não tinha se casado, não tinha família,pelo menos não se conhecia ninguém que fosse seu parente,tudo que se sabia dele é que chegou por ali criança ainda,sozinho,faminto,triste e sem nenhuma lembrança de sua vida até aquele dia, quando o sr.Manoel,dono daquelas terras o acolheu.Recebeu de D. Catarina,esposa do sr. Manoel,o nome de João Antonio,por ter chegado á sua fazenda na época das festas juninas.Ela o considerava como um filho,já que o casal não tinha tido essa graça.O menino foi crescendo saudável,esperto e bastante reservado,quase não falava,e todas as pessoas que conheciam a estória se admiravam com a semelhança física que existia entre os três,juravam que o garoto era filho deles.
Na adolescência,seus pais queriam manda-lo para a capital para estudar,porem o menino não tinha vontade e nem mesmo jeito para o estudo,gostava mesmo era da terra,de cuidar dela,de ver os cacaueiros crescendo e dando frutos.Nessa época a fazenda crescia e as posses da família também,estavam ficando ricos.
A infância e a adolescência,João dividiu com Leonor,filha do sr.Sebastião,capataz da fazenda.A menina tinha um sonho,estudar na capital e se tornar professora para ensinar as crianças da fazenda.
João Antonio e Leonor brincavam todos os dias,felizes da vida,sem compromisso,sem medo,livres. Chegando a hora de Leonor ir para a capital,ela estava com quinze anos e João Antonio talvez estivesse com mais ou menos vinte,já que ninguém sabia nada de sua origem,tudo naquela fazenda se transformou,João passou á trabalhar muito mais,quase não se via um sorriso no seu rosto tamanha era a falta que lhe Leonor lhe fazia.Á essa altura todos na fazenda já sabiam do amor do rapaz,e torciam pelo casamento dos dois.
Depois de três anos na capital,Leonor voltou.Formada,cheia de vontade de começar á ensinar as crianças da colônia,pensando em conseguir a autorização do sr. Manoel para ensinar as crianças negras que tinham ficado na fazenda depois da Abolição.
Ela tinha ficado ainda mais linda do que foi quando criança.Morena com longos cabelos pretos,os olhos eram cor de mel, a mesma vitalidade e força de caráter que encantava João Antonio.
Nessa época,D.Catarina e o sr.Manoel,vendo que tudo corria bem e que a volta de Leonor trouxe de volta o sorriso e a alegria de João Antonio,decidiram realizar um sonho antigo,fazer uma viagem á Europa. E assim foi feito,partiram felizes e tranqüilos.
Antes de partirem deram á Leonor,autorização para que ela ensinasse á quem quisesse aprender.Foi construída então uma pequena escola para atender os alunos,e cada dia chegavam mais,e a menina ficava ocupada com seus alunos o dia inteiro,mas estava feliz.
Enquanto isso João começou a sentir-se esquecido,deixado de lado e o ciúme foi aumentando,mas não fez nada que pudesse prejudicar o trabalho da moça.
Tudo corria bem até que veio a triste noticia,o sr.Manoel e sua esposa,D.Catarina haviam morrido na viagem de volta para casa depois de dez meses viajando pela Europa,o navio em que estavam naufragou diante de uma terrível tempestade em alto mar.
Não houve quem não lamentasse profundamente a morte dos dois,eram muito queridos e respeitados naquela região.
Desolado e profundamente abatido,João mergulhou ainda mais no trabalho,passou a cuidar pessoalmente da parte burocrática que envolvia a exportação do cacau,e para isso tinha que viajar com freqüência á capital.
Leonor fazia o que podia para ajudar o amigo,mas sem retorno,João Antonio tinha mergulhado numa tristeza que parecia não ter fim,sentia-se só,abandonado.Todo amor,carinho,atenção e confiança que conheceu na vida,veio daquele casal que o amou como á um filho,e percebendo que esse era um momento que ele tinha que atravessar sozinho,Leonor ficou á espera de um sinal para poder se aproximar.Continuou seu trabalho com a alfabetização do povo da fazenda e das redondezas enquanto João renascia para a vida,agora decidido á ser feliz,casando-se com Leonor,a menina que tomou seu coração desde criança.Era uma questão de tempo,iria á Portugal acertar coisas de trabalho e bens deixados por seus pais,e em um ano mais ou menos se casariam.Iria pedi-la em casamento quando voltasse de Portugal trazendo o mais lindo vestido de noiva e o anel mais precioso que pudesse encontrar.
Durante o período de tristeza de João Antonio e a viagem dele á Europa, Leonor conheceu um rapaz que trabalhava na fazenda vizinha,seu nome era Juvenal,um rapaz de dezoito anos que a procurou para aprender á ler e á escrever,juntamente com outros empregados desta mesma fazenda.
Era gentil,educado,forte,bonito,nem parecia que tinha nascido e vivido toda sua vida no mato.Mesmo analfabeto,prestava muita atenção no que dizia e ensinava o filho do patrão,moço culto e viajado que soube perceber a inteligência e o interesse de Juvenal em aprender tudo que pudesse,e ele não se recusava á ensinar,principalmente no que dizia respeito á educação,maneiras de se portar em ambientes diferentes aos da fazenda.
Juvenal procurou aprender tudo com a muita rapidez,pois confidenciou ao patrãozinho que estava apaixonado pela professorinha e que talvez existisse uma possibilidade de ser correspondido.
Depois de muito tempo de ensino,ensaio e acumulo de coragem por parte de Juvenal,ele decidiu abrir seu coração á moça,e como pediu á Deus,não foi rejeitado,e á partir daí começaram á fazer planos para o futuro.No domingo,depois da missa que o padre realizava na capela da fazenda,foram até a casa grande contar a novidade para João Antonio,que havia voltado á dois dias de sua viagem, e pedir para que fosse seu padrinho no casamento.
Ao ouvir a noticia João fez um esforço sobre humano para não enlouquecer de dor.
Cada fibra do seu ser gritava a vontade de mata-los com as próprias mãos,mas controlou-se,Deus sabe como,e com todo esforço que podia, aceitou ser o padrinho,e escutava mostrando atenção em todos os planos do casal.
Enquanto tudo era preparado para a festa que seria oferecida aos funcionários das duas fazendas depois da cerimônia,João Antonio resolveu fazer umas mudanças no interior da casa grande,mais precisamente no quarto que havia sido de seus pais,este ficava construído de tal maneira que ao mesmo tempo em que estava fora da casa tinha uma ligação direta com o resto dela.João disse á Sebastião que ira lacrar o tal quarto,deixando para ser reaberto somente quando tivesse a felicidade de encontrar um amor verdadeiro tal qual havia acontecido com Leonor.
E assim foi feito,Sebastião cuidou pessoalmente de fazer o serviço,deixando para lacrar a porta que dava para o resto da casa quando João ordenasse.
Faltava uma semana para o grande dia de Leonor e Juvenal,quando João Antonio convidou os dois para jantarem na casa grande pois seria naquele jantar que ele iria entregar-lhes o presente de casamento.Chegaram ás sete horas,as negras que cuidavam da casa já tinham ido para a colônia,deixando posta a mesa e a comida pronta.Estavam os três na casa,e João para brindar ofereceu ao casal um vinho,que como ele disse era muito especial e raro,perfeito para a tão feliz ocasião.Juvenal e Leonor nunca haviam tomado vinho,ao provarem não se entusiasmaram com tal bebida, mas não fizeram desfeita diante do pedido do padrinho.Algum tempo depois já bebiam o vinho achando agradável seu sabor e a sensação que causava.Logo depois estavam desacordados.
João Antonio pegou Leonor nos braços e carregou-a para o quarto de seus pais,colocando seu corpo sem sentidos sobre a cama dos pais.Aos prantos pedia perdão á moça enquanto a beijava e ajeitava seu vestido,cor de rosa,tão lindo e tão simples e seus macios cabelos negros como a sua dor.Depois dirigiu-se até a sala,e arrastou o corpo de Juvenal para a cama,colocando-o ao lado de Leonor,ajeitou os dois corpos lado a lado e com a alma rasgada pela dor,consciente de que nunca realizaria seus sonhos de amor com aquela menina,trocou de roupa e começou á erguer uma parede no lugar onde antes havia uma porta,sabendo que a droga que havia colocado no vinho do casal faria com que dormissem um sono profundo por muitas horas,embriagou-se, soluçando chorando pelo amor que nunca iria realizar-se.
No dia seguinte bem cedo,ordenou á Sebastião que lacrasse a outra porta,e procurou tranqüilizar o empregado quanto ao fato de Leonor não estar em casa,disse ao pobre homem que provavelmente ela teria saído muito cedo para cuidar do vestido de noiva e que isso era típico de mulher apaixonada e feliz.
O dia seguiu e as pessoas começaram á achar estranho o sumiço da moça,principalmente depois que souberam que Juvenal também havia sumido.Não existindo nada e nem ninguém que tivesse algo contra o casamento,logo começaram á pensar na possibilidade do sr.João Antonio ter feito alguma maldade,pois o sofrimento dele era visível,por mais que disfarçasse.Porém ninguém tinha coragem de falar nessa possibilidade.Á noite,como eles não apareceram, decidiram avisar a policia que começou á investigar.
João demonstrava preocupação e boa vontade facilitando em tudo que podia a investigação da policia,foi tão bem em sua representação que acabaram por afastar da cabeça qualquer possibilidade dele ter alguma coisa á ver com o sumiço dos noivos.
Era sábado,na manhã seguinte seria o dia do casamento e nenhuma pista do paradeiro dos jovens.Todos estavam desolados,perdidos por não terem nenhuma explicação do fato.
O sr. Sebastião parecia ter envelhescido dez anos naquela ultima semana,naquela tarde, João,que já não suportava vê-lo morrendo aos poucos,enquanto sentia o olhar de desconfiança do homem com relação á sua pessoa,decidiu que ia acabar com essa situação incomoda antes que outras pessoas começassem á ter as mesmas idéias.
Foi até a casa do capataz levando uma garrafa de uma cachaça muito boa,especial,e ali beberam.Mas em um certo momento o sr.Sebastião começou á passar mal,era o veneno fazendo efeito, mas era preciso esperar mais um pouco para que não pudesse ser percebido o envenenamento.Em sua agonia o pobre homem teve certeza,tinha sido realmente João Antonio que deu fim á sua filha e ao rapaz que iria ser seu genro.
João,quando teve certeza de o homem já estava morto correu para fora da casa gritando e pedindo socorro aos empregados,que ao chegarem e verem o corpo do capataz,já sem vida concordaram com o patrão quando ele disse que foi o coração de Sebastião que não suportou tanta dor.O pobre coitado foi enterrado no cemitério da família dentro da fazenda,como era comum naquela época.
Passados alguns meses,sem nada concluído sobre o desaparecimento do jovem casal,e sem nunca ninguém ter suspeitado de nada sobre a morte do sr.Sebastião,João Antonio sentia mal,sabia que Leonor e Juvenal foram morrendo aos poucos trancados naquele quarto sem ar e sem luz .Aquele quarto que um dia foi de um casal generoso,respeitável e feliz ,havia se transformado no tumulo daquele jovem casal.
Desorientado,João ir embora para Portugal,ainda tinha algumas propriedades por lá,deixando a fazenda por conta de administradores contratados na capital,e assim nunca mais se soube dele.
No ano de dois mil e cinco,uma empresa multinacional,arrematou num leilão as terras que pertenceram ao sr.João Antonio e para a construção dos galpões que formariam a gigantesca fábrica era preciso demolir todas as antigas construções.E foi com essa demolição que se descobriu os corpos do casal,e juntando as peças,histórias contadas pela população antiga daquela região,mais documentos e principalmente um diário que Leonor mantinha secretamente,é que se descobriu mais de oitenta anos depois,o que havia acontecido de fato com Leonor e Juvenal.