O PROGRAMA NACIONAL DE DESESTATIZAÇÃO

Por Catarina Santos Bogea | 13/06/2017 | Direito

O PROGRAMA NACIONAL DE DESESTATIZAÇÃO¹ 

                                              

Catarina Santos Bogéa²

Diogo de Almeida Viana dos Santos³

 

1 DESCRIÇÃO DO CASO

O PND surge na última década do século passado por força da MP nº 155, de 15 de março de 1990, convertida na Lei nº 8.031/90, que vigorou até o ano de 1997, quando foi revogada pela Lei 9.491/97. Neste espeque há de se reconhecer que o PND, por meio das concessões, permissões e autorizações, oferece grandes avanços, especialmente, no setor energético e do transporte rodoviário. Contudo, o expectador-cidadão deve levar em conta que lá se vão longos vinte anos desde a chegada da primeira lei de desestatização, sem que se tenha notícia de até quando o PND permanecerá em execução.

Fato contributivo para que os Governos (1990 a 2016) persistam com a desestatização, consiste na flexibilidade do regime jurídico que vincula o programa. Isto é, em que pese o PND tenha uma finalidade, a Administração Pública molda a adoção de critérios e procedimentos conforme a necessidade do ente/setor a ser desestatizado.

Não obstante o poder discricionário que acabou sendo conferido ao Administrador Público para a contínua execução do PND, é importante que paremos para analisar os resultados positivos e negativos que recaíram sobre o Estado e cidadãos. Ora, a aferição é simples: o programa objetiva a eliminação da ineficiência da gestão estatal e das dificuldades de financiamento do setor público, através da redução do escopo de sua atuação, reestruturação industrial, e redefinição do papel do Estado, que deve se voltar para atividades que são de sua responsabilidade precípua.

Ocorre que aquelas funções precípuas do Estado, relacionadas a direitos fundamentais como saúde, educação, segurança, habitação, emprego, permanecem sendo conduzidas na mesma cadência dada ao PND, ou, quando pior, permanecem em status de espera.

Mediante o exposto, o que se pretende desenvolver ao longo do presente estudo de caso é uma linha analítica do tempo, remetendo ao governo Collor, onde o PND iniciou, até o atual governo Dilma Rousseff, com o objetivo de observar as intenções do programa, e verificar, no plano da experiência brasileira se aquilo que justificava o reposicionamento estatal foi atendido ou não.

 

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

O crescimento desmesurado do Estado é uma das principais causas apontadas por estudiosos para justificar a onda mundial de desestatização. Afirma-se que o Estado Liberal, fundado nas ideias de proteção da liberdade e da igualdade, mostrou-se insuficiente para debelar as distorções econômicas e sociais que ele mesmo provocou.

Após a II Guerra Mundial consolida-se então um novo modelo de Estado: o Estado Social (também denominado "welfare state"). Neste novo modelo, substituem-se as ideias liberais de cunho individualista e da igualdade meramente formal para a busca de uma igualdade em sentido material. Assim, atribui-se ao Estado o dever de intervir na ordem econômica, para o fim de corrigir as distorções provocadas pelo liberalismo até então vigente.

Em vislumbre ao novo quadro do Estado Social, novas transformações no papel estatal foram inevitáveis: acrescentou-se o elemento "democrático" ao Estado Social, que passou a ser concebido como Estado de Direito Social e Democrático (é de Direito – protetor das liberdades individuais, sem deixar de ser Social – protetor do bem comum). No mesmo sentido, insere-se o elemento democrático (que já se encontrava presente, na formulação anterior, frise-se) com uma nova roupagem, a saber: participação popular no processo político, nas decisões do Governo, e no controle da Administração Pública. (DI PIETRO, 2003). Ainda em atenção ao aspecto histórico do processo de desestatização, OTERO afirma que:

 

A privatização da Administração Pública, entendido este fenômeno, numa primeira aproximação, como o exercício por atividades privadas de funções de natureza administrativa ou, segundo outra perspectiva, com a transferência para particulares do exercício de poderes soberanos normalmente integrantes da esfera das autoridades públicas, não se trata, ao contrário de tudo quanto se possa pensar, de um fenômeno recente: a privatização da Administração Pública é uma realidade muito anterior ao século XX ou mesmo ao liberalismo. (OTERO, p. 31, 2001).

 

Como afirmou OTERO, o fenômeno da desestatização não é novidade na evolução econômica das sociedades, e a partir dos anos 90 se assistiu a uma verdadeira onda de privatizações, que, apesar de ter em sua base algum retorno as concepções econômicas neoliberais e politicamente reducionistas do papel do Estado, pouco se identificou com os modelos históricos de privatização.

No Brasil, a face do processo de desestatização como se conhece hoje, começou a se moldar no governo Collor (1990 a 1992). Sob a gestão Collor, adveio a Lei 8.018/90, que criava a emissão de Certificados de Privatização, com o objetivo de viabilizar condições para a realização do programa de privatizações prometido durante a campanha eleitoral. Em seguida, foi promulgada a Lei 8.031/90, que criou o "Programa Nacional de Desestatização", com fundamento em resultados econômicos através da reforma do Estado, ao lado da preocupação da integração do país nos mercados internacionais e a democratização do acesso à propriedade de empresas. O PND, aqui, tem como objetivos fundamentais a reordenação da posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público, a reestruturação econômica do setor público, especialmente através da melhoria do perfil e da redução da dívida pública líquida, e a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada.

Ainda, o programa tem o papel de contribuir para a reestruturação econômica do setor privado, especialmente para a modernização da infraestrutura e do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia, inclusive através da concessão de crédito. Tudo isso para que a Administração Pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para a consecução das prioridades nacionais.

Na era Collor, o governo demonstrou a intenção palpável do seu processo de privatização, e retirou a participação estatal de setores da economia independentemente de serem ou não lucrativos. Entre as empresas privatizadas, merecem destaque a Celma S/A; Mafersa S/; Cosinor; Indag S/A; Aços Finos Piratini S/A; Petroflex Indústria e Comércio S/A; Copesul; Companhia Nacional de; CST Companhia Siderúrgica de Tubarão; Nitriflex; Fosfértil; Polisul Petroquímica S/A e Companhia Industrial de Polipropileno. (PINTO, 2009).

Com o impecheameant de Collor reacendeu-se posições mais corporativistas e nacionalistas no processo de privatização, contudo, o governo Itamar Franco (1992 a 1994)deu continuidade ao processo iniciado na era Collor, pretendendo, entretanto, alterações importantes na forma de pagamento da alienação dos ativos (exigia que parte dos pagamentos fosse efetivado em moeda corrente), assim como atribuiu a competência do Congresso Nacional para decidir, caso a caso, a decisão de transferir para o setor privado uma empresa estatal. Finalmente, o resultado das privatizações no Governo Itamar Franco foi o aporte de 5,18 bilhões de dólares.

Na gestão FHC (1994 a 2002) houve a continuidade do processo de desestatização iniciado nos governos anteriores, acentuando-se, contudo, alguns aspectos, dentre eles, quebra de monopólio, a delegação de serviços públicos ao particular mediante autorização, permissão e concessão, e parcerias com entidades públicas e privadas por meio de convênios, consórcios e contratos de gestão, bem como a intensificação da terceirização. Neste espeque, no período FHC, a gestão de diversos serviços públicos que antes eram prestados diretamente pelo Estado ou através de sociedades de economia mista, passou a ser de titularidade do setor privado, mediante concessão, permissão ou autorização.

Com a quebra dos monopólios estatais (EC 08/95) houve um renascimento da concessão de serviços públicos, assim como o resgate de dois outros instrumentos de delegação (permissão e autorização), além da adoção de controles jurídicos regulatórios com o fim de assegurar a qualidade do serviço, a proteção do usuário e a defesa da concorrência. A partir da mesma EC, a economia nacional se deparou com o ressurgimento de autarquias qualificadas como especiais, isto é, as agências reguladoras, cuja existência é justificada, dentre outros motivos pela necessidade de dotar-se um órgão independente dos poderes para exercer o controle da execução dos contratos de concessão, bem como a fiscalização dos serviços e das concessionárias. Ademais, é competência das agências regulamentadoras a edição de normas e repreensão de condutas abusivas, incluindo-se ainda como responsabilidade dos órgãos a resolução de conflitos entre os agentes envolvidos na prestação de determinado serviço público. (WALD; MORAES; apudCUÉLLAR, 1999).

Neste contexto, a Lei n. 9.478/97, que, entre outros assuntos, dispõe sobre a política energética e as atividades relativas ao monopólio do petróleo, admitiu, por sua vez, que a participação da União na Petrobras se restrinja àquela necessária à manutenção do controle acionário, isto é, a “cinquenta por cento das ações, mais uma ação, do capital votante(Lei, 9.478/97, art. 62). Já no âmbito das telecomunicações, a sanção da Lei Geral de Telecomunicações, Lei 9.472/97, introduziu normas específicas para o processo de privatização no referido setor. Ainda, a antiga Medida Provisória 327/93, sucessivamente reeditada com inúmeras alterações, foi, finalmente, convertida na Lei de Privatizações, qual seja Lei 9.491/97, que, em linhas gerais atribuiu sentido ao vocábulo “desestatização”. O PND passa então, a ser um dos principais instrumentos de reforma do Estado durante o governo FHC.

É importante ressaltar que, a partir de 1997, a desestatização ganha uma nova dimensão com a feroz intensificação das privatizações em âmbito estadual, o início da privatização do setor de telecomunicações, e a venda da última ferrovia federal, a Malha Paulista. Não obstante o exposto é válido a ressalva conceitual que difere desestatização de privatização. A Lei 9.472/97 define bem o que vem a ser desestatização, todavia, quanto ao conceito de privatização, não há nenhuma referência legal. Passemos a analisar. Privatizar, em seu sentido amplo, quer dizer trazer para o setor privado, ao passo que na desestatização, o serviço e o patrimônio continuam públicos, e somente a execução dos serviços é privatizado. Os termos têm sido usados como sinônimos, ou, ainda pior, os processos é que têm se confundido nas práticas realizadas no país. A discriminação entre as matérias que cabem as esferas pública ou privada é feita na CF, especialmente pelos seus artigos 173 e 175. O primeiro destaca que a atividade econômica compete, como regra, ao setor privado, só sendo permitida sua exploração direta pelo Estado “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou o relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. (SILVA, 1994).   

Durante o governo Lula (2003 a 2010), o foco das privatizações mudou. O alvo foram as rodovias, a licitação para novas hidrelétricas e a venda de mais bancos estaduais. Pelo menos 2.600 km de estradas federais passaram para as mãos do capital privado. Assim, em que pese no governo Lula, o programa de desestatização tenha deixado de ser primeiro plano na agenda nacional, o PT jamais deixou de executar os planos de privatização do governo anterior. O que ocorreu, todavia, foi a mudança de estratégia, que passou a ser restrita para abranger apenas alguns setores do governo. Neste cenário, ainda em 2003, a Aneel manteve a outorga de concessões para exploração de empreendimentos de transmissão incluídos no PND. Foram leiloadas onze linhas de transmissão em oito Estados, gerando investimentos de R$ 1,8 bilhão, em valores da época. No ano seguinte, o governo Lula foi alvo de críticas de uma de suas bases mais tradicionais, os trabalhadores bancários, por leiloar o Banco do Estado do Maranhão (BEM). O comprador foi o Bradesco. Em 2005, foi a vez de o Banco do Estado do Ceará (BEC) ser alienado, também para o Bradesco.

Em 2006, o governo incluiu no PND as instalações de transmissão de energia elétrica da Rede Básica do Sistema Elétrico Interligado Nacional. A outorga de concessões para exploração de empreendimentos de transmissão continuou. Em 2007, o sistema de concessões foi absorvido pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que licitou 2,6 mil Km de rodovias federais. De modo distinto às administrações tucanas, a estratégia foi negociar tarifas de pedágio menores. No ano seguinte, foi realizado o leilão da Usina Hidrelétrica Jirau, no rio Madeira, em Rondônia.

Em seguida, o governo Dilma Rousseff (2011 até a presente data), tratou de continuar os planos iniciados por seu colega petista. E mais, sem as restrições quanto a setores, que em tese o governo Lula impôs.  O que ocorre então é a continuidade do PND criado no governo FHC, cumprindo a mesma agenda neoliberal para atender os interesses do capital diante da atual crise econômica.

Ao que parece, o rombo das contas públicas e as dificuldades financeiras das estatais passaram a pesar mais que a ideologia petista, contrária às privatizações. Neste contexto, o governo federal lança um Plano de Investimentos em Logística. Antes de prosseguir com maiores comentários, é importante ressaltar a diferença entre Concessão de serviços públicos à iniciativa privada e Privatização de serviços públicos. Em linhas gerais: na privatização o patrimônio é passado definitivamente para a iniciativa privada, na concessão, há autorização para exploração do serviço e repasse das instalações necessárias por período de tempo, que depois voltam a compor o patrimônio público, incluindo investimentos realizados no decorrer da concessão. No caso de serviços públicos, a diferença de nomenclatura, se privatização ou concessão, é meramente semântica, ou política, pois, na legislação brasileira, não há possibilidade de transferência definitiva de serviços públicos, de modo que o repasse, leve o nome de privatização ou concessão, será sempre temporário.

O que se quer dizer é que, se, de um lado as concessões vão melhorar a eficiência na infraestrutura, de outro vão elevar o custo de logística; como este custo incide sobre o preço final de praticamente todos os produtos e serviços, este novo modelo de concessão irá neutralizar a redução de custo decorrente do plano de investimentos. Pior, a destinação do dinheiro arrecadado com a outorga irá para o pagamento de juros e não para novos investimentos em infraestrutura de transportes, perpetuando gargalos de eficiência neste setor. Como exemplo, a privatização do aeroporto do Galeão, quando o governo arrecadou R$ 15 bilhões em 2014, um valor substancial, que poderia ter sido aplicado em aeroportos de menor interesse por parte de investidores privados, mas que, em sua quase totalidade, virou pó no altar dos juros altos.

Em conclusão, privatizar com dinheiro público é uma excrescência que só acontece no Brasil. Se o governo não tem recursos para investimentos e necessita de capital privado, que tome medidas para que este aporte aconteça de fato. Finalmente, encerramos a análise do estudo de caso proposto para afirmar a pior ironia da atual realidade: para a série de concessões/privatizações, afirma-se que não faltará dinheiro, todavia, não há verba suficiente para a saúde, educação, segurança, isto é, serviços precípuos do Estado que, para serem realizados com primor, justificam as medidas de desestatização.

 

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 9 de 09 de Novembro de 1995.Dá nova redação ao art. 177 da Constituição Federal, alterando e inserindo parágrafos. In: CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. 4ª edição, São Paulo: Atlas, 2003. p. 17 a 19.

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< http://www.n3w5.com.br/politica/2015/10/conselho-nacional-de-desestatizacao-propoe-privatizacao-de-brs >. Acesso em: 21 Mar 2016.

OTERO, Paulo. Coordenadas Jurídicas da Privatização da Administração Pública, in "Os Caminhos da Privatização da Administração Pública", Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

PEREIRA, Bresser. A Reforma do estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: Ministério da Administração e Reforma do Estado, 1997, Caderno 1, p. 10.

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