O PROCESSO HISTÓRICO ENVOLVENDO A CRISE DE IDENTIDADE DO MESTIÇO
Por Alexandre Valdemar da Rosa | 14/06/2011 | SociedadeALEXANDRE VALDEMAR DA ROSA*
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* Graduado em História - UNESC
Especialista em História ? UNESC
Especialista em Educação Inclusiva ? UCB-RJ.
Resumo
Neste artigo, procuramos demonstrar historicamente a problemática em torno da identidade do mestiço brasileiro, considerado por muitos um sujeito cuja identificação é ambígua. Tal crise identitária causou no transcorrer da história uma infinidade de inquietações sobre a mente dessas pessoas, prejudicando com isso sua autoestima, indagações estas que serão discutidas ao longo desta pesquisa.
Palavras chaves: História. Mestiço. Identidade. Escravo.
Abstract
In this article well?ll historically demonstrate the issue related to the mestizo brazillian identity. They are considered having ambiguous identification. This ambiguity has caused an infinity of inquietudes in those people?s mind. It has harm their self-steem which is the purpose of this research.
Keywords: History. Mestizo. Identity. Slave.
Introdução
Para melhor compreendermos o dualismo envolvendo a crise de identidade do mestiço brasileiro é de grande valia analisar num primeiro momento, os fatores históricos que contribuíram para este drama, sobretudo o segregacionismo existente no Brasil em tempos de Colônia e Império.
Segundo Chiavenato#, a imagem negativa referente ao negro iniciou-se em 1444 quando os portugueses transportaram os primeiros grupos de escravos da Guiné para Portugal. Logo, não demorou muito tempo para o governo e a igreja perceberem o quanto lucrativo seria esta nova forma de comércio. Assim, os papas Sisto e Calisto através de suas bulas papais abençoariam a escravidão ao afirmarem que na "África as únicas coisas a serem exploradas seriam o ouro e os escravos". Iniciava-se dessa forma o martírio do povo africano, sofrimento este que perduraria ao longo da história causando sequelas irreparáveis à população afrodescendente por várias gerações.
Esse suplício, no Brasil, iniciou em 1533 quando da chegada dos primeiros africanos nesta nação. Em suma, com a chegada de um elevado contingente de escravos, a educação na então colônia portuguesa recebeu uma atenção especial, voltada para a importação de ideias oriundas da cultura medieval europeia, aplicadas aqui pelos então representantes de Deus, os jesuítas. Para Romanelli# os jesuítas fizeram com que a então sociedade latifundiária e escravocrata copiasse hábitos e costumes da camada nobre portuguesa, tornando-se mais tarde uma sociedade elitizada, recebendo assim a nomenclatura de aristocrata.
O modelo de educação aplicada no Brasil pelos jesuítas entre os séculos XV até meados do século XVI, quando foram expulsos, visava educar exclusivamente uma minoria de privilegiados. Por outro lado, os africanos e seus descendentes somente foram lembrados em meados do século XIX. Em 1854 o decreto n.º 1331, de 17 de fevereiro:
[...] estabelecia que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos e a previsão de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores. O decreto n.º 7, 031-A de 6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período noturno.#
Em síntese, aos negros ou mestiços foram criadas inúmeras estratégias ao longo do período escravista com o intuito de impedir o acesso pleno destes aos bancos escolares, prejudicando assim a construção de suas identidades.
Discutindo a mestiçagem
A história do mestiço, termo utilizado mundialmente para justificar o resultado do cruzamento de indivíduos étnicos diferentes iniciou com o advento dos portugueses e dos primeiros navios negreiros que atracaram na principal colônia portuguesa na América, o Brasil.
Apesar de ser muito criticado por tentar colocar "panos frios" sobre o problema chamado escravidão, Freire# nos dá informações importantes acerca do surgimento do "ser" mestiço em nosso território. Para ele, a mulher morena era a preferida dos lusitanos para o amor, principalmente para o "amor físico", justificando o dito popular que vigorou durante os séculos XVIII e XIX no Brasil, "mulher branca para casar, mulata para F..., negra para trabalhar, ditado em que se sente ao lado do comercialismo social a superioridade da mulher branca e da inferioridade da preta, a preferência sexual pela mulata".
Talvez esse desejo incessante dos portugueses pelas mulheres mestiças explicasse a grande população com traços negroides existente no Estado de Minas Gerais. Durante o auge da exploração do ouro neste estado foram trazidas da África, mulheres de duas tribos distintas, minas e fulas. Essas africanas não somente tinham a pele mais clara como também possuíam uma cultura que despertou o interesse do "europeu conquistador".
A mulher mina era como as fulas eram, em suas respectivas tribos, excelentes donas de casa, entretanto, Araripe Júnior apud Freire# escreveu que "a mina apresentou-se sempre no Brasil com todas as qualidades para ser uma excelente companheira, tanto na cama como nos afazeres domésticos".
Ainda segundo Freire (2003) foi graças ao envolvimento entre brancos e as mulheres mina que se originou o estado mineiro, pois existia nesta região uma carência muito grande por mulheres devido o grande contingente de trabalhadores homens que eram direcionados para trabalharem nas minas até o século XIX. Em 1818 os mestiços livres no Brasil escravista correspondiam a 5% da população, no entanto, cinquenta e quatro anos depois, em 1872, estes por sua vez já somavam um contingente de 42,8% da população brasileira, isto é, a grande maioria. Os fatores preponderantes para o crescimento excessivo da população mestiça foram a liberdade adquirida pós-guerra do Paraguai, o fim do tráfico de escravos a partir de 1853, bem como o ideal de branqueamento que será discutido no decorrer deste artigo.
A guerra do Paraguai foi a manobra política mais cruel da história de nossa nação, porque conseguiu em tão pouco tempo exterminar um elevado número de negros. Os proprietários de escravos, por exemplo, conseguiram burlar a determinação do Império ao não enviar para o conflito os seus filhos homens. Dessa forma, cada senhor de cativos substituíram a provável participação de suas crias legítimas na guerra, enviando em seus lugares os filhos bastardos, frutos de relacionamentos com escravas. É importante também ressaltarmos que para conseguir outras almas o império usufruiu de duas táticas para recrutar indivíduos para a morte na Guerra do Paraguai. A primeira apresentada por jornais da época, como "O Cabrião", por exemplo, descrevia as ardilosas festas ocorridas em praças públicas pelo Império, celebrações estas, realizadas com segundas intenções, armava-se um coreto, distribuíam-se guloseimas e bebidas sob um pretexto qualquer e, quando a banda tocava animando o povo, a polícia cercava o local, aprisionando os incautos e remetendo-os aos batalhões de "voluntários" para a guerra#.
Esses acontecimentos, segundo Chiavenato (1993) eram rotineiros em todo o território nacional, principalmente nas grandes cidades, sendo omitidos episódios como estes da nossa historiografia oficial. Seria mais ou menos como a história do sujeito que para capturar um rato colocava um pedaço de queijo em uma ratoeira, o roedor atraído pelo odor do alimento acabava sendo capturado.
Lohn ao escrever um capítulo referente a este conflito no livro História de Santa Catarina de Proncher e Arend descreve a situação em que se encontravam os soldados brasileiros em campos paraguaios. Para ele as tropas enviadas para o país vizinho eram formadas basicamente pelas parcelas mais exploradas e discriminadas da população, notadamente "negros e mestiços", onde estes eram enviados para a região conflituosa em condições sub-humanas#.
Holanda# ao analisar a participação negra nesta guerra, avalia que muitos negros tiveram suas vidas ceifadas pelo simples fato de os "Oficiais do Exército Brasileiro" não terem experiência em guerras, não sabiam a extensão e a população do país inimigo, desconheciam as condições topográficas dos campos de batalha assim como as regiões pantanosas e as matas fechadas. Por outro lado, Taunay# cita a fome, a cavalaria insuficiente e a pouca munição como os motivos para a carnificina de negros e mestiços.
O decreto n.º 3275-A de 6 de novembro de 1866 motivou muitos negros e mestiços a irem para a guerra, porque nela estaria à chance de realização de um sonho, o de retornar alforriado. Ironicamente essa lei tornou-se um meio legal para o governo imperial lavar as mãos no tocante a matança que seria essa luta. Tal determinação autorizava "[...] que aos escravos da nação que estivessem em condições de servir ao Exército, se dê gratuitamente liberdade para se empregarem naquele serviço [...]" #.
A chacina conhecida como Guerra do Paraguai para historiadores como Chiavenato e Munanga, serviu como base para aplicar-se no Brasil a ideologia do branqueamento. Se antes o cidadão identificava-se como afrodescendente, ou seja, com o seu lado negro, aquele voltado para a africanidade, com o surgimento desta ideologia este mesmo indivíduo, agora mestiço, acabava sofrendo o que muitos educadores chamavam de "crise de identidade" ou crise identitária. Sobre esta questão Mercer apud Bittencourt# esclarece que a identidade só se torna um problema quando está em crise, "quando algo que se supõe ser fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e da incerteza". Isto é o que acontece com o sujeito mestiço, ora se identifica como negro, ora como branco, ou seja, ele nesse momento é ninguém. Fazzi# ao tratar desta questão indaga que:
[...] através de algumas brincadeiras realizadas entre alunos de 9 a 14 anos, a educação percebeu a presença da ideologia do branqueamento ao constatar que muitos alunos mestiços frequentemente negavam sua negritude, se auto definindo como pequenos indivíduos brancos.
Essa situação é definida por Silva# como uma "discrepância entre a cor atribuída e a cor auto percebida". O indivíduo afrodescendente relaciona sua cor a estigmas negativos e percebe que a melhor maneira de sair desta situação é negá-la, provocando com isso o que Figueira# chama de "ideal do ego branco". Esse ideal pode repercutir, "inclusive no desejo do embranquecimento, seja por artifícios (alisar o cabelo, por exemplo) ou pelo casamento ou união sexual com o branco" #.
No Brasil, os mestiços aderiram à ideologia do branqueamento ou do embranquecimento influenciados principalmente por teorias definidas por intelectuais europeus. Tais reflexões durante muito tempo exerceram um grande poder de influência em várias regiões do planeta.
Voltaire, Buffon, Diderot, Maupertuis, Long e Leseallier tornaram-se conhecidos em todo o mundo como os filósofos das luzes, fazendo com que em suas teorias sobre a mestiçagem, mesmo depois de tanto tempo ainda estejam sendo discutidas no meio acadêmico.
A união entre duas "raças" distintas era encarada por Voltaire como uma aberração, com isso, o mestiço na visão dele seria visto como o fruto de uma união bastarda e ao mesmo tempo acidental entre um negro e um branco, ou vice-versa.
Diferente de Voltaire, Buffon não via anormalidade no envolvimento entre pessoas de "pigmento diferente", porque para ele o planeta Terra de certo modo é povoado por mestiços. Ele acreditava que a mestiçagem era o meio "mais rápido para reconduzir a espécie humana a seus traços originais e de reintegrar à natureza do homem: bastariam, por exemplo, quatro gerações de cruzamentos sucessivos com o branco para que o mestiço perdesse os traços degenerados do negro" #.
Compartilhando da ideia de Buffon, Lacerda apud Munanga# acreditava "que dentro de seis ou sete séculos o processo de branqueamento extinguiria os negros, índios e mestiços da face da terra, desde que toda a miscigenação futura incluísse um parceiro extremamente claro, isto é, um branco".
O naturalista Diderot acreditava que a miscigenação era uma das mais estupendas criações de Deus. Diderot defendia a concepção "que o indivíduo fruto do hibridismo não seria mais um ser intermediário, pois ele está entre a matéria bruta e a vegetal e o animal, o animal e o homem, entre o homem e o homem" #.
Com base na concepção da teoria cultural contemporânea, o hibridismo é a comunicação entre as diferentes nacionalidades ou as diferentes etnias e raças. Em síntese, com o surgimento desta comunicação (o hibridismo), a ideia que se acreditava ser única sobre as identidades étnicas ou raciais acabaram perdendo o sentido.
Se compartilharmos dessa ideologia sobre o hibridismo, a identidade do mestiço não seria unicamente voltada para a africanidade ou para a cultura branca europeia, embora guarde traços dela, ela será constituída de uma identificação totalmente diferente. Ou seja, surgirá desta miscigenação um sujeito constituído de uma identificação nova, capaz de se auto identificar deixando de lado sua antiga ambiguidade.
O processo de hibridização analisado pela teoria cultural contemporânea surge das relações conflituosas entre diferentes grupos nacionais, raciais e étnicos, estando estes ligados à história de ocupação, colonização e de destruição (SILVA)#.
O conceito do pesquisador tem tudo a ver com a realidade histórica do mestiço no Brasil, se, relacionarmos é claro, com a presença europeia em nosso país.
No século XVIII (1745), Maupertus desenvolveu o princípio da epigeia, alegando que os híbridos tinham a possibilidade de existência teórica, isto é, toda a união envolvendo a participação de um macho e uma fêmea poderia ser vista como uma mestiçagem. Oito anos após ter desenvolvido esta teoria, Maupertus voltou a chamar atenção da Europa ao acreditar que do cruzamento de espécies diferentes resultaria como consequência o surgimento de um monstro.
Edward Long, antigo proprietário de escravos na ilha caribenha da Jamaica e Kant acreditavam em opiniões diferentes quando o assunto em questão era a mestiçagem. Long tinha uma visão de que negros e brancos pertenciam a origens diferentes, constituindo assim espécies distintas, tendo em comum o mesmo gênero.
Kant opinou em dois momentos sobre a problemática envolvendo a questão social, em 1775 e 1785. No primeiro momento ele afirmou que a união de pessoas de raças diferentes teria como consequência o surgimento de filhos indigestos, onde os traços raciais dos pais são misturados. Dez anos depois ele diria que a miscigenação em determinada proporção poderia remeter ao "novo tipo de humano original" #.
Esse posicionamento por parte desses filósofos em relação à mestiçagem trouxe consequências nada animadoras para o sujeito mestiço, problemas esses, sentidos até o presente momento.
No Brasil algumas destas teorias foram adotadas por políticos e estudiosos que indicariam o branqueamento como a solução social para o país se desenvolver. Com isso, ao findar da Guerra do Paraguai e com a proximidade da abolição, o governo brasileiro iniciava de forma gradual a política do branqueamento ao incentivar a importação de mão de obra europeia.
Não demorou muito tempo para que os imigrantes europeus representassem uma grande parcela do trabalho braçal no país, desenvolvendo novas técnicas para a aplicação dos serviços nos campos e nas cidades.
Segundo Chiavenato# para ser admitido nas modernas empresas que estavam sendo criadas no Brasil com o dinheiro desviado do tráfico, o negro precisava ficar mestiço. Dessa forma, mesmo tornando-se mestiço, os europeus influenciados por teorias dos filósofos das luzes alegavam que os negros não tinham condições psicológicas e muito menos responsabilidade para integrar-se aos modelos de produção mais modernos. Isso fez com que os mestiços se tornassem no século XIX uma espécie de suplentes de mão de obra imigrante.
As "luzes" que iluminavam a Europa durante os séculos XVII e XVIII, na América Latina no século seguinte, trouxeram muita escuridão para o sujeito mestiço.
A este respeito Munanga# contribui afirmando que "na segunda metade do século XVIII a política do branqueamento ganhou ares de ideologia colorista, voltada para os sujeitos não brancos". Como consequência, essa ideologia promoveu entre o negro e os mestiços ao longo da história uma espécie de hierarquização, ou seja, quanto mais clara for sua pele, mais valorizado será este sujeito perante a sociedade que ele vive.
Esta mentalidade colorista é materializada no processo de independência da antiga colônia francesa no Caribe, o Haiti. Durante muito tempo, este pequeno país carregou o título pertencente hoje ao Brasil, como a nação com o maior contingente negro fora da África.
Durante o século XVII, esta ilha tornou-se a única colônia a produzir ao mesmo tempo açúcar, café, anil e algodão em larga escala, riqueza tão grande que a França ao ser derrotada pela Inglaterra preferiu ceder em 1763 a colônia do Canadá a perder a do Haiti.
Segundo Grondin# "após os indígenas caribenhos serem exterminados, cerca de 240 mil negros foram trazidos da África nos 200 anos anterior à independência haitiana".
A população negra de origem africana desenvolveu naquele pequeno país um idioma, o "creóle", falado por 98% da população considerada pobre, entretanto, a burguesia que detinha o poder falava o francês. Ainda segundo Grondin# no Haiti a distinção de classe social foi precisamente expressa na fala de um ditador; "negro rico é mestiço e mestiço pobre é negro". O poder econômico e o controle do poder político foram sempre fundamentais no Haiti e por este motivo muitos haitianos acabaram morrendo. As constantes trocas no governo desta ilha proporcionaram a hierarquização entre sujeitos do mesmo sangue, os negros e os mestiços.
Um dos fatores que contribuíram para o surgimento do conflito foi a crise de identidade, pois os mestiços identificavam-se com o ideal colonizador, isto é, os franceses, enquanto os negros associavam-se aos marginalizados.
O Vodu e o Créole, ou seja, a religião e o idioma representavam respectivamente a identidade da população negra da ilha. Assim, o longo período de lutas entre negros do Norte e os mestiços do Sul pela questão do poder político, em conjunto com o extenso período de dominação francesa e a desastrosa administração da família Duvalier proporcionaram a população haitiana uma grande dificuldade na constituição de suas identidades.
Ao analisar o problema histórico envolvendo a questão da constituição de identidade do sujeito mestiço no Brasil percebe-se que esta situação não decorre de uma simples relação de cor de pele. A ambiguidade que perpassa o mestiço ao não conseguir definir-se nem como indivíduo afrodescendente e tão pouco como branco, isto é, ora se vê como um e às vezes como outro, é um transtorno que se arrasta por séculos.
Para poder auxiliar o sujeito mestiço na busca pela definição de sua identidade faz-se necessário utilizar as palavras usadas pela psicóloga Eneida de Almeida dos Reis. Reis (2002) conseguiu elaborar um livro considerado por Munanga como um dos raríssimos trabalhos que tratam especificamente da mestiçagem no Brasil.
Sobre o referido assunto a pesquisadora inicia sua obra procurando encontrar uma resposta que conseguisse exemplificar a crise existente no tocante à constituição de identidade do sujeito mestiço. Para elucidar este mistério a pesquisadora utiliza o seguinte exemplo:
Quando alguém olhando a cor da pele de um mestiço afro-descendente, o chama de mestiço, identificando-o como tal, com todas as implicações sociais daí decorrentes. [...] vamos imaginar que esse mestiço tome consciência do preconceito racial e do processo de estigmatização a que são submetidos os afro-descendentes e que, por isso, passe a se auto-identificar (sem que a cor de sua pele mude), como "negro", com uma apropriação subjetiva, representando outra dimensão da identidade#.
Seguindo a linha de raciocínio de Reis (2002), a citação nos mostra a presença de um diálogo entre aquilo que é objetivo e algo que é subjetivo, ou seja, essa situação faz do mestiço um ser com identidade indefinida.
Na sociedade atual é importante compreendermos que não basta o sujeito identificar-se como afrodescendente ou como branco, é preciso também que o meio onde este vive o reconheça como tal. Identidade como nos informa Ciampa# não se define por características de indivíduos, mas por relações entre indivíduos, sempre em movimento, daí se pode dizer que identidade é metamorfósica.
Refletindo sobre o tema citado por Ciampa, "relações entre indivíduos", e se ao mesmo tempo fazermos um paralelo com a educação transmitida por boa parte dos avós, em muitas famílias, percebemos que talvez direta ou indiretamente eles de certa forma contribuíram para o surgimento da problemática envolvendo a identidade do mestiço. Respeitados por sua experiência de vida e seu conhecimento, a maneira pela qual essas pessoas tratavam as crianças resultou em muitas desavenças no meio familiar. Ou seja, o adulto que na sua infância era tratado carinhosamente como "mulatinho", foi crescendo e passou a ser chamado na adolescência pelos pais de "moreninho", sendo pouco discutida na família sua negritude.
Um mestiço muito mais que o afrodescendente sente na pele o peso da discriminação ou do preconceito, por ser ele um sujeito cuja identidade pertença a dois mundos distintos, o do branco e do negro. Por esse motivo são frequentes os apelidos pejorativos do tipo; negro do Paraguai, meio-termo, raça indefinida, café com leite, quase branco, lua minguante, entre outros.
Clóvis Moura apud Reis# define como causas principais deste paradoxo envolvendo o problema da indefinição do sujeito "mestiço" a crescente adesão popular ao mito da democracia racial brasileira e a realização do ideal do branqueamento muito difundido após o Censo de 1980.
Tal Censo tinha como principal objetivo definir estatisticamente o número de habitantes não brancos existentes no Brasil, para a partir do resultado, formular estratégias de combate ao racismo.
Na verdade o que o Censo havia demonstrado naquele momento e que serviria de alerta para as décadas seguintes era à força do brasileiro no tocante a sua realidade étnica e de sua identidade, procurando com isso identificar-se o mais próximo possível do modelo considerado o ideal, isto é, o branco. O retrato fiel dessa história é a maneira pela qual os entrevistados considerados não brancos demonstraram quando questionados sobre sua cor. A enquete apresentou um universo de 136 cores. Logo, percebemos que cores como: moreno claro, bronzeado, bugresinho, jambo, escura, mulatinho, sarará, marrom, enfim este arco-íris tupiniquim representa de certa forma uma negação a consciência de sua negritude.
Vale destacar que o resultado dessa pesquisa durante anos acabou sendo utilizada em algumas escolas por professores mal instruídos onde estes por sua vez, para tentar justificar o problema do preconceito em nossa nação, alegavam que os maiores preconceituosos eram os próprios negros que não se assumiam como tal.
Sansone apud Fazzi# relata em sua pesquisa sobre "a relação entre cor e classe na Bahia contemporânea e o desenvolvimento de identidade étnica dos afro-brasileiros", o conflito existente entre pretos e pardos em relação a sua autodefinição. Para ele, esses dois indivíduos quando questionados sobre sua cor, preferiram definirem-se com outras terminologias, como moreno ou escuro.
Ainda segundo Sansone apud Fazzi#, na "linguagem popular, o termo preto deve, sempre que possível, ser evitado por estar associado a características negativas".
Conforme o Censo de 2000 realizado no Brasil, a porcentagem de indivíduos de origem africana decorre em torno de 49,4% da população brasileira, contudo para Ferreira# este número poderia ser um pouco maior se o brasileiro não estivesse tão "submetido à ideologia do branqueamento".
Analisando a crítica de Ferreira (2000) no que concerne o resultado da pesquisa, conclui-se que os mestiços ao responderem os requisitos do recenseamento e ao negarem suas características fenótipas possibilitaram com isso uma maior invisibilidade do sujeito afro-descente no cenário nacional, prejudicando dessa forma o perfil etno-racial do brasileiro. Consequentemente, essa indefinição e ao mesmo tempo esta negação do mestiço em torno de sua identidade, resultará num emaranhado de problemas tanto na infância como também na sua adolescência.
Munanga e Gomes# elucidam este mistério esclarecendo que "os mestiços pretendem adotar a identidade dos negros por uma questão de solidariedade política, tendo em vista a exclusão social sofrida por ambos no transcorrer da história".
Uma história marcada pela incessante luta por uma sociedade justa e ao mesmo tempo igualitária, sociedade essa incapaz de reconhecer a importância dos mesmos para a construção desse país. Afinal, a grande aspiração do afrodescendente é acabar com o racismo, pois, "ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar" #.
Considerações finais
A presente pesquisa demonstrou que ao longo da história a presença de práticas discriminatórias e atitudes preconceituosas contribuíram de maneira operante no tocante à indefinição da identidade do sujeito mestiço. Colaboraram para esta problemática, como já foi citado anteriormente no trabalho, um elevado número de teorias que criadas na Europa, rapidamente foram "transplantadas" e implantadas no Brasil com o objetivo de fundamentar a homogeneização cultural e ao mesmo tempo omitir as diferenças e desigualdades sociais existentes em nosso país. Essa mesma teoria, segundo Circe Bittencourt# além de ter servido para dissimular as desigualdades sociais e econômicas, também foi utilizada para justificar a situação de miséria de grande parte da população, bem como criar um imaginário negativo tanto para os índios como para os negros.
Conclui-se que historicamente o caminho percorrido pelo afrodescendente para definição de sua identidade foi árduo, longo e tortuoso. Por outro lado, esse indivíduo, agora com sua identidade auto afirmada, certamente usufruirá de uma sensação única, a emoção de que finalmente o corpo realmente tem uma moradia. Logo, fará parte de seu cotidiano uma melhor disposição para a realização dos afazeres diários, além da mudança de humor.
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