O PROCESSO DE DESCRIMINALIZAÇÃO DO CRIME DE DESACATO
Por Anna Caroline Barros Costa | 06/06/2017 | Direito“O PROCESSO DE DESCRIMINALIZAÇÃO DO CRIME DE DESACATO: UMA ANÁLISE DO ARTIGO 331 DO CÓDIGO PENAL NO ÂMBITO DA ATUAÇÃO POLICIAL EM FACE DO DISPOSTO NA CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS”.
Anna Caroline Barros Costa
Magsom Quinco Lima Meneses
1 Introdução; 2 Uma visão geral acerca do crime de desacato; 3 A origem do modelo de policia brasileira e a consolidação do crime de desacato; 3.1 A dicotomia entre o modelo de policia cidadã e o modelo de policia repressiva frente à tipificação do crime de desacato; 4 A difusão da descriminalização do crime de desacato em face do disposto na Convenção Americana de Direitos Humanos; 5 Conclusão; Referencias.
RESUMO
A veiculação nos meios midiáticos de casos envolvendo a ocorrência do crime de desacato tem estimulado a discursão acerca da legitimidade destes. Por obvio a tipificação deste, tem o escopo de assegurar a manutenção da ordem pública, punindo aquele que “faltar com o devido respeito” o funcionário público no exercício de suas funções, para que assim, este possa exercer livremente a sua função, sem que a administração dos órgãos do poder público, tenha a sua harmonia quebrada. Todavia a eficácia do crime desacato é posta em prova a partir do momento em que questiona-se os limites que este impõe à liberdade de expressão dos indivíduos, uma vez que aos cidadãos brasileiros também cabe a fiscalização das atividades estatais, pois é para esse dito cidadão que o Estado trabalha, sendo a descriminalização do crime de desacato, matéria amplamente tratada inclusive em decisões e publicações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que já deixou claro que a leis que punem qualquer manifestação ofensiva em face dos funcionários públicos, acaba por violar a liberdade de expressão e o direito à informação, ferindo diretamente o disposto no pacto de São José da Costa Rica, há também que falar ao longo do estudo sobre o papel desempenhado pela policia no brasil, sendo esta um dos maiores alvos do crime de desacato, para que possa analisar se o comportamento desta frente a tal crime, acaba por restringir os direitos dos cidadãos.
PALAVRAS – CHAVES: Desacato; Modelo de Policia; Liberdade de Expressão.
1 INTRODUÇÃO
O estudo da descriminalização se faz necessário, pois a fragilidade do crime de desacato tipificado no artigo 331 do Código Penal precisa ser evidenciada. É evidente que o legislador se absteve de verificar a compatibilidade de tal instituto com a matéria disposta na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, todavia, sendo esta um tratado internacional, logo possui caráter supralegal, dessa forma haveria um evidente conflito entre uma norma interna e uma norma proveniente de tratado internacional, faz-se mister também salientar que as decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Fundamentais tem o mesmo peso das decisões proferidas pelo STF a nível nacional, desta forma, elas devem ser utilizadas como precedentes. Tem-se que a Corte Interamericana já se posicionou diversas vezes em favor da liberdade de expressão e pensamento, em anuência com o artigo 13 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o crime de desacato acaba por ganhar certo descrédito.
É perceptível que o assunto merece ser analisado visto que não se trata apenas de analisar esse dualismo entre as duas normas supracitadas, e sim evidenciar todo um sistema, que proporcionou a inclusão de tal crime no Código Penal, já que é de observância geral, que, apesar de o crime de desacato ter surgido para proteger as autoridades públicas de qualquer ação de particulares que pudessem atentar contra a moral destes no âmbito de suas funções, ele acabou se tornando mais uma forma de oprimir uma sociedade que há décadas vem sendo governada por um Estado dividido em hierarquias de poder, dessa forma é quase impossível vislumbrar a admissão de qualquer ato de resistência por parte da sociedade. A finalidade precípua do presente paper é abordar tal discursão dentro da área mais influenciada pelo tipo penal que prevê o crime de desacato, que é a ação policial, sendo impossível digerir uma situação na qual se justifica a morte por policiais de uma ou mais pessoas, pelo simples desacato cometido por estas.
A apreciação de tal tema é de suma importância não apenas para se discutir o problema apresentado, mas também para se traçar um estudo acerca do crime de desacato, expondo seus elementos subjetivos e objetivos, bem como as divergências que o permeiam, posto que os índices de cometimento cada vez mais crescem, numa sociedade que vive a mercê de uma policia opressora que confunde por vezes liberdade de expressão e pensamento com o crime de desacato, que se fosse bem utilizado seria benéfico a todos, já que imporia respeito, porém o que se nota é que o mesmo é utilizado como uma arma contra a sociedade, e que é constantemente bombardeada, desta feita busca-se evidenciar a irrelevância do artigo 331 do Código Penal, frente ao que foi disposto na Convenção em questão, dando ênfase ao conflito de normas existentes bem como a crescente caminhada para a descriminalização do crime de desacato, importante salientar que tal crime não ocorre somente frente as autoridades policiais, mas sim de autoridades em geral, tomaremos a policia em si como parâmetro, porque são com estes que as estatísticas de cometimento são alarmantes.
2 UMA VISÃO GERAL ACERCA DO CRIME DE DESACATO
O crime de desacato tipificado no Código Penal nunca esteve tão atual quanto agora, as estatísticas de cometimento crescem continuamente, apesar de não está exclusivamente ligado à figura do policia, e sim de qualquer funcionário publico, é com os policiais que o crime é mais cometido. Atualmente qualquer coisa é motivo de desacato para com os funcionários públicos, o que acaba indo de encontro com o direito fundamental constitucionalmente garantido que é de liberdade de expressão. Porém o que separa um desacato de liberdade de expressão é uma linha muito tênue, por isso o motivo da confusão, o mesmo consta no Código Penal, especificamente no artigo 331 com a seguinte redação “Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela” possuindo pena prevista de detenção de seis meses a dois anos ou multa.
Comumente as autoridades confundem reclamação, uma oposição ou até mesmo uma manifestação de opinião com o crime de desacato, por isso a alta incidência da prática delitiva, quando se fala em desacato imediatamente se associa á figura de autoridade, como se fosse possível a sua prática somente em relação a estes, tal associação é errônea, haja vista o mesmo pode ser praticado contra qualquer funcionário público o caput do crime, anteriormente citado, explicita bem isso.
Desacatar é a ação nuclear e pode ser encarado como a conduta praticada no sentido de humilhar, menosprezar, desrespeitar, ofender o funcionário público no exercício de sua função ou razão desta, tudo o que desprestigie o funcionário. O crime tem por finalidade tutelar o normal funcionamento do Estado, protegendo o prestígio e o respeito que deve abarcar as funções públicas. Os exemplos mais comuns são: o de provocar um escândalo com claras expectativas de menosprezar o funcionário público perante as outras pessoas; utilização de expressões grosseiras, utilização de palavras de baixo calão, agressão física e outras praticas que exponham o funcionário público ao ridículo.
Para a caracterização do crime é necessário, porém que a ofensa seja proferida perante o funcionário público, caso contrário, será destipificado o mesmo, podendo ser enquadrado em outro crime ou cair em conduta atípica, apesar de tal condição não é necessário, porém que o funcionário e o a agente estejam um na frente do outro, caso em que se pratica algumas das condutas descritas acima num ambiente em que se encontram os dois, como por exemplo, numa sala separada, mas que seja possível de escutar a ofensa.
A conduta de desacatar, bem como o próprio crime se confunde com outros, como é o caso de resistência, porém é possível se vislumbrar algumas diferenças caso se analisem os mesmos, sobre essa perspectiva temos as considerações de Capez ( 2005, p.498):
Importante notar que o crime de desacato em muito se parece com o crime de resistência, na medida em que este também admite o emprego de violência ou ameaça contra funcionário. O que difere é a intenção, presente no delito de desacato, de humilhar, menoscabar a autoridade pública, ao passo que na resistência há mera vontade de se opor à execução de ato legal.
O crime de desacato pode ser cometido contra o funcionário público: estando no exercício da sua função ou ele não estando exercendo a sua função, mas o desacato ocorrendo em razão da função dela, como bem explicita o tipo penal. Têm-se como sujeito ativo; crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa, importantes considerações podem ser tecidas a respeito do cometimento deste crime pelos advogados, se levar em consideração o Estatuto da OAB o mesmo não cometeria este crime porque gozaria de imunidade penal no tocante aos crimes de desacato, injúria e difamação, ocorre que tal assunto tem suscitado polêmicas, segundo entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal tem-se que os advogados só gozariam de imunidade quanto as crimes contra honra, não contra a administração como é o caso do desacato, posto isso, o advogado pode cometer desacato, assim como o funcionário público, apesar das divergências existentes, ele comete sim o crime de desacato quando despido desta função( CAPEZ,2005). Adota-se como sujeito passivo o Estado, já que tutela-se a administração pública, e secundariamente o funcionário público que foi desacatado.
Em se tratando de elemento subjetivo temos que o crime só pode ser cometido na forma dolosa, portanto vontade livre e consciente de praticar atos ou falar palavras que possam ofender humilhar o funcionário público o desprestigiando, importante salientar que deve haver ciência da qualidade de funcionário público do cidadão, caso contrario poderá haver outro crime. As divergências giram em torno do fim especial de agir, conforme entendimento majoritário existe fim especial de agir, seria o fim de ofender, desprestigiar a função exercida pelo funcionário público. Quanto à consumação temos que é um crime formal, consuma-se no momento em que o sujeito pratica as condutas, independentemente do funcionário público se sentir ofendido ou humilhado, não se exigindo que terceiros presenciem o desacato, em se tratando de tentativa temos doutrinas divergentes, alguns doutrinadores afirmam ser crime unissubsistente e, portanto não admitiria tentativa, outros afirmam que admitem sim, observado a forma que for cometido, como no caso de um chute, ou seja, depende do meio empregado para que se configure a tentativa. (CAPEZ, 2005)
Posto as devidas considerações acerca da parte geral do crime de desacato, temos importantes considerações a respeito da vinculação dos mesmos nas mídias atuais. A veiculação do crime de desacato nos meios midiáticos são quase que um sucesso garantido, trata-se de um noticia que por si só se vendem, ou seja, a sociedade de forma geral gosta de ver esse tipo de noticia veiculado. Casos são constantemente noticiados, alguns nem se tratam de desacato em si, mas de uma confusão feita pelas autoridades públicas com o direito de liberdade de expressão que gozam os cidadãos. Casos como o do juiz maranhense que foi impedido de embarcar no avião por ter se atrasado e ainda sim dar voz de prisão para os funcionários da companhia aérea alegando um possível desacato, bem como o caso do juiz que proferiu voz de prisão ao uma agente de trânsito alegando desacato porque a mesma o falou que ele “não era Deus” são exemplos práticos desse crime, ou pelo menos deveriam ser.
Se analisarmos a fundo essas práticas veríamos que os papeis se invertem. Tomando como parâmetro o último caso citado anteriormente temos na verdade uma inversão da conduta, naquele momento a autoridade ali era o agente de trânsito e não o juiz, no entanto a penalização foi direcionada à agente, demonstrando mais uma aplicação errônea do crime em questão, infelizmente casos como este são comuns. Poderíamos citar inúmeros, mas se absteremos somente a este.
As estatísticas de cometimento cresceram tanto que chamou atenção para a fragilidade do crime de desacato tipificado no artigo 331 do Código Penal, o que separa o desacato de liberdade de expressão é uma linha muito tênue, o que acaba por gerar a confusão quanto ao seu cometimento, evidenciando ainda mais o caráter da descriminalização do mesmo, noticias como esta já vem sendo veiculadas também, e tem sido aceita pela sociedade que sofre continuamente com a prática do crime, ou pelo menos boa parte, já que se reservam diante de uma autoridade, ao direito de ficar caladas, posto que qualquer manifestação de opinião pode ser encarada como um desacato e gerar consequências mais sérias como detenção de seis meses a dois anos ou multa.
3 A ORIGEM DO MODELO DE POLICIA BRASILEIRA E A CONSOLIDAÇÃO DO CRIME DE DESACATO.
A atuação policial no Brasil vem desde o século XIX, antigamente era tratada como uma forma de hierarquia, de demarcação de fronteiras entre cidadãos honestos e criminosos, escravos e homens livres, atualmente não houve tantas mudanças ainda sim é vista como uma forma de hierarquia social e os policiais acabam por vezes impondo medo na sociedade, haja vista o despreparo de alguns que ao invés de protegerem a sociedade (o que deveria ser a função precípua da policia) impõem medo.(BOHN, 20[?])
A postura que detinha a policia no Brasil fica evidenciada durante o regime militar, onde havia a atuação da mesma com violência, truculência, arbitrariedade e autoritarismo, tudo em nome da ordem e segurança nacional. Assim a fica evidenciado que foi a ideologia de guerra que esteve presente na formação dos nossos policiais, o que justifica algumas coisas praticadas atualmente. Então se ver claramente uma formação de cunho eminentemente militarizada, que foi se disseminando de geração em geração não significando que não temos resquícios da mesma atualmente, hoje busca-se uma transição para uma policia mais cidadã, o desafio é romper o modelo tradicional,o que não é um processo fácil que será tratado posteriormente.(BOHN, 20[?]) Têm-se que a segurança pública é uma questão que todos devem estar envolvidos, observado o que foi disposto na Constituição de 1988.
Com promulgação da Constituição Federal de 1988 o legislador no artigo 144, determinou que a segurança pública seria responsabilidade e direito de todos, portanto a participação dos cidadãos estava conclamada. Porém as portas dos quartéis permaneceram fechadas para diálogo com a população. E devido à difícil relação entre polícia e sociedade iniciou-se a implementação do policiamento comunitário como uma tentativa de transformar esta polícia de controle, repressiva em uma polícia mais cidadã, que estivesse compatível com as demandas de cidadania e a garantia e proteção dos direitos humanos.(BOHN, 20[?], p.4)
A origem eminentemente militarizada está diretamente ligada com o surgimento do crime de desacato, tal origem acabou por criar um abismo na relação da polícia com a população, acirrando ainda mais as desigualdades. A polícia de origem militarizada fazia clara distinção baseada na hierarquia social, separava-se por valores, além do mais era uma policia claramente autoritária, e tudo, que viesse de encontro aos seus ideais poderia ser considerado como um desacato, e faz uso da força para resolução de conflitos, porém tais características ficará evidenciado na seção subsequente que abordará melhor a distinção, nos restringindo neste momento ao surgimento, origem da policia que foi descrito anteriormente.
3.1 A dicotomia entre o modelo de policia cidadã e o modelo de policia repressiva frente à tipificação do crime de desacato.
A relação entre a policia e os cidadãos brasileiros é permeada por uma ordem hierárquica social, tal fato teve sua origem e consolidação no período referente à ditadura militar, porém com o processo de redemocratização bem como com a promulgação da Constituição Federal de 1988 o previsível era que ocorresse uma mudança no cenário da Força de Segurança brasileira, de modo que esta viesse a acompanhar as novas ideologias, o que não ocorreu de fato. Desde a época do regime militar a atuação da policia tem se confundido com a atuação das forças armadas, enquanto estas são treinadas para atacar o inimigo, aqueles deveriam reprimir a atuação criminosa, sem se utilizar de autoritarismo, arbitrariedade ou violência, mas atualmente o modelo tradicional de policia tem se aproximado cada vez mais do modelo imposto na ditatura, utilizando-se da manutenção da ordem e segurança para justificar praticas descabidas.
É certo que foi-se debatido muito acerca da criação de um novo modelo de policia cidadã que pudesse acompanhar as evoluções sociais, todavia essa discursão para na teoria, posto que na prática o que vigora é a atuação de uma policia dotada de um teor repressivo e militar. Essa policia cidadão teria por objetivo promover a proteção ao cidadão contra qualquer ação violenta e autoritária, visando uma verdadeira integração entre a força policial e os indivíduos detentores de direitos e deveres. Não se busca aqui combater o crime, mas objetiva-se principalmente e antes de tudo, resolver os problemas de ordem interna, atentando mais para a prevenção do que para a repressão.
Porém, como já foi dito, o treinamento militar da policia brasileira é uma realidade, nesse tipo de treinamento os policiais são ensinados a aceitar sem qualquer oposição às ordens dos seus “superiores”, os seus próprios direitos fundamentais são destituídos, há uma desconstrução da figura do cidadão, que é ensinado a combater um inimigo interno, o criminoso. E se no seu treinamento o policial é “adestrado” e tratado como um ser sem direitos, vontades ou garantias, ele acaba se portando da mesma forma perante o criminoso. De acordo com Túlio Viana (2013, p.[?]), as consequências desse treinamento militar são drásticas:
O treinamento militarizado da polícia brasileira se reflete em seu número de homicídios. A Polícia Militar de São Paulo mata quase nove vezes mais do que todas as polícias dos EUA, que são formadas exclusivamente por civis. Segundo levantamento do jornal Folha de S. Paulo divulgado em julho deste ano, “de 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com PMs paulistas. Nos EUA, no mesmo período, conforme dados do FBI, foram 1.963 ‘homicídios justificados’, o equivalente às resistências seguidas de morte registradas no estado de São Paulo”.Neste estado, são 5,51 mortos pela polícia a cada 100 mil habitantes, enquanto o índice dos EUA é de 0,63 . Uma diferença bastante significativa, mas que, obviamente, não pode ser explicada exclusivamente pela militarização da nossa polícia. Não obstante outros fatores que precisam ser levados em conta, é certo, porém, que o treinamento e a filosofia militar da PM brasileira são responsáveis por boa parte desses homicídios.
Esse modelo militarizado da policia brasileira reflete no chamado crime de desacato, destarte os valores de hierarquia constantemente reforçados nos policias acabam por criar essa barreira entre a atuação destes e os cidadãos, sendo assim, seria anormal pedir para um policial não prender um cidadão por desacato á autoridade pelo fato de este ter contestado os seus direitos sendo que no próprio treinamento de tal representante da Força de Segurança, ele foi ensinado a obedecer aos seus superiores sem nunca contestar. (VIANA, 2013, p. [?]).
4 A DIFUSÃO DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO CRIME DE DESACATO EM FACE DO DISPOSTO NA CONVENÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Existe atualmente uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos que é responsável por regular direitos a nível internacional, o crime de desacato (artigo 313 do Código Penal) é incompatível com o artigo 13 desta Convenção Interamericana, que trata da liberdade de pensamento e de manifestação, tem – se aqui um conflito de normas. Em decisões consideradas polêmicas, tal convenção já decidiu que se retirasse do ordenamento de outros países crimes semelhantes ao desacato, sob a mesma fundamentação de ferir direitos, recentemente no Brasil, houve um encaminhamento de um caso especifico de desacato para a Comissão Interamericana, pedindo que o crime seja extirpado do ordenamento jurídico, o certo é o que crime é caminha cada vez mais para a descriminalização.
É evidente que o legislador se absteve de verificar a compatibilidade do crime de desacato com a matéria disposta na Convenção Americana de Direitos Humanos, todavia, sendo esta um tratado internacional que trata sobre direitos humanos, logo possui caráter supralegal, estando acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição Federal, mas caso tal Convenção tivesse passado pelo procedimento disposto no art. 5º, § 3º da Constituição Federal, ela poderia inclusive ter natureza de emenda constitucional, dada a sua importância e relevância para o ordenamento jurídico, não só brasileiro, mas de todos os países nos quais ela vigora. (FERNANDES, 2014, p. 1.129) Dessa forma haveria um evidente conflito entre uma norma interna e uma norma proveniente de tratado internacional.
Faz-se mister também salientar que as decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Fundamentais tem o mesmo peso das decisões proferidas pelo STF a nível nacional, desta forma, elas devem ser utilizadas como precedentes. Sendo assim, uma vez que a corte já se manifestou a favor da liberdade de pensamento e expressão, corroborando com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o crime de desacato acaba sendo enfraquecido.
Não se trata apenas de analisar esse dualismo entre as duas normas supracitadas, e sim evidenciar todo um sistema, que proporcionou a inclusão de tal crime no Código Penal, visto que é de observância geral, que, apesar de o crime de desacato ter surgido para proteger as autoridades públicas de qualquer ação de particulares que pudessem atentar contra a moral destes no âmbito de suas funções, ele acabou se tornando mais uma forma de oprimir uma sociedade que há décadas vem sendo governada por um Estado dividido em hierarquias de poder, dessa forma é quase impossível vislumbrar a admissão de qualquer ato de resistência por parte da sociedade.
A polemica é tamanha que levou a Comissão à publicar o “Informe sobre la compatibilidad entre las leyes de desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos”, (1944, p. [?]). No texto, afirma-se que é certo que a aplicação das leis de desacato variam de um Estado para outro, em alguns configura-se o crime apenas com a ofensa direta, em outros há o desacato mesmo que a ofensa à autoridade seja por meio indireto, por exemplo, publicar um insulto em um jornal. Todavia a Comissão alega categoricamente que o direito à liberdade de expressão e pensamento exerce uma função crucial no debate publico, e a ele é atribuído um valor extremamente elevado, sendo inaceitável qualquer tipo de restrição, ao justificar a ilegitimidade do crime de desacato frente à uma sociedade de viés democrático, fazendo menção à inversão de valores que permeia a criação do dispositivo legal que dispõe sobre o crime de desacato a Comissão afirma:
La aplicación de leyes de desacato para proteger el honor de los funcionarios públicos que actúan en carácter oficial les otorga injustificadamente un derecho a la protección del que no disponen los demás integrantes de la sociedad. Esta distinción invierte directamente el principio fundamental de un sistema democrático que hace al gobierno objeto de controles, entre ellos, el escrutinio de la ciudadanía, para prevenir o controlar el abuso de su poder coactivo. Si se considera que los funcionarios públicos que actúan en carácter oficial son, a todos los efectos, el gobierno, es entonces precisamente el derecho de los individuos y de la ciudadanía criticar y escrutar las acciones y actitudes de esos funcionarios en lo que atañe a la función pública. (Informe sobre la compatibilidad entre las leyes de desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos”, 1944, p. [?])
Sendo assim, deve haver uma certa igualdade, pois não há a necessidade de se utilizar a lei de desacato para assegurar a ordem pública, e existem outros meios que podem ser utilizados para combater qualquer tipo de ataque ofensivo, que não seja decorrente do cargo que o individuo possui, de modo que os ofensores podem responder por crimes como o de calunia, injúria e difamação, dessa forma estar-se-ia resguardando a honra objetiva sem contanto restringir qualquer à administração pública.
Uma vez considerado o crime de desacato, estaria - se retirando o caráter de subsidiariedade ao Direito Penal, pois este só deveria ser utilizado em ultima ratio ou seja, quando não houvesse outro meio de sanar o problema, sendo assim seria completamente desproporcional atribuir a pena de prisão à um crime de opinião. Ao invés de se estabelecer uma autocensura, deveria ser adotado o simples direito de resposta da parte ofendida, não havendo portanto qualquer teor punitivo na conduta, tendo em vista ser um delito de menor potencial ofensivo, obedecendo o principio da intervenção mínima. Todavia, em decorrência de interesses políticos, os países da Organização dos Estados Americanos, incluindo o Brasil, se mostram relutantes em aceitar a descriminalização do crime de desacato. (NHUCH, 20-?, p[?]).
Gradualmente tem-se visto que não existe mais um grande abismo entre o Estado e o individuo detentor de direitos e deveres, aos poucos está havendo uma equiparação, de modo que não há porque manter um tipo penal que explicita tal disparidade como ocorre com a tipificação do crime de desacato. Sendo assim, ocorrendo tal revogação, o individuo se colocaria no centro do ordenamento jurídico, uma vez que é em prol dele que o Estado trabalha, fortalecendo, portanto o viés democrático que rege a maior parte dos países que compõe a América Latina. (OLIVEIRA, 2010, p. [?]).
5 CONCLUSÃO
Com a exposição da problemática central do presente paper pode-se concluir que a tipificação do crime de desacato restringe de sobremaneira o disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, afinal, qualquer restrição à liberdade de expressão e pensamento é uma afronta direta à tudo aquilo pelo qual os cidadão brasileiros lutaram durante o período da ditadura, em outras palavras, é uma violação irreparável à democracia. A fragilidade do crime de desacato tipificado no artigo 331 do Código Penal precisa ser evidenciada, uma vez que não houve qualquer preocupação em verificar a incompatibilidade deste dispositivo com o disposto na Convenção, e na qualidade de tratado internacional, esta precisa ser seguida, para assim manter a ordem e a harmonia entre os ordenamentos jurídicos dos países que fazem parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Os constantes casos envolvendo esse crime têm sido constantemente propagados nos mais diversos meios de comunicação, existindo ocorrências nas quais inclusive dois indivíduos, funcionários públicos, trocam acusações de desacato, pois um se acha melhor do que outro, existindo uma troca de ofensas mútua, há, portanto uma confusão generalizada, sem que se saiba quem é a vitima e quem é o ofensor. Sendo assim, não há qualquer viés de resguardar a ordem pública e sim de manter os interesses das autoridades públicas, que por serem despreparadas, não querem admitir qualquer tipo de intervenção ou fiscalização por parte dos cidadãos.
Ademais, os casos nos quais mais de observa a ocorrência do crime de desacato são aqueles envolvendo a policia, quando na verdade o que se observa a partir de uma análise mais profunda é que a policia brasileira, que tem uma base extremamente repressiva e militarizada, quer tratar os cidadãos, da mesma maneira que eles, os policiais, são tratados durante o seu treinamento, destarte o problema é inerente à natureza das forças de segurança.
No que diz respeito a essa policia, isso só vai mudar quando esse modelo proveniente da ditadura for substituído por um modelo de policia cidadão, pautado em promover o máximo bem estar aos indivíduos, tratando-os com dignidade e respeito, exercendo um trabalho com um cooperativista juntamente com os cidadãos. Não há portanto, motivos para se manter a tipificação de um crime que tira o brasileiro do centro da proteção do Estado, reprimindo a sua manifestação de vontade, frente a uma nação que tem muito o que melhorar. Inexiste qualquer fundamento para legitimar a ação truculenta de policiais, que cala o cidadão detentor de direitos sob a égide de que qualquer “desrespeito” já seria motivo para criminalizar este.
REFERENCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte especial: dos crimes contra os costumes a dos crimes contra a administração pública ( arts. 213 a 359-H), volume 3. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
BOHN, Maurício Futryk. Policiamento comunitário: a transição da polícia tradicional para polícia cidadã. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/cienciascriminais /IV/54.pdf. Acesso em 08 de março de 2015.
Defensoria Pública de SP aciona Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra condenação criminal por desacato. Disponível em: http://dp-sp.jusbrasil.com.br/noticias/100035111/defensoria-publica-de-sp-aciona-comissao-interamericana-de-direitos-humanos-contra-condenacao-criminal-por-desacato. Acesso em: 08 de Março de 2015.
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. Salvador: JusPodivm, 2014.
Informe sobre la compatibilidad entre las leyes de desacato y la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/94span/cap.V.htm. Acesso em 12 de maio de 2015.
NHUCH, Flávia Kamenetz. Liberdade de expressão e crimes contra a honra nos países da OEA. Disponível em: http://www.puc-rio.br/pibic/relatorio_resumo2013/relatorios_pdf /ccs/DIR/DIR-Flavia%20Kamenetz%20Nhuch.pdf. Acesso em: 08 de março de 2015.
OLIVEIRA, Andrea Vaz; OLIVEIRA, Steevan Tadeu Soares de. Abolitio criminis do desacato: um olhar sobre a relação entre autoridade publica e o particular na américa latina. Disponível em: http://www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista /article/view/316. Acesso em: 08 de Março de 2015.
VIANNA, Túlio. Desmilitarizar e unificar a polícia. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/01/desmilitarizar-e-unificar-a-policia/. Acesso em: 08 de março de 2015.