O PROCESSO DE CONHECIMENTO NO NOVO PROJETO DE CPC: A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA

Por José Orlando Soares Leite Neto | 23/01/2016 | Direito

O PROCESSO DE CONHECIMENTO NO NOVO PROJETO DE CPC: A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA [1]

 

José Orlando Soares Leite Neto

Samuel Jorge Arruda de Melo[2]

 

SUMÁRIO: Introdução; 1 A coisa julgada no Código de Processo Civil vigente; 2 Análise do instituto da coisa julgada sob a égide do novo Código de Processo Civil; 3 Relativização da coisa julgada e o acesso efetivo à jurisdição estatal; Conclusão.

 

RESUMO

O atual Código de Processo Civil contempla o instituto da coisa julgada. Sob esse enfoque, preceitua o Direito Civil que há três elementos do processo que não retroagem: o direito adquirido; o ato jurídico perfeito; e a coisa julgada. A coisa julgada, no entanto, pode ser relativizada. Mas em que consiste essa relativização? É o que se pretende expor no presente artigo. Uma vez relativizada, a coisa julgada pode, por assim dizer, retroagir. Essa retroação permite que uma sentença possa ter seus efeitos remodelados e, desta maneira, as partes no processo tenham garantido seu amplo acesso à justiça e ao instituto do contraditório e ampla defesa. O presente artigo visa estabelecer e analisar a linha tênue que há entre garantir acesso à justiça e permitir que haja litigância de má fé. São possíveis efeitos da relativização da coisa julgada.

 

Palavras-chave: Direito Civil. Processo Civil. Coisa julgada. Relativização. Princípio do contraditório e da ampla defesa.

 

Introdução

Tendo em vista a imensa notoriedade obtida pela reforma do Código de Processo Civil vigente, de modo geral, de uns anos para cá, o presente trabalho visa à realização de um estudo mais específico sobre o instituto da coisa julgada tanto no atual Código de Processo Civil, quanto no anteprojeto do novo Código de Processo Civil. É sabido que a coisa julgada é extremamente importante para o direito brasileiro, vez que serve para dar maior garantia à segurança jurídica e garantir a efetividade da tutela jurisdicional.

Ao ser proferida a sentença, é possível que haja a interposição de um recurso, para que a decisão tomada seja revista por outro órgão jurisdicional, quando o limite de recursos que podem ser interpostos é alcançado a decisão torna-se irrecorrível; outro meio para que uma decisão torne-se irrecorrível é quando não ocorrer a interposição de um recurso no momento correto (CÂMARA, 2013).

Tornando-se irrecorrível, há o trânsito em julgado da sentença, surgindo, então a coisa julgada, a qual de acordo com o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro seria a “decisão judicial de que já não cabe mais recurso”.

A importância da coisa julgada para o direito brasileiro é tamanha que fora dado a ela grande relevância ao ser discutida quais alterações deveriam vir a ocorrer nesse instituto. Logo, é necessário realizar uma comparação da forma como esse instituto é tratado no atual Código de Processo Civil e no anteprojeto do novo Código, demonstrando em que pontos ocorreram alterações como, por exemplo: a ampliação dos limites objetivos da coisa julgada e o alcance da coisa julgada às questões prejudiciais.  

Importante ressaltar que no concernente ao projeto de novo Código de Processo Civil, Luiz Dellore (2010) afirma que o novo sistema garante ao processo o maior rendimento possível. Isto porque, segundo ele, o processo poderá ser de fato, dissecado e esmiuçado, garantindo, assim, maior possibilidade de contraditório e ampla defesa.

Têm-se então um dos principais fundamentos para ocorrer a criação do novo Código de Processo Civil (é um anteprojeto ainda), e alterar, em certos pontos, a coisa julgada, principalmente quanto à relativização desta, vai ao encontro do fundamento de proteção do princípio do contraditória e da ampla defesa; além de garantir a segurança jurídica, levantados pelos defensores desse novo “sistema”.

No que diz respeito à relativização da coisa julgada, Luis Guilherme Marinoni (2013) afirma que as teorias que regem os sistemas jurídicos no mundo inteiro não possibilitam uma execução fática perfeita. Isso significa dizer que não há como disciplinar um processo, um caso concreto, tendo plena certeza de proferir sentença justa. A relativização da coisa julgada possibilita a reforma, por assim dizer, de uma sentença.

Marinoni (2013) afirma ainda que a favor da relativização da coisa julgada encontram-se três princípios: o da proporcionalidade, o da legalidade e o da instrumentalidade. No concernente à instrumentalidade, frisa-se que o processo, enquanto instrumento, só faz sentido de existir se estiver pautado nos ideais de justiça e adequado à realidade. Quanto à legalidade, não faz sentido conferir uma proteção à coisa julgada totalmente alheia ao direito positivo, vez que ‘legalidade’ pauta-se na lei. Por fim, quanto à proporcionalidade, entende-se que, por ser mais uma garantia constitucional, a coisa julgada não pode prevalecer sobre as demais, razão pela qual seria possível apalpar a relativização desta.

A partir dessa comparação entre o atual Código de Processo Civil e o anteprojeto do novo Código de Processo Civil, procurar-se-á realizar um debate sólido acerca do instituto da coisa julgada, tratando principalmente da relevância que será dada a relativização da coisa julgada como um meio de garantir o acesso efetivo à jurisdição estatal.

 

1 A coisa julgada no Código de Processo Civil vigente

 

Ao ser proferida a sentença, é possível que haja a interposição de um recurso, para que a decisão tomada seja revista por outro órgão jurisdicional. Fato é que o número de recursos é limitado, e quando este número é alcançado, a decisão torna-se irrecorrível; outro meio para que uma decisão torne-se irrecorrível é quando não ocorrer a interposição de um recurso no momento correto (CÂMARA, 2013)

Quando a decisão torna-se irrecorrível, diz-se que há o trânsito em julgado, surgindo, então a coisa julgada, a qual de acordo com o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro seria a “decisão judicial de que já não cabe mais recurso”.

Aprofundando mais ainda essa conceituação tem-se que a coisa julgada é “a imutabilidade decorrente da sentença de mérito, que impede sua discussão posterior” (MARINONI; ARENHART, 2013, p.630). Logo, pode-se aferir que essa decisão não pode ser alterada em sua forma, além de que torna imutável os seus efeitos.

Decorrem do conceito supracitado a coisa julgada material e a coisa julgada formal. A primeira diz respeito à imutabilidade dos efeitos da sentença, logo, esta só pode se formar nas sentenças de mérito; já a segunda versa sobre a imutabilidade da sentença, ou seja, assim que a sentença se torne irrecorrível, será impossível alterá-la, sendo comum a todos os tipos de sentença (LIEBMAN, 1984 apud CÂMARA, 2013, p.520)

A coisa julgada formal impede que haja uma nova discussão acerca dessa sentença dentro do mesmo processo, isso implica dizer que, caso seja aberto um novo processo, essa sentença poderá ser discutida novamente (é endoprocessual). Já a coisa julgada material impede que ocorra uma nova discussão sobre o objeto da decisão, mesmo que isso ocorra em outro processo, ou seja, ela é extraprocessual (MARINONI; ARENHART, 2013).

É importante ressaltar que, ao tratar da coisa julgada, falar de seus limites objetivos (o foco é saber o que transitou em julgado), os quais estão inseridos no artigo 468 do Código de Processo Civil: “A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.”

A partir da leitura deste artigo fica claro que a coisa julgada vai atingir apenas o objeto do processo, sendo este definido por meio do pedido, ou seja, os limites objetivos da coisa julgada são de certa forma, “medidos” pelo pedido (CÂMARA, 2013). Logo, o que não foi objeto do pedido, não pode ser alcançado pela coisa julgada.

Pode-se aferir, então, que somente o que fora anteriormente deduzido no processo, é alcançado pela coisa julgada. Em se tratando dos limites objetivos da coisa julgada, existem ainda os artigos 469 e 470 do Código de Processo Civil.

Art. 469. Não fazem coisa julgada:

I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;

III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.

Este artigo serve para corroborar o entendimento de que apenas o dispositivo da sentença transita em julgado, além de definir o que, dentro do processo, não será alcançado pela coisa julgada.

Já pelo disposto no artigo 470 do Código supracitado, no que concerne às questões prejudiciais, caso a parte faça o requerimento, o juiz sendo competente em razão da matéria e constituindo pressuposto necessário para o julgamento da lide, aquelas questões podem também fazer coisa julgada. Para que a questão prejudicial venha a formar coisa julgada, é necessário que tenha havido uma ação declaratória incidental, pois aquela questçao passará a integrar o objeto do processo (CÂMARA, 2013).

Tendo sido feitas algumas considerações acerca dos limites objetivos da coisa julgada, têm-se agora os limites subjetivos desta. De acordo com o artigo 472 do Código de Processo Civil:

Art. 472. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros. Nas causas relativas ao estado de pessoa, se houverem sido citados no processo, em litisconsórcio necessário, todos os interessados, a sentença produz coisa julgada em relação a terceiros.

Esses limites subjetivos dizem respeito às quais pessoas são atingidas pela coisa julgada material. Seguindo o disposto no artigo supracitado, fica claro que entre as partes, a sentença faz coisa julgada, entretanto, terceiros não podem ser atingidos.

A importância dessa regra é a de garantir o princípio do contraditório, tendo em vista que seria inviável considerar que uma sentença seja imutável até mesmo para alguém que não participou do processo (CÂMARA, 2013).

Faz-se necessário demonstrar algumas hipóteses em que devem ser considerados os limites da coisa julgada subjetiva: I – hipótese de substituição processual (quando a parte era um legitimado extraordinário, o qual em nome próprio, defendia interesse alheio, e o legitimado ordinário não participava do processo), nesse caso, a coisa julgada alcança tanto o substituto, quanto o substituído, vez que este não é um terceiro; II – Sucessão (a coisa julgada impede que ocorra uma nova discussao sobre o que já foi decidido para o sucessor, pois este assume a posição que antes era do sucedido, logo, o sucessor passa a ocupar a posição de quem era parte do processo, tornando-se, assim, também parte do processo); III – Questões de estado (com a citação de todos os interessados nesses casos, como se fossem litisconsortes necessários, tornam-se estes partes do processo, sendo assim serão atingidos pela coisa julgada); (CÂMARA, 2013).

Acerca da coisa julgada no Código de Processo Civil vigente, têm-se a eficácia preclusiva da coisa julgada, a qual, segundo o artigo 474 desse mesmo Código determina que: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.”

Essa eficácia preclusiva serve, então, como um meio de proteger a decisão judicial transitada um julgado, visto que todo material relacionado com o primeiro julgamento fica precluso (não pode ser apreciado em outra ação); as alegações são presumidas oferecidas e repelidas pelo órgão jurisdicional (MARINONI; ARENHART, 2013).

Isso não implica dizer que os motivos da sentença transitam em julgado, mas que apenas o material relacionado ao processo, utilizado para alcançar uma determinada declaração não pode ser reapreciado judicialmente em outra ação, por essa razão que a eficácia preclusiva da coisa julgada só terá relevância se houver possibilidade de ofensa à coisa julgada formal (MARINONI; ARENHART, 2013).

 

 

 

2 Análise do instituto da coisa julgada sob a égide do novo Código de Processo Civil

 

É uma garantia constitucional a não afetação do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada por questões de direito, em si. Assim, insta frisar, aqui, que o Código de Processo Civil garante plena fruição do instituto da coisa julgada na forma da lei como forma de atestar as decisões proferidas pelo Estado e de garantir a segurança jurídica entre as partes. Há em trâmite para aprovação nas casas legislativas, um novo projeto de Código de Processo Civil. Fundamentalmente, esse projeto de Código de Processo propõe ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada.

Rodrigo Koehler (2013) infere que a melhor forma de definir a coisa julgada seria qualificá-la como uma qualidade que adere ao efeito declaratório da sentença, tornando-a imutável. Ora, havendo sentença e trânsito em julgado, extingue-se o processo. Há, dessa maneira, coisa julgada. No entanto, é de curial relevância salientar que sentenças são complexas, por assim dizer: possuem fundamentos fáticos, de direito e envolvem relações jurídicas conexas. Essa é a razão pela qual o novo Código de Processo propõe o alargamento dos limites objetivos da coisa julgada.

Sobre o período compreendido entre o século XIX e XX, Rodrigo Koehler (2013) afirma que:

Era praticamente uníssona na doutrina nacional a concepção de que a coisa julgada constituiria mera presunção da verdade, ideia essa veiculada por Friederich Karl Savigny. A concepção de Savigny de coisa julgada como presunção de verdade fazia não só concluir que a sentença injusta também se tornava imutável como estendia os limites objetivos da coisa julgada aos motivos da sentença.

A partir disso, pode-se inferir que a concepção doutrinária outrora vigente entendia que toda e qualquer sentença seria imutável, inclusive aquelas consideradas injustas.

No concernente ao projeto de novo Código de Processo Civil, Luiz Dellore (2010) afirma que o novo sistema garante ao processo o maior rendimento possível. Isto porque, segundo ele, o processo poderá ser, de fato, dissecado e esmiuçado, garantindo, assim, maior possibilidade de contraditório e ampla defesa.

Dellore (2010) acredita ainda que, por conta disso, a autoridade da coisa julgada se estenderá, também, às questões prejudiciais. É importante salientar que, uma vez vigendo, o novo Código de Processo Civil visa permitir, até a prolação da sentença, sejam modificados o pedido e causas de pedir. Isto, obviamente, sem ferir o contraditório e a ampla defesa, conforme preconizam os artigos 19, 314, 484 e 485, respectivamente:

O artigo 19 do anteprojeto de CPC nos esclarece quanto à extensão da coisa julgada, “se, no curso do processo, se tornar litigiosa relação jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento da lide, o juiz, assegurado o contraditório, a declarará por sentença, com força de coisa julgada”.

Faz entender o texto que o juiz poderá declarar sentença com força de coisa julgada, sem desprezar o contraditório, sempre que surgirem litígios quando do processo. É sem dúvidas uma inovação.

 Art. 314. O autor poderá, enquanto não proferida a sentença, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, desde que o faça de boa-fé e que não importe em prejuízo ao réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de quinze dias, facultada a produção de prova suplementar.

Parágrafo único. Aplica-se o disposto neste artigo ao pedido contraposto e à respectiva causa de pedir.

No tangente ao artigo 314 do mesmo anteprojeto, tem-se a clara menção à possibilidade de aditamento ou alteração tanto do pedido como da causa de pedir. Essas alterações só poderão ser feitas desde que não haja prejuízos ao réu e contanto que sejam de boa-fé. O CPC que vige hoje não abarca essa possibilidade pelo simples fato de o legislador, ao redigi-lo, ter-se preocupado com a segurança jurídica no processo. 

Há também o artigo 484 que, por sua vez, é bastante enfático quando deixa nítidas as alterações em relação ao CPC que vige hoje. Isto porque a coisa julgada está intimamente ligada à prolação das sentenças. Sendo dessa forma, o artigo acima faz entender que, no novo CPC, a sentença prolatada terá força de lei em relação aos pedidos. Assim, as questões prejudiciais, como a coisa julgada, deverão ser apreciadas de maneira separada, e não incidentalmente no processo, como ocorre hoje.

É importante destacar as mudanças concernentes aos liames objetivos da coisa julgada. Pelo exposto no artigo 485 do anteprojeto do novo Código de Processo Civil fica definido que não fazem coisa julgada “I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença”.

Por sua vez, o artigo acima demonstra a ampliação dos liames objetivos do que faz coisa julgada, ou não. A verdade dos fatos e motivos não foi definida como limites objetivos. Pelo contrário, são subjetivos demais para compor esse rol de enumerações (KOEHLER, 2013).

Outro ponto importante que pode ser extraído do anteprojeto supracitado encontra-se no artigo 514 deste, o qual preconiza a extensão da coisa julgada às questões prejudiciais. Para Koehler (2013), o intuito de ampliarem-se os limites objetivos da coisa julgada está diretamente relacionado com as ideias de coerência nas decisões judiciais (evitando-se a prolação de sentenças contraditórias) e de economia processual.

Trata-se dos mesmos fundamentos da conexão, do litisconsórcio e da intervenção de terceiros. Para melhor entender a aplicação coisa julgada no novo CPC, é preciso analisar o sistema Common Law (KOEHLER, 2013).

Na tradição do sistema jurídico anglo-saxão é sabido que as fontes primárias do direito são os precedentes. Dessa maneira, as decisões possuem, necessariamente efeito vinculante. O similar ocorre sob essa nova perspectiva, com a coisa julgada: haverá possibilidade de vinculação das decisões subsequentes. Trata-se da teoria do stare decisis (FERNANDES, 2013).

Obviamente que essa teoria não admitirá por parte do juiz a mera atividade jurisdicional de aplicar a norma ao caso concreto, mas pode exigir trabalho criativo. Há que se inferir, todavia, que o instituto da coisa julgada, sob ótica do novo CPC, vai de encontro à economia processual. Isto porque com a ampliação dos limites objetivos pode haver não apenas litigância de má-fé, mas procrastinação do processo (DELLORE, 2010).

3 Relativização da coisa julgada e o acesso efetivo à jurisdição estatal

 

O artigo 5º já Constituição da República Federativa do Brasil, quando retrata os Direitos Fundamentais, é taxativo ao garantir o acesso à justiça como tal. Isto porque qualquer Estado Democrático de Direito deve prezar pelos princípios do contraditório e da ampla defesa. No concernente a esses dois últimos, é de fundamental importância mencionar a relativização da coisa julgada. Ora, a coisa julgada tem por essência sua imutabilidade. De que maneira pode haver, assim sendo, uma relativização e no que consiste?

Sobre a coisa julgada, Nery Júnior diz que:

“Há determinados institutos no direito, de natureza material (v.g., decadência, prescrição) ou processual (v.g., preclusão), criados para propiciar segurança nas relações sociais e jurídicas. A coisa julgada é um desses institutos e tem natureza constitucional, pois é [...] elemento que forma a própria existência do Estado Democrático de Direito (CF 1.º)[23].”(DELLORE, 2010 apud JÚNIOR, 2004)

Luis Guilherme Marinoni (2013) afirma que as teorias que regem os sistemas jurídicos no mundo inteiro não possibilitam uma execução fática perfeita. Isso significa dizer que não há como disciplinar um processo, um caso concreto, tendo plena certeza de proferir sentença justa. A relativização da coisa julgada possibilita a reforma, por assim dizer, de uma sentença, e o meio mais comum para atingir esse fim são as ações rescisórias.

Quando se fala em relativização da coisa julgada, a doutrina tem se utilizado bastante de um exemplo de simples compreensão: o da ação de investigação de paternidade – a sentença dessa ação determina se alguém é ou não pai de um indivíduo. Diante dos fatos, uma vez que foi feito exame de DNA para que a sentença desse o máximo de segurança jurídica possível é complicado reaver um direito já adquirido por alguém. No entanto, deve-se argumentar que a indiscutibilidade que paira sobre a coisa julgada não pode prevalecer sobre a realidade. Sobre a relativização da coisa julgada e o acesso à justiça, afirma que de nada adianta o cidadão buscar a jurisdição estatal se não tiver seu conflito resolvido definitivamente (DIDIER, 2007).  .

Marinoni (2013) afirma que a favor da relativização da coisa julgada encontram-se três princípios: o da proporcionalidade, o da legalidade e o da instrumentalidade. No concernente à instrumentalidade, frisa-se que o processo, enquanto instrumento, só faz sentido de existir se estiver pautado nos ideais de justiça e adequado à realidade. Quanto à legalidade, não faz sentido conferir uma proteção à coisa julgada totalmente alheia ao direito positivo, vez que ‘legalidade’ pauta-se na lei. Por fim, quanto à proporcionalidade, entende-se que, por ser mais uma garantia constitucional, a coisa julgada não pode prevalecer sobre as demais, razão pela qual seria possível apalpar a relativização desta.

Segundo Magno Federici Gomes e Ricardo Moraes Cohen (2007), para solucionar o problema da relativização da coisa julgada, sem prejuízo da segurança jurídica e apesar de toda a discussão doutrinária, supracitada, seria necessária uma simples alteração legislativa no CPC, a fim de adequar o instituto da ação rescisória às necessidades atuais.

Isto porque, sem dúvida, há um abismo concernente às necessidades sociais que insurgiram ante as mudanças pelas quais passou o Brasil desde a data de vigência do Código de Processo Civil que vigora no Brasil hoje. O fundamental seria por fim no prazo decadencial para proposição de ação rescisória, que hoje é de dois anos (GOMES; COHEN, 2007).

Para Marinoni (2013), a tese da relativização da coisa julgada contrapõe a coisa julgada material ao valor de justiça mas sem mencionar quais conceitos e o que entende por justiça. O autor é enfático quando diz que a noção de justiça presente à tese parte do senso comum, de maneira tal que qualquer cidadão médio é capaz de descobri-la. Isso, sem dúvida, a tornaria imprestável.

Resta claro, dessa forma, que há também contrapontos à tese de relativização da coisa julgada. É imprescindível ao direito que haja e paire sobre todas as decisões estatais a segurança jurídica. Como bem doutrina Freddie Didier (2007), não haveria fundamento algum em procurar o Estado e ter, assim, uma lide por ele resolvida, vez que não já garantias de que o conflito fosse, fato, resolvido e o processo sanado por inteiro.

Dellore (2010) critica o instituto da coisa julgada sob a perspectiva do novo CPC dizendo que:

A proposta traz alguns inconvenientes, entre os quais destacamos: (i) a possibilidade de uma simples causa poder se transformar em com grande repercussão, sem qualquer controle ou possibilidade de ciência prévia pelas partes; (ii) a insegurança na interpretação de uma sentença, a respeito de qual parte será coberta pela coisa julgada e (iii) reflexos em relação ao processo coletivo, diante do controle de constitucionalidade difuso e incidental.

Acredita-se, dessa maneira, que a época de hoje não é o momento mais adequado para uma mudança radical no Código de Processo Civil. Trata-se de um período de transição: aos poucos, o papel está sendo substituído pelo digital. O ideal seria levar adiante o anteprojeto, mas não colocá-lo agora para tramitação e aprovação. É de crucial importância associar o direito às mudanças sociais (DELLORE, 2010).

Freddie Didier Jr. (2007, p.293) é enfático quando fala da ação rescisória:

A ação rescisória ostenta a natureza de ação autônoma de impugnação, voltando-se contra a decisão de mérito transitada e julgado, quando presente pelo menos uma das hipóteses previstas no artigo 485 do CPC. A coisa julgada, no direito brasileiro, pode ser desconstituída, basicamente por três meios: a ação rescisória (comum), a querela nullitatis e a impugnação de sentença fundada no parágrafo 1º do artigo 475-L e no parágrafo único do artigo 471 do CPC.

A ação rescisória não é considerada um recurso porque não é prevista em lei como tal. Além disso, os recursos não originam novo processo, tampouco inauguram relações jurídicas. A ação rescisória, por sua vez, gera um novo processo e é pioneira na relação jurídica a que ser quer dar causa. Além disso, pode propor ação rescisória apenas quem foi parte no processo (DIDIER, 2007).

Assim sendo, a relativização da coisa julgada deve ser vista como instituto que visa garantir o devido processo legal. Obviamente, é possível que seja utilizado como meio de litigância de má-fé. No entanto, pretende-se demonstrar aqui questões que afetam o mundo do dever ser.

Conclusão

A relativização da coisa julgada é essencial ao Direito Processual Civil. Ocorre que tal instituto evidencia o caráter garantidor do devido processo legal, existente no direito brasileiro, ao passo que  permite alcançar a segurança jurídica, visando, principalmente, garantir que a justiça seja alcançada. 

O conceito de coisa julgada, já citado no presente trabalho, serve de base para o entendimento da relativização deste instituto. Grosso modo, isso significa inferir que a coisa julgada deve ser compreendida como sendo uma garantia do direito fundamental à segurança jurídica e do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, que estão inscritos no artigo 5°, caput e incisos XXXV e XXXVI da Constituição (KOEHLER, 2013).

 Apesar disso, há que se falar sobre a possibilidade de ocorrer litigância de má-fé, por exemplo, em virtude dessa possibilidade de relativização da coisa julgada. Pelo fato dessa relativização visar à garantia ao devido processo legal, com ela podem vir certos problemas, vez que não haveria fundamento algum em procurar o Estado e ter, assim, uma lide por ele resolvida, se não há garantias de que o conflito fosse,  de fato, resolvido e o processo sanado por inteiro (DIDIER, 2007).

Além disso, segundo Dellore (2010) há a possibilidade de que  uma simples causa poder se transformar em com grande repercussão, sem qualquer controle ou possibilidade de ciência prévia pelas partes; além de gerar a insegurança na interpretação de uma sentença, a respeito de qual parte será coberta pela coisa julgada.

Por fim, é evidente a importância da relativização julgada para o direito brasileiro, em determinados casos, entretanto, parte da doutrina afirma que este não é o momento mais adequado para uma mudança radical no Código de Processo Civil, pois trata-se de um período de transição no direito brasileiro (DELLORE, 2010). Certo é que a relativização da coisa julgada traz inúmeras possibilidades de realmente garantir a justiça, mas depende de que este instrumento seja utilizado de maneira correta, evitando, assim, que os problemas acima citados venham a ocorrer.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme. Processo de conhecimento. 11ª ed. v.2. São Paulo: Revista dos tribunais, 2013.

BRASIL. Código de Processo Civil. Vade Mecum Saraiva. Ed. Saraiva, 2012.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 24ª ed. vol. 1. São Paulo: Atlas, 2013.

COHEN, Ricardo Moraes; GOMES, Magno Federici. Relativização da coisa julgada: Teorias, controvérsias, dilemas e solução. Disponível: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?artigo_id=6473&n_link=revista_artigos_leitura. Acesso em: 20 fev, 2014.

DELLORE, Luiz. Da ampliação dos limites objetivos da coisa julgada no novo Código de Processo Civil. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242942/000939981.pdf?sequence=3. Acesso em: 22 fev, 2014.

DIDIER JR, Freddie. Meios de Impugnação às Decisões Judiciais e Processo nos Tribunais.  3ª ed. Podivm. Pernambuco, 2007. 

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 5. Ed. Salvador: JusPodivm, 2012.

MARINONI, Luiz Guilherme. Relativizar a coisa julgada material? Disponível em: http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Luiz%20G.%20Marinoni(4)%20-formatado.pdf. Acesso em: 21 fev, 2014.

RIBEIRO, Rodrigo Koehler. Uma análise da coisa julgada e questões prejudiciais no novo Código de Processo civil sob a ótica de um processo efetivo.  Disponível em: < http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao055/Rodrigo_Ribeiro.html>. Acesso em: 01 abr, 2014.

 

                                                                                                                       



[1] Paper apresentado à disciplina Processo de Conhecimento II, da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco – UNDB.

[2] Alunos do 5º Período Noturno do Curso de Direito da UNDB.