O princípio da dignidade da pessoa humana e a ineficiência da investigação...

Por Natália Maria Santos de ARAÚJO | 09/10/2016 | Direito

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A INEFICÁCIA DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

 

Resumo

Este trabalho analisa a investigação criminal sob um viés garantista. Desse modo, necessária se faz a garantia de que a intervenção estatal não retire do investigado a sua condição de ser humano, desrespeitando os seus direitos fundamentais. Todavia, tal pensamento não vigorou durante todo o processo histórico e, ainda hoje, de forma equivocada, mesmo com todos os avanços sociais e legais, é possível encontrar defensores da utilização de meios ríspidos para a obtenção da “verdade” para que aquele indivíduo – reduzido à condição de “coisa” - possa ser logo punido. Critica-se, dessa forma, os abusos comportamentais cometidos durante a investigação, violadores da dignidade da pessoa humana.

INTRODUÇÃO:

Este trabalho propõe-se a abordar sobre a investigação criminal como instrumento eficaz, que deve atuar na apuração de delitos (existência da infração, determinação dos agentes e das repectivas responsabilidades, assim como recolhimento de provas) observando os direitos e garantias fundamentais do acusado, já que, em decorrência da mera existência na sociedade, deve ter a sua dignidade respeitada.

Assunto que sempre suscitou profundas controvérsias no mundo jurídico é a questão da dignidade da pessoa humana. É inegável a sua incidência em outros ramos do direito, além dos limites do Direito Constitucional. Desse modo, é imperiosa a sua análise, a realização de um estudo mais aprofundado – além dos aspectos conceituais -, posto que não se manifesta apenas no aspecto normativo, tendo relevante importância prática no contexto social.

Muito se discute acerca do tratamento adequado para o agente de um delito (sujeito ou objeto de direitos). Uma análise do processo histórico evidencia um contexto de inobservância de um tratamento humanizado do investigado.

A atual concepção de dignidade da pessoa humana encontra suas raízes na Idade Moderna, mais especificamente com Immanuel Kant, que trouxe a ideia do homem como um fim em si mesmo, como sujeito de direitos. Em contraposição ao pensamento que vigorava anteriormente, na Idade Média, em que houve o predomínio de sevícias físicas não somente como sanção, mas também como meio lícito e eficaz de produção probatória.

As constituições consagram em seu texto não apenas direitos ligados à liberdade, mas também direitos sociais, econômicos e culturais ligados a igualdade material, cuja implementação exige uma atuação positiva do Estado que tem como objetivo criar um produto final do processo constituinte (ROMANO apud NOVELINO, 2011). Todavia, até nos mais modernos Estados Democráticos de Direito, a violação dos direitos e garantias referentes à pessoa humana se dá pelo próprio Estado. Assim, aquele que deveria ser o maior responsável acaba sendo em seu maior infrator, em maior ou menor grau.

No Brasil, em contraposição a Constituição Federal de 1967, que surgiu sob a égide de um regime ditatorial, em que a preocupação, normatização e efetivação do princípio da dignidade humana eram praticamente nulas, por meio da Constituição Federal de 1988, esta foi estabelecida como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III). Desse modo, deve ser garantido ao indivíduo o mínimo existencial, os bens e condições básicas para a sua subsistência, e a liberdade de valores do espírito. Obriga-se, de tal forma, o respeito à identidade e à integridade de todos, abrangendo aqueles que estão sujeitos a um processo penal.

Busca-se, com o presente estudo, analisar a investigação criminal sob a perspectiva do respeito à dignidade da pessoa humana. Já que, ao contrário do pensamento que vigora no senso comum, não são inconciliáveis, devendo ser inseparáveis. Somente de tal forma ela deixará de ser visualizada como um instrumento repressor, “ineficaz”, e terá a sua maior virtude ressaltada, a de preservar a inocência diante de acusações infundadas.

O presente trabalho foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica nacional e estrangeira.

  1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIGINIDADE DA PESSOA HUMANA:

 

A dignidade da pessoa humana é um termo de difícil conceituação jurídica em virtude das muitas teorias existentes a respeito. Diversas foram as discussões promovidas. Entre elas se destacam as teorias cristã e kantiana que contribuíram para a formação do atual conceito adotado.

A origem da concepção da dignidade da pessoa humana advém de uma tradição judaica-cristã, que tratava da divindade da origem do homem. Esta preceituava que o ser humano nasce à imagem e semelhança de Deus, tendo a dignidade como valor inerente ao mesmo. De tal forma, ele não pode ser tratado como objeto, instrumento. Nesse período, tal valor estava ligado tanto à semelhança com Deus, como também à obtenção de cargos, honras e títulos.

Esse pensamento foi mitigado durante a Santa Inquisição, época em que foram cometidas com as pessoas, tendo por base o nome de Deus, inúmeras atrocidades, sendo afetada, assim, a mencionada dignidade.

Durante a era medieval (sécs. V a XV), de forma singular, São Tomás de Aquino retratou a impossibilidade da redução da ideia de dignidade da pessoa humana em um conceito ao mencionar que “(...) o termo dignidade é algo absoluto e pertence à essência”. Desse modo, a noção de dignidade vai além da divindade, trazendo consigo a racionalidade que é pertencente ao ser humano. A visão da dignidade na concepção do mencionado filósofo é: “dimensão horizontal na medida em que todos os humanos são iguais em dignidade, pois naturalmente dotados da mesma racionalidade”.

Com o Renascimento (séc. XIV) e com a ascensão dos ideais iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade (séc. XVIII), ganhou destaque o pensamento de Immanuel Kant, o qual influenciou profundamente a conceituação moderna da dignidade da pessoa humana.

Segundo Greco (2013, p.9), no Século das Luzes, no período Iluminista, se tem a razão colocando luz à escuridão de um suposto conhecimento, a consolidação da dignidade da pessoa humana como um valor a ser respeitado por todos.

Kant afirmava que os seres desprovidos de razão possuem apenas valor relativo – valor de meios -, sendo, por isso, chamado de “coisas”. Por outro lado, os seres racionais são chamados de “pessoas” em virtude de a natureza já os designar como fins em si mesmos, não podendo ser tratados como meios para a realização da vontade de alguém. Dessa forma, o homem deve proceder de forma a tratar a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa dos outros.

O pensamento kantiano está ligado à universalidade. Esta implica que todos os homens são racionais e, dessa forma, deve-se respeitar toda e qualquer relação sem haver restrições, assim como a autonomia, liberdade que o mesmo tem de possuir vontade. O homem deve ser tratado como um fim em si mesmo, sujeito de direitos.

O Período Renascentista foi de grande importância para o efetivo reconhecimento da dignidade humana como um valor intrínseco a sua existência, devendo todas as relações humanas serem respeitadas como também serem livres na suas escolhas.

Percebe-se que a dignidade da pessoa humana está ligada a uma condição essencial do indivíduo, sendo irrenunciável e inalienável, e devendo o Estado a garantir tais condições para não acarretar em tratamentos desumanos.

Ingo Wolfgang Sarlet bem define a dignidade da pessoa humana (2001, p.60):

“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.” 

1.1. A normatização da dignidade da pessoa humana:

Com o final da 2º Guerra Mundial (1939 – 1945), surgiu, de forma global, uma tendência no sentido da normatização da dignidade da pessoa humana como forma de proteger o mundo das barbáries ocorridas durante décadas, durante os Regimes Totalitários.

As primeiras a normatizarem a dignidade da pessoa humana foram as constituições italiana e alemã. A partir desse interesse jurídico de proteção, surgiram vários tratados internacionais para que ela fosse garantida, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) quem em seu artigo 1º, menciona: “todas os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.

As resoluções, tratados e convenções internacionais foram de suma importância para o futuro de normatização nas diversas Constituições, especialmente as democráticas. Além da DUDH, é possível destacar a Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (ROMA/1950), o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificado pelo Brasil em 1992. A maioria desses instrumentos tratam sobre matérias penais e processuais penais, versando sobre a preservação da liberdade, o acesso à justiça, a plenitude da defesa, a publicidade do atos processuais penais, entre outros assuntos, mas todos eles ligados à dignidade da pessoa humana.

O Brasil seguiu esse direcionamento ao trazer a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, a Constituição Federal de 1988 (art. 1º, III) destaca a relevância da compreensão do mínimo existencial, seu núcleo material elementar. Este diz respeito ao conjunto de bens e condições básicas para a subsistência de todos os indivíduos e à liberdade de valores do espírito, tendo como requisito para o seu gozo a mera existência no mundo. De tal forma, esse princípio obriga de forma inarredável, absoluta e plena o respeito à identidade e à integridade de todo ser humano e a sua observância por toda legislação constitucional e infraconstitucional.

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