O PRINCÍPIO BÁSICO DA BOA-FÉ NA PROTEÇÃO ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

Por Diógenes de Paula e Monteiro | 11/11/2013 | Direito

O PRINCÍPIO BÁSICO DA BOA-FÉ NA PROTEÇÃO ÀS RELAÇÕES DE CONSUMO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

 

Diógenes de Paula e Monteiro, e Kênnia Suelen da Silva [1]

 

RESUMO

A Constituição Federal brasileira de 1988 institui princípios fundamentais com aplicação em todo o ordenamento jurídico interno – e, em destaque, à matéria de Direito de Consumidor. Desta forma, porém, há aqueles princípios próprios à disciplina das relações de consumo, estando tais delineados no Código de Defesa do Consumidor – CDC, o sustentáculo da Política Nacional das Relações de Consumo. A observância da principiologia consumerista é obrigatória, e norteia toda a edição e interpretação de suas normas reguladoras. E dentre os mais relevantes tópicos insculpidos pelo legislador ordinário, sublinhe-se o princípio da boa-fé, fazendo-se, outrossim, uma análise de seus reflexos na publicidade, bem como delineando a questão das práticas comerciais abusivas. Ademais, um apanhado sobre o entendimento jurisprudencial do País auxilia na compreensão das diversas facetas do supracitado princípio, pois os fundamentos do julgador ao decidir o caso concreto, além de ilustrarem o tema, traduzem e definem os contornos da matéria em si.

Palavras-chaves: princípios, direito, consumidor, interpretação, aplicação.

ABSTRACT

The Brazilian Federal Constitution of 1988 introduces fundamental principles in the whole legal framework, with emphasis on the field of Consumer Law. However, there are some principles that are intrinsic to consumer relations’ subject, being these ones outlined in the Consumer Defense Code – CDC, fulcrum of the National Policy of Consumer Relations. The observance of the set of consumer principles is mandatory, and it guides the whole process of editing and interpretation of their regulatory standards. And among the most relevant topics introduced by the ordinary legislator, can be highlighted the principle of good faith, with the ground of analyze its effects on publicity, as well as outlining the issue of unfair commercial practices. Furthermore, an overview on the jurisprudence understanding of the country helps to comprise the various facets of the principle mentioned above, because the fundamentals of the judge when deciding each case illustrate the theme and also translate and define the contours of matter itself.

KEYWORDS: principles, right, consumer, interpretation, application.

SUMÁRIO: Introdução. 1 O Princípio da Boa-fé. 1.1 A Boa-fé e a Publicidade. 1.2 A Boa-fé e as Práticas Abusivas. 1.3 O Princípio da Boa-fé na Jurisprudência. Referências Bibliográficas

Introdução

Os princípios mais basilares do Direito do Consumidor são aqueles informadores do CDC; os da boa-fé, da vulnerabilidade do consumidor, da transparência, da equidade, da isonomia e da intervenção estatal. E para se fazer um exame acurado de cada, procedamos à divisão do tema em tópicos, interpondo perspectivas doutrinárias e jurisprudenciais.

1 O Princípio da Boa-fé

O CDC, no artigo 4º, institui a boa-fé como um dos pilares da Política Nacional das Relações de Consumo. Tal é a importância deste princípio que a harmonia nas relações consumeristas é reflexo da boa-fé entre consumidores e fornecedores – de modo que até mesmo outros princípios, como o da transparência, por sua vez são reflexos da boa-fé externada pelas partes da relação de consumo.

Rodrigues (2003), ao tratar Dos Contratos e Das Declarações Unilaterais da Vontade, acerca da função social do contrato, a qual, pelo art. 421 do Código Civil, limita a liberdade de contratar, disserta que “parece que o legislador de 2002 quis divorciar a ideia do contrato daquela de liberalismo exagerado, que de certo inspirou seu colega de 1916”. Na busca do sentido de “função social do contrato” mais atrelada à intenção do legislador de 2002, acreditou tê-la visualizado no artigo 4º, inciso III, do CDC:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; […]

Dessa forma, a função social do contrato fundar-se-ia no equilíbrio de prestações e contraprestações entre os agentes. Rodrigues, por fim, conclui apontando o art. 422 do CC, o qual determina que os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão como na execução dos contratos, os princípios da probidade e boa-fé, ressaltando que a lei civil vem resguardar o equilíbrio de prestações, outrora demonstrado no CDC.

Por outro lado, há que se diferenciar os tipos de boa-fé; a objetiva e a subjetiva. A “objetiva”, ou também chamada de “concepção ética de boa-fé”, manifesta-se num dever-ser, obrigando as partes da relação ao dever de agir escorreitamente, de acordo com padrões de comportamento esperados do homem comum, ou homem médio, e amplamente reconhecidos pela sociedade. Já a “subjetiva”, ou “concepção psicológica da boa-fé”, é a crença, daquele que externa a vontade, de que suas ações são corretas. É uma questão de consciência, enquanto no viés objetivo, trata-se de uma regra de conduta.

Nery Jr. e Nery (2003 apud CORRÊA e CORRÊA, 2007, p. 4) pontuam:

[…] a boa-fé objetiva impõe ao contratante um padrão de conduta, de modo que deve agir como um ser humano reto, vale dizer, com probidade, honestidade e lealdade. Assim, reputa-se celebrado o contrato com todos esses atributos que decorrem da boa-fé objetiva. Pois bem, o magistrado, ao conhecer a lide em que se oponham interesses de relações contratuais, deve ter pressuposto o imperativo jurídico da retidão, sob a luz do homem mediano, respeitando as idiossincrasias do local.

Os seminários conhecidos como “Jornada STJ” emitiram enunciados, ainda que sem eficácia normativa, mas para orientação das decisões dos juízes singulares e colegiados. Embora fossem em específico destinados à matéria civil, uns poderiam muito bem ser aplicados ao direito do consumidor, qual o enunciado 26, que ditou que a cláusula geral contida no art. 422 do CC impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como exigência de comportamento leal dos contratantes.

Os enunciados trazem, outrossim, diretrizes sobre a interpretação da cláusula geral da boa-fé, aduzindo que se deve levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos (por exemplo, o CDC) e fatores metajurídicos.

Em suma, o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo magistrado, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual – nos termos do enunciado 25, da supramencionada conferência. E isto se aplica ao CDC, também. O CDC se rege por normas internas de proteção ao consumidor, tanto no momento da formação do contrato, quanto na fase executória deste, ou pós-contratual.

A título de exemplo, verifica-se no art. 6º, inc. IV, do CDC, enumerados entre os direitos consumeristas, o da proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, bem como contra as práticas comerciais abusivas – tão manifesto é o resguardo na fase do pré-contrato.

1.1 A Boa-fé e a Publicidade

Os arts. 36 e 38 do CDC possui normas protetivas quanto à publicidade enganosa e abusiva; uma novidade no ordenamento brasileiro, uma vez que antes só se cuidava de publicidade comercial ligada ao direito de autoria e à concorrência desleal.

Mas o que vem a ser publicidade comercial? A primeira fonte seria o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, o qual define um conceito, estatuindo que se trata de “toda atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem como promover instituições, conceitos e ideias”. Esse conceito não exclui as publicidades governamentais.

Por outro lado, a professora Marques (2002), inspirada na lei belga de 1971 e no art. 37 do próprio CDC, define publicidade no âmbito do nosso direito do consumidor como: “[…] toda informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto de promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja o local ou meio de comunicação utilizado”.

Nesse sentido, o CDC estipula que a publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal, proibindo a assim conhecida “publicidade subliminar – o que denota as presenças massivas dos princípios da boa-fé e da transparência. Ademais, obriga-se o fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, a manter, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.

Já o artigo 37 estipula a vedação à publicidade enganosa ou abusiva, delegando aos três parágrafos a tarefa de conceituar e diferenciar tais tipos.

De descomplicada exegese, depreende-se que enganosa seria aquela apta a levar o consumidor ao erro, por atribuir qualidades, características, enfim, a serviço ou produto que em verdade não as detenha.

Pode ser tal modalidade comissiva ou omissiva: a primeira, na situação acima descrita; a segunda, se omite dados essenciais do produto ou serviço. De fato, ambas induzem o consumidor à aquisição do bem ou serviço quando, não existisse o vício, não o fariam.

Anotemos que o CDC considera somente o resultado da publicidade enganosa, nada questionando acerca da intenção do fornecedor. Há aqui uma presunção juris tantum da culpa, devendo aquele arcar com ônus da refutação, como, por exemplo, provar que as informações transmitidas, tomadas por falsas, são verdadeiras. Em síntese, é esta a disposição expressa do art. 38 do Código em foco.

A vedação da publicidade enganosa ou abusiva, logicamente, é uma proteção pré-contratual, sendo efetiva mesmo que não se dê a contratação.

1.2 A Boa-fé e as Práticas Abusivas

Em regra, as práticas abusivas acontecem na fase anterior ao contrato, e têm reflexos no momento da contratação.

No art. 39 do CDC estão pormenorizadas as práticas assim denominadas abusivas, quais sejam, a título de exemplo, a chamada “venda casada” (inc. I), a recusa de venda (inc. II), o envio de produto sem solicitação prévia (inc. III), a exigência ao consumidor de vantagem manifestamente excessiva (inc. V), et cetera.

Sem dúvida, o conjunto representado por tais proteções demonstra a incidência do princípio da boa-fé.

1.3 O Princípio da Boa-fé na Jurisprudência

  • “Recurso especial. Civil. Indenização. Aplicação do princípio da boa-fé contratual. Deveres anexos ao contrato.

 – O princípio da boa-fé se aplica às relações contratuais regidas pelo CDC, impondo, por conseguinte, a obediência aos deveres anexos ao contrato, que são decorrência lógica deste princípio.

 – O dever anexo de cooperação pressupõe ações recíprocas de lealdade dentro da relação contratual” (STJ – 3ª. T., REsp. 595631/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 02/08/04, p.391).

  • “Direito do Consumidor. Contrato de Seguro de vida inserido em contrato de plano de saúde. Falecimento da segurada. Recebimento… princípio da boa-fé objetiva. Quebra da confiança. […].

 – Os princípios da boa-fé e da confiança protegem as expectativas do consumidor a respeito do contrato de consumo.

 – A operadora de plano de saúde, não obstante figurar como estipulante no contrato de seguro de vida inserido no contrato de plano de saúde, responde pelo pagamento da quantia acordada para a hipótese de falecimento do segurado se criou, no segurado e nos beneficiários do seguro, a legítima expectativa de ela, operadora, ser responsável por esse pagamento…” (STJ – 3ª. T., REsp. 590.336, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 21/02/05, p. 175).

  • “No que diz respeito à validade da nota promissória emitida em branco, a orientação desta Corte é no sentido de que a cláusula contratual que permite a emissão da nota promissória em favor do banco/embargado, caracteriza-se como abusiva, porque violadora do princípio da boa-fe, consagrado no artigo 51, IV, do CDC. Precedente (REsp 511.540/RS)”. (STJ, 4ª. T., AgRg no Ag 511675/DF, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 17/10/05, p. 297).
  • “Indenização. Dano Moral. Consumo de cigarros. Morte do consumidor. Utilização de produto que pode ocasionar doenças gravíssimas. Nexo de causalidade entre o consumo do tabaco e o evento morte comprovado. Aplicação do princípio da boa-fé objetiva. Verba devida … Princípio da boa-fé objetiva que se aplica ao CC/16, incidência do Código de Defesa do Consumidor (arts. 6º, I, III, IV, VI e VIII, e 12, § 1º) … na modalidade omissão na ação…” (TJRS, 9ª Câmara, Ap. 70007090798, j. 19/11/03, Rel. Des. Luis A. Coelho Braga, in Rev. Direito do Consumidor, 51/355, Ed. Revista dos Tribunais).
  • “O compromisso público assumido pelo Ministro da Fazenda, através do Memorando de Entendimento, para suspensão de execução judicial de dívida bancária de devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera no mutuário justa expectativa de que essa suspensão ocorrerá, preenchida a condição. Direito de obter a suspensão fundado no princípio da boa-fé objetiva, que privilegia o respeito à lealdade”. (STJ, 4ª T., RMS 6183, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 14/11/95, apud Nelson Nery Jr. e Rosa M. A. Nery, op. Cit., p. 341).
  • “Busca – Contrato de Adesão – Foro de Eleição – Código de Defesa do Consumidor – Cláusula Abusiva.

 – As normas do Código de Defesa do Consumidor são de ordem pública e de interesse social. Caracterizada a abusividade da cláusula de eleição de foro, reconhece-se a competência do foro domicílio do consumidor, sendo que, neste caso, a incompetência absoluta pode ser declarada de ofício pelo magistrado.” (TJMG, 17ª Câmara, AgI. 1.0024.05.770738-7/01-BH, j. 01/09/05, apud site <WWW.ta.mg.gov.br>).

  • “Indenização por Danos Morais – Contrato de Telefonia Móvel – Relação Contratual regida pelo CDC – Registro no SPC do Inadimplente – Falta de Comunicação ao Consumidor – Infringência ao Princípio da Boa-fé Objetiva – Dano Moral Configurado.

 – O contrato de telefonia móvel é disciplinado pelo CDC, devendo, portanto, ser observado o princípio da boa-fé objetiva, segundo o qual, na formação e execução das obrigações, os parceiros devem adotar uma postura de lealdade e fidelidade entre si.

 – A comunicação ao consumidor, de que seu nome será inscrito no Serviço de Proteção ao Crédito, é obrigação também da empresa, e não só daquele órgão, pois ambos são responsáveis pela inscrição, respondendo solidariamente “pela reparação dos danos previstos nas normas de consumo”. (art. 7º, parágrafo único, do CDC).

– A ciência da inadimplência pelo consumidor não excepciona o dever da instituição financeira de regularmente levar a informação negativa do registro ao consumidor, pois seu escopo não é notificá-lo da mora, mas propiciar-lhe o direito de acesso, de ‘re-ratificação’ das informações e de preveni-lo de futuros danos”. (REsp. n. 402958/DF, 3ª T., Relª Minª Nancy Andrighi, julgado em 30/09/02). (TAMG – 2ª Câmara Civil – Ap. Civ. – 393.554-7, j. 09/09/03, apud site <WWW.ta.mg.gov.br>.

 

Referências Bibliográficas

 

BRASIL. Vade mecum – legislação selecionada para OAB e concursos. Coordenação de Darlan Barroso, Marco Antônio Araújo Junior. 5. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. Coleção RT Códigos.

 

CORRÊA, Luís Fernando Nigro; CORRÊA, Osíris Leite. Código de defesa do consumidor: aspectos relevantes. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007.

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria A. Código civil anotado e legislação extravagante. 7. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 

RODRIGUES, Sílvio. Direito civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.



[1] Acadêmicos do curso de Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES.

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