O Primeiro e Último Carnaval

Por Paulo Melo | 11/08/2010 | Crônicas

Dedé sempre foi um homem conservador, totalmente avesso a mudanças, tanto que aos 59 anos de idade ainda planejava coisas que eram rotina para jovens de 18 anos, como aprender informática, arranjar uma namorada, aprender a dirigir ou comprar sua primeira calça jeans. Morador do bairro do Pelourinho na cidade de Salvador vivia sua rotina de ir e vir caminhando de casa ao trabalho, por questão de economia, que ficava numa repartição pública no bairro do Comércio. Homem forte tanto no físico como nas convicções, que, aliás, eram as mesmas de 40 anos atrás, Dedé vestia rotineiramente a mesma roupa durante 15 dias e quando os colegas de trabalho chamavam sua atenção ele argumentava que não era manequim de loja para mudar de roupa todo dia, imagine-se então um sujeito que andava oito quilômetros todo dia com a mesma roupa por quinze dias, o cheiro por certo não era dos mais agradáveis. O que ele gostava mesmo era de leitura, verdadeiro amante dos livros, até parecia que ele vivia através das páginas dos seus livros, pois possuía em sua casa uma biblioteca particular com mais de dez mil exemplares de livros técnicos e científicos que comprava nos sebos na Rua da Ajuda. Dedé morava sozinho e estava fazendo há alguns anos a ampliação de sua casa, para acomodar melhor os livros, literalmente com as próprias mãos visto que todos finais de semana e feriados trabalhava como pedreiro na dita ampliação.
O seu conhecimento geral era impressionante sabia de tudo e mais alguma coisa referente ao passado, em qualquer discussão ele sempre era chamado para dirimir dúvidas servindo sempre como juiz da questão. Dedé era realmente um sujeito culto e arcaico, até mesmo em questões do amor, pois quando uma colega de trabalho, por sinal viúva, que sempre tirava suas dúvidas com ele, impressionada com a sua vasta cultura procurou se aproximar o desfecho não foi dos melhores, embora os colegas maldosos dissessem que ela estava impressionada mesmo era com o dinheiro que Dedé guardava dentro do colchão, sim porque ele não confiava em bancos nem usava cheques, cartões de crédito então nem pensar. Quando no segundo dia do pretenso namoro ele propôs casamento à impressionada viúva esta ficou muito assustada e nunca mais lhe dirigiu a palavra, dando fim ao primeiro e único romance que se tem notícia da vida de nosso personagem. Quanto ao carnaval nosso amigo sofria bastante, pois morava em pleno circuito da folia e detestava os festejos, crítico mordaz do desperdício, achava um absurdo perder tantos dias de trabalho com festas e bebidas.
Sim, para ele carnaval era coisa de gente sem moral, para bêbados e vagabundos. Dedé também era tido como abstêmio, mais por economia do que por gosto já que nas festas de aniversários dos colegas sempre ficava "tomando conta" do bar, mas o carnaval era seu suplício não conseguia dormir e o que era pior não conseguia fazer o que mais gostava na vida que era ler e reler os seus livros, mas todos elogiavam o tríduo momesco, os colegas contavam as farras, a alegria, as músicas, os blocos e principalmente as mulheres que conquistaram o mês após o carnaval era somente de comentários sobre a festa, pois para o baiano o ano começa depois do carnaval. Nessa época do ano Dedé era esquecido, deixado de lado, pois ninguém iria procurá-lo para tirar dúvidas sobre o carnaval que ele tanto detestava e fazia questão de demonstrar, pois era o único que comparecia à repartição para trabalhar na quarta-feira de cinzas. No rádio e na televisão tudo era carnaval, a cidade e o povo soteropolitano vivem intensamente o carnaval.
Dedé se sentia excluído, não tinha para onde fugir do carnaval, não tinha parentes e muito menos abandonaria seus livros, mesmo que por poucos dias. Ano após ano de tanto ouvir falar das maravilhas do carnaval e de sentir o próprio carnaval trancado em sua casa, por incrível que pareça Dedé foi contagiado pela emoção de curtir o seu primeiro carnaval, passou o ano inteiro combinando com seus botões os preparativos para sua primeira vez, em silêncio guardou seu plano secreto até a última hora, não comentou com ninguém, seu preparativo intenso para a folia foi à compra de um sapato branco confortável em uma loja da Baixa dos Sapateiros, a mesma que de três em três anos comprava seu sapato de sair, feito esse longo preparo Dedé se considerava pronto para a festança, agora era só aguardar o primeiro bloco passar e cair na gandaia. Atrás do bloco é claro. Sim, porque apesar de toda a euforia não era um perdulário para gastar dinheiro pagando para sair em bloco. Aproveitaria a música de graça e ficaria incólume no meio do povão.
Tudo pronto, sapatos brancos nos pés, uma das mudas de roupa quinzenais que usava para trabalhar, vinte reais no bolso e uma vontade incomensurável de participar da maior festa de rua do mundo. Ao longe, Dedé já ouvia os acordes do primeiro bloco, o som vai se aproximando, ele fica atrás da porta de sua casa, como planejado, esperando o bloco passar e então desvirginar-se para o carnaval, seu coração bate acelerado o suor escorre em seu rosto, na sua roupa surrada, finalmente não seria mais um excluído na época do carnaval teria o que contar para os colegas, quanta emoção, mas agora é só abrir a porta e ser feliz.
Pronto, passou o bloco Dedé sai de casa rápido, tranca a porta e vai atrás da musica, mas coitado no primeiro passo atrás do bloco, desajeitado com seu novo sapato branco, pisou no pé de um folião desavisado que incontinente deu-lhe um tremendo tapa na orelha, Dedé fica estatelado incrédulo, não ouve mais a musica somente um zunido dentro da sua cabeça, recobra-se do susto e mais rápido do que saiu de casa volta para esta, tranca por dentro, guarda os sapatos, procura aquele último livro que comprou no sebo e pragueja contra o desperdício de dinheiro, os dias sem trabalho, os vagabundos, os bêbados e o barulho do tão detestado carnaval, aliás, o seu primeiro e último carnaval.