O Preto Velho na Umbanda

Por João Eudes Gondim | 08/03/2017 | Adm

O Preto Velho na Umbanda
INTRODUÇÃO
A Umbanda se sustenta em um tripé composto de um lado pelos
Caboclos, do outro pelos Pretos Velhos e no outro lado pelas Crianças.
Para simplificar a leitura, e permanecermos politicamente corretos,
lembramos que há manifestação tanto de Caboclos quanto de Caboclas, de
Pretos Velhos quanto de Pretas Velhas e crianças de ambos os sexos. Para
simplificar de agora em diante só falaremos Preto Velho. Há também os
Guardiões ou Exus e as Pombas Giras, que também manifestam na
Umbanda, porém estes fogem do escopo destas linhas.1
A linha dos Pretos Velhos também é conhecida como linha dos
Anciões ou linha das Almas. Representam a humildade, a serenidade e a
sabedoria; agregam os arquétipos do vovô e da vovó, anciões
extremamente pacientes, conselheiros, humilíssimos e sempre com uma
palavra ou conselho amigo. Por representarem o negro escravo, sofrido,
espezinhado, sem nenhum direito, passam aos consulentes uma segurança e
respeito imensos, fazendo com que a grande maioria se sinta bastante
confortável junto deles. Com sua postura subalterna, pois na grande
maioria atendem os consulentes sentados, encurvados e de cabeça baixa
fazem com que o consulente se sinta bastante confortável para abrir o seu
coração; não é incomum levarem os consulentes às lagrimas.
A vestimenta pela qual se manifestam forma um dos arquétipos2 da
Umbanda. O arquétipo do Preto Velho é: andar encurvado, normalmente
apoiado em uma bengala, fumar cachimbo, tomar café sem açúcar durante
as consultas, usar um raminho de arruda, guiné ou outra planta para benzer
os filhos durante as consultas, usar um palavreado que nos remete ao tempo
da escravidão, porém com ensinamentos atuais. Há exceções, mas no geral,
1 Quem tiver interesse em saber mais sobre os Guardiões ou Exus, tem um artigo de nossa lavra, em:
www.webartigos.com/artigos/reflexoes-sobre-exus-e-guardioes/147101
2 Arquétipo: Tipo primitivo ou ideal; original que serve de modelo. O modelo, o exemplar ou o original de uma série
qualquer. O que serve de modelo ou exemplo em estudos comparativos; protótipo.Símbolo ou motivo que recorre
periodicamente na literatura, na música e nas artes em geral.Plano, estrutura fundamental ou tipo ancestral hipotético
do qual se supõe que outras formas derivaram, e que em geral carece de características especializadas. Em:
http://michaelis.uol.com.br/busca?id=3qpA, pesquisado dia 20/01/2017.
2
este é o arquétipo do Preto Velho. Estas entidades (e todas aquelas que se
manifestam na Umbanda) são espíritos encarnantes, ou seja, já encarnaram
diversas vezes e ainda irão reencarnar outras tantas vezes. Isto é, nem todo
Guia que se manifesta como Preto Velho é preto ou velho ou já foi
escravo. Os Guias de Umbanda, ou os espíritos que assim se manifestam, o
fazem por terem merecimento e vontade de trabalhar na Umbanda, e por
terem alcançado o grau de desenvolvimento espiritual e moral para
poderem trabalhar dentro deste arquétipo.
A ESCRAVIDÃO
Para falar sobre Preto Velho na Umbanda, necessário se faz falar
também sobre a escravidão; há uma ligação visceral entre os dois tópicos.
No entanto, aqui vale algumas observações. Iniciaremos com a etimologia
da palavra escravo: Do Latim SCLAVUS e do Grego SKLABOS “pessoa
que é propriedade de outra.3
O que quer dizer que escravidão não é somente o branco
escravizando o negro, mas sim o mais forte escravizando o mais fraco, o
vencedor escravizando o vencido, o homem escravizando a mulher,
independentemente da cor ou origem. O ser escravizado passa a ser
propriedade de seu amo ou senhor e deveria (ou deve, pois ainda há
escravidão mundo afora), obedecer e fazer todo e qualquer tipo de trabalho
ou desvario solicitado pelo amo, sem reclamar e sem ter uma remuneração
adequada para tal. No caso específico do Brasil, ainda havia as
barbaridades inumanas impostas aos negros mais rebeldes. No entanto, a
realidade não era sempre assim. Os tão temidos senhores de engenho e
grandes fazendeiros, possuidores de muitos escravos (e conseqüentemente
mais violentos, pois tinham vários feitores especificamente para "domar" os
negros mais rebeldes) eram a minoria. No geral, o dono de escravo era uma
pessoa com um pedaço exíguo de terra, possuidor de um a três escravos,
que iam para o roçado juntos, trabalhavam, de sol a sol sentavam debaixo
de uma árvore para o almoço e no final do dia voltavam juntos para a "sede
da fazenda".
3 Em: https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chrome-instant&ion=1&espv=2&ie=UTF-
8#q=etimologia%20da%20palarva%20escravo. Pesquisado em 21/01/2017.
3
Nem toda escravidão seguiu ou segue o padrão da escravidão do
negro, principalmente aquela praticada no Brasil e no sul dos Estados
Unidos da América. Pois além da escravidão, havia a discriminação pela
cor, pela cultura e a crença na inferioridade da raça.
A escravidão sempre existiu sob uma forma ou outra; os primeiros
registros sobre esta barbárie estão no Código de Hamurabi escrito pelo rei
Hamurabi da Babilônia datado de 1.772 a.C. Neste código já se fazia
menção a escravos, o seu comércio e dava as normas para sua posse e
orientação para a punição quando necessária.4
No Oriente Médio e Índia havia dois tipos cruéis de escravidão, as
odaliscas pertencentes aos haréns dos Xeiques e dos Sultões. As odaliscas
poderiam ou não ser usadas sexualmente, no entanto ficavam presas e à
disposição do dono do harém. Pouco trabalho e muita ociosidade e fofocas,
gerando todo tipo de problema de relacionamento. Os eunucos também
ficavam presos nos haréns e eram verdadeiros "cães de guarda" destes
locais. Para não haver nenhum risco de assédio às odaliscas os eunucos
eram castrados, o que gerava muita insatisfação e todo tipo de desavença e
fofocas. Alguns eram os leva-e-traz do dono do harém.
Desde o século VIII, já havia notícias de escravidão negra na própria
África, onde os reis africanos prendiam e escravizavam ou vendiam seus
prisioneiros aos árabes. Do século XV ao XIX houve a escravidão negra
(principalmente no Brasil e nos Estados Unidos da América), no entanto os
brancos não iam à África capturar os negros, os próprios negros
capturavam seus inimigos de outras tribos e já os tinha prontos para o
embarque quando os navios negreiros chegavam.
Na história do Brasil, há vários casos de negros escravizando negros,
negras escravizando negras, inclusive para serviços escusos. O mais
famoso destes negros foi José Francisco dos Santos também conhecido
como Zé Alfaiate. Como já tinha adquirido certa independência financeira
com o seu ofício de alfaiate, logo percebeu o filão que seria traficar os seus
irmãos de cor, e assim o fez, amealhando uma boa fortuna.
Outro negro com a história contraditória foi Zumbi dos Palmares.
Hoje é considerado um herói negro lutando pelo fim da escravidão, mas na
4 https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3digo_de_Hamurabi, visto em 24/01/2017.
4
realidade já foi considerado como sendo um déspota sanguinário. Recebia e
albergava os negros fugidos das fazendas e engenhos em seus domínios. Os
negros albergados em sua cidadela deveriam obedecer às normas e leis
impostas por Zumbi. Aqueles que revoltavam contra o outro tipo de
escravidão imposta por Zumbi fugiam; se capturados eram tratados como
escravos sem dispensar as punições exatamente como faziam os senhores
brancos.
O PRETO VELHO
A escravidão no Brasil teoricamente acabou em 13 de Maio de 1.888
com a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Izabel. Segundo o IBGE5 a
expectativa de vida para os brasileiros era de 33,7 anos em 1.900 e 36,5
anos em 1.930. O escravo negro àquela época era considerado um ser de
segunda categoria, tinha uma alimentação precária, trabalhava em excesso
e tinha pouco ou nenhum acesso à medicina. Não há dados estatísticos
específicos para a idade média do negro escravo, mas a idade média destes
trabalhadores com certeza era menor que àquela dos brancos.
Provavelmente foram poucos os negros que viveram mais de 60 anos.
Destes poucos que viveram até esta idade ou mais, quantos tinham o
desenvolvimento espiritual para ser considerado um Preto Velho, dentro do
arquétipo da Umbanda? A conta começa a não fechar...
Segundo o censo de 2010 havia 407.332 terreiros de Umbanda ativos
no Brasil.6 Considerando que o Preto Velho é um dos pilares da Umbanda,
cada dia de trabalho no Terreiro de Umbanda na vibração de Preto Velho
há vários Guias trabalhando concomitantemente. Fazendo um cálculo
simples, pode-se chegar à casa do milhão de Pretos Velhos trabalhando em
uma mesma noite neste imenso Brasil.
Pensando assim, a equação não fecha. De onde saíram tantos Pretos
Velhos para estarem presentes em todos estes Terreiros, se tão poucos
viveram até a terceira idade? Outro fato que gera dúvida, os Pretos Velhos
de nome mais comum, normalmente se manifestam na maioria dos
Terreiros de Umbanda. De onde saíram tantos Pais Joaquim, Pais João,
5 Em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv42597.pdf, pesquisado em 20/01/2017.
6 FONTE: IBGE, Censo 2010, Tabela 2094
(http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/listabl.asp?z=cd&o=10&i=P&c=2094). Visto em 23/01/17.
5
etc.? Na realidade existiu um Pai Joaquim de Angola, que se tornou o
hierarca da falange, ou o dono do nome e os outros são espíritos que
coadunam com seus pensamentos e estão no mesmo grau de
desenvolvimento espiritual e moral que o hierarca e concordam em
trabalhar como se Pai Joaquim de Angola fossem. Seria o mesmo que uma
sala de aula com milhares de alunos, todos mais ou menos com o mesmo
grau de conhecimento e intelectualidade, mas respeitando suas diferenças
individuais. Assim todos manifestam como Pai Joaquim de Angola, mas
com pequenas diferenças de personalidade.
Essas diferenças são aumentadas ou reduzidas de acordo com cada
médium ou cavalo que irá dar passividade ao espírito que naquele momento
assumirá a personalidade de Pai Joaquim de Angola. Desta forma não há
limites para a quantidade de espíritos manifestando sob esta denominação.
Assim, fica fácil entender que nem todos os espíritos que se manifestam
sob o arquétipo de Preto Velho é preto, é velho ou já foi escravo. Há vários
espíritos de escol, branquinhos de olhos azuis, que se manifestam nos
terreiros de Umbanda sob este arquétipo. Destarte, fica evidente outro fato
importantíssimo dentro da Umbanda: a despersonalização do espírito
comunicante. O espírito assume o nome do hierarca da falange,
literalmente apagando momentaneamente o seu nome e origem. No
Terreiro é apenas, por exemplo, o Preto Velho Pai Joaquim de Angola.
Ramatís diz o seguinte a este respeito:7
"Reportando-nos à sabedoria da Divina Luz, afirmamos que nas hostes
umbandistas do Astral superior, espíritos 'famosos', na envergadura de
Joana de Angelis, Bezerra de Menezes, Sócrates, Pitágoras, Platão, Saint
Germain, Zoroastro, entre tantos outros da Grande Fraternidade
Universal, enfeixam-se humildemente 'atrás' de mais uma forma ilusória
que os iguala, com nomes simbólicos de pretos velhos ou caboclos.
Despersonalizam assim, as referências mundanas dos inseguros humanos
que apegados ao ego inferior, personificam os espíritos em encarnações
passadas..."
Pela afirmação acima se vê que trabalhar como Preto Velho (ou
qualquer outro arquétipo da Umbanda) é uma questão de vontade e
merecimento. Com a plasticidade característica do perispírito, os espíritos
7 A Missão da Umbanda, Ramatís, página 38.
6
que já alcançaram certo desenvolvimento moral, podem assumir a
aparência que desejarem (Preto Velho, Caboclo e até Criança) e assim o
fazem dentro dos arquétipos típicos da Umbanda, assumindo o nome do
hierarca com o qual mais se identificam.
LINHAS DE ATUAÇÃO
Aqui, introduziremos a idéia de Orixá, mas exclusivamente para a
apresentação das inúmeras variáveis envolvidas na manifestação de um
Guia no Terreiro de Umbanda. Não nos alongaremos no estudo dos Orixás
por não ser este o objetivo deste opúsculo. Os Guias de Umbanda, quando
se manifestam mesmo usando o nome do hierarca da falange, também estão
sob a orientação de um Orixá. O número de Orixás varia de acordo com a
orientação do Terreiro de Umbanda, ou da religião que se analisa --
variando de 7 na maioria dos Terreiros de Umbanda a 380 em algumas
regiões / religiões da África.
No caso em análise, consideraremos apenas os 7 Orixás seguindo as
orientações de Ramatís, vejamos o que ele nós fala sobre o tema:8
"Essa magia dos Orixás, movimento e vibração que rege a vida em
todas as formas de manifestação, é oriunda da Consciência Cósmica, a
mente do Pai, que se sobrepõe a todos os demais espíritos, co-criadores,
pois o Criador é uno. Os Orixás são essas forças sutis que podemos definir
grosseiramente, por falta de correspondência no vocabulário terreno,
como princípios espirituais ou energias não encarnantes, e que não se
manifestam mediunicamente. São agentes e veículos da magia universal,
existentes nas sete grandes faixas vibratórias do cosmo."
"Para vosso entendimento, podemos dizer que estes Orixás dão
sustentação à vida e ao equilíbrio planetário, regulamentando as energias
ou forças telúricas, ígneas, eólicas e hídricas, presentes no plano astral em
formas sutis e materializadas no plano físico em relação com os quatro
elementos que são a terra, o fogo, o ar e a água. São em número de sete
vibrações com freqüências próprias: Oxalá, Yemanjá, Yori, Xangô,
Ogum, Oxossi e Yorimá."
8 Samadhi, Ramatís, página 118 .
7
Na manifestação mediúnica há a participação de pelo menos três
personalidades e suas energias: o médium, o Guia comunicante e o
consulente. Para que a comunicação seja a mais pura possível e isenta de
ruídos, o médium precisa estar "consciente" de suas responsabilidades.
Dominar este emaranhado de energias requer treinamento e estudo por
parte do médium para que ele possa transmitir a mensagem o mais próximo
possível daquela que o Guia está comunicando.
Na consulta com os Pretos Velhos o consulente se sente na maioria
das vezes acolhido; o Guia o recebe de uma forma que o faz sentir-se bem e
seguro. Os Pretos Velhos transmitem uma fé inabalável, segurança e a
certeza de que todos os problemas serão resolvidos na medida em que se
fizer necessária a solução para eles. Pois, por maior que seja o problema ou
a dor do consulente, o negro que "já foi escravo" já passou por situações
mais penosas e difíceis, tendo assim sempre um conselho ou orientação ao
consulente.
CONCLUSÃO
A Umbanda se caracteriza por ser uma religião não personalista.
Enquanto no Kardecismo o nome do Guia comunicante impõe o maior
respeito, e conseqüentemente dúvidas se o médium A ou B está capacitado
moralmente para receber mensagens daquele espírito de nome conhecido.
Na Umbanda os espíritos de escol ou não se escondem debaixo de nomes
singelos como Vó Maria Conga, Pai Tomé, Caboclo Rompe Mato,
Marianinha, Joãozinho... O que menos importa é o nome pelo qual são
chamados, mas sim o bem que estes espíritos fazem sob estes nomes
singelos.
A Umbanda é uma religião ritualística, utiliza elementos magísticos,
isto é, pega elementos corriqueiros e os transforma em instrumentos
mágicos: a fumaça do cachimbo, o café amargo, as folhas da arruda, do
guiné, etc. Um simples estalar de dedos gera uma energia capaz de dissipar
energias negativas que estão a perturbar os consulentes. Espíritos de luz,
ex-magos brancos, doutores das ciências da terra e do espaço transvestemse
de Preto Velho, Caboclo, Criança ou mesmo Exu, exclusivamente para
8
fazer a caridade. Como disse o Caboclo das Sete Encruzilhadas, em sua
primeira manifestação pública em 15 de Novembro de 1.908:
"A Umbanda é a manifestação do espírito para a prática da caridade.
Para aqueles que sabem menos ensinaremos, com aqueles que sabem mais,
aprenderemos."
Isso é a Umbanda, simples assim...
BIBLIOGRAFIA
- http://michaelis.uol.com.br/busca?id=3qpA.
- https://www.google.com.br/webhp?sourceid=chromeinstant&
ion=1&espv=2&ie=UTF-8#q=etimologia%20da%20palarva%20escravo.
- https://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3digo_de_Hamurabi.
- Em: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv42597.pdf.
- FONTE: IBGE, Censo 2010, Tabela 2094
(http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/tabela/listabl.asp?z=cd&o=10&i=P&c=2094).
- Peixoto, Norberto. Pelo espírito Ramatís. A Missão da Umbanda. Limeira, São Paulo,
Editora do Conhecimento, 2006.
- ---------. Pelo espírito Ramatís. Samadhi. 2ª ed. Limeira, São Paulo, Editora do
Conhecimento, 2005
Goiânia, 12 de Fevereiro de 2017
João Eudes Gondim