O prazer como fundamento da vida passional - Freud
Por RENATO DOS SANTOS | 10/05/2011 | PsicologiaA originalidade de Freud na consideração do prazer como fundamento da vida passional.
Renato dos Santos
Os homens são animais, cujo comportamento deve ser explicado em termos das novas ciências; o conhecimento baseia-se na sensação e é modificado depois, segundo princípios mecânicos. Mas, o que é a sensação? Quais são estes princípios mecânicos?
Hobbes (1979), apoiado em Freud, conclui que para entender a natureza humana só é possível com a fragmentação mecânica dos elementos que irão compor a paixão e a compreensão da sociedade civil. Se a engrenagem de um relógio faz com que seja possível seu funcionamento, então, segundo Hobbes, existe uma engrenagem que irá compor o funcionamento das paixões. Portanto, as paixões são o desencadear de um mecanismo humano que envolve desejo, prazer, imaginação e sensação. Todos estes proporcionam movimentos voluntários que direcionam o homem, como ser, a empreender sua interação com o ambiente e os semelhantes.
A sensação é a primeira engrenagem na mecânica do desejo. Ela é estimulada pelo corpo exterior que captado pelos sentidos humanos (tato, paladar, olfato visão e audição) leva ao cérebro e coração uma impressão que resulta num esforço em definir ou transmitir o que chamamos de sensação. A partir desta engrenagem surge outra definida como imaginação, que se encontra nos homens como um efeito qualitativo do movimento. Para Hobbes (1979), na ordem cronológica, a imaginação sucede à sensação. Em sua obra, LEVIATÃ, ele afirma que há nos animais dois tipos de movimentos que lhes são peculiares. Um deles chama-se "movimento vital" que são a circulação do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção, etc. O outro chama-se "movimento voluntário": como andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginada pela mente. Sendo assim, começa a explicitar o sentido em que a imaginação pode ser considerada a primeira origem interna dos movimentos voluntários, articulando, assim, a potência do movimento à potência cognitiva ou imaginativa. Ele deixa claro que a imaginação nada mais seria do que um resíduo da sensação, já que o objeto-causa da sensação não precisa estar presente. A imaginação diz respeito apenas àquelas coisas que foram anteriormente percebidas pela sensação. Falar e andar, exigem sempre um pensamento anterior (uma sensação como matéria-prima), memorizada, que permite projetar o movimento, antecipá-lo em imagem. Muita memória, ou a memória de muitas coisas, chama-se experiência. A experiência permite ao homem formatar mentalmente os desejos por objetos que não estão presentes. Exemplificando, podemos destacar o seguinte:
Exemplo 1: "imagine, um limão suculento, respingado de gotas de água em sua casca verde escura, você o põe sobre a mesa e o divide com um objeto cortante. Toma para si uma das partes e degusta pressionado-a ao ar em direção a sua boca sentindo o gosto dosado pelas pequenas gotas que lhe caem em contato com as papilas gustativas." Se você salivou, demonstra que conhece o fruto e sua experiência relacionou a imaginação à sensação trazendo assim ao mecanismo do corpo o prazer ou desprazer pelo objeto conhecido.
Exemplo 2: "imagine, uma pupunha suculenta que acaba de ser retirada da árvore. Você a divide em duas partes com um objeto cortante e degusta uma das partes pressionando-a ao ar em direção a sua boca, sentindo o gosto dosado pelas pequenas gotas que lhe caem em contato com as papilas gustativas." Se você nunca foi ao estado do Pará, talvez não conheça o fruto e não tenha idéia do sabor, logo, não relaciona imaginação à sensação e por fim não haverá resposta de prazer ou desprazer pelo objeto desconhecido.
Entendendo a imaginação também como um movimento interno, é preciso destacar que Hobbes define imaginação e a memória como sendo uma e a mesma coisa, que, por razões várias, tem nomes diferentes.
O mundo a nossa volta proporciona estímulos que irão interferir diretamente em nossos movimentos vitais. Todo estímulo considerado benéfico ao movimento vital produz nos órgãos dos sentidos uma sensação que pode ser chamada de deleite ou prazer. Por outro lado, fica evidente que todo estímulo que provoca o enfraquecimento do movimento vital, provoca sensação de desprazer ou dor. Nessa perspectiva, Hobbes desloca o amor para a condição de uma paixão positiva derivada de um desejo bem sucedido por um objeto causador de deleite. Assim, o desejo e o amor se avizinham mediados pelo prazer, apenas distinguindo-se pela ausência do objeto, no desejo e pela presença, no amor. Ocorre o mesmo para a aversão e o ódio, mediados pelo desprazer.
O desejo enquanto movimento, portanto, pode ser conceituado como um dado primário de acionamento da vida passional e da máquina mental, o que só foi possível porque seu mecanicismo impôs-lhe a noção de que um movimento reativo em face de um estímulo, sendo desejo ou aversão, não pode ser evitado ou abandonado no campo de forças que é a natureza. Assim, prazer e desprazer, bem como o amor e o ódio, surgem efetivamente como resultado desse esforço reativo, quando bem ou mal sucedido, respectivamente. Definimos, então, a aversão como recusa dos objetos hostis e o desejo como a busca de objetos úteis, os quais são filtrados pela necessidade de conservação da vida ou dos movimentos vitais.
As idéias de prazer e dor são as causas de nossas ações. Principalmente as que visam promover a fuga da dor. Dessa forma, o par prazer e desprazer colocam-se como fundamental para o funcionamento dos pensamentos e ações, com a diferença de que o despra¬zer ou dor predomina em relação ao pra¬zer ou deleite. Contudo, a importância é sempre atribuída ao par, já que possibilitam, pela memória e pela ima¬ginação, evitar experiências e objetos causadores de desprazer, propor¬cionando prazer adicional a conservação do organismo. Estas ações consideradas pelas faculdades mentais, como imaginação, memória, juízo, são consideradas, por Condillac (1993), inatas. Ele afirma que a mente é capaz de conhecer, porém, em relação a essa operação, a capacidade é inata, mas o conhecimento é adquirido. Afirma ainda que, não há nenhum conteúdo ou fa¬culdade do espírito que não seja constituído a partir de uma sensa¬ção, isto é, que não tenha sua origem nela. Ele acredita que os juízos se mesclam a todas as nossas sensações; e que nos é necessário aprender a tocar, a ver, a ouvir, a sentir, pois assim, as faculdades da alma têm sua origem na própria sen¬sação, não sendo inatas.
O desejo, então, baseia-se como ação do prazer, que prefigura a apropriação de tudo o que é necessário para a conservação da vida e apropriação de conhecimentos. No entanto, a aversão desempenhará papel complementar, já que o desprazer que a acompanha decorre da ameaça à conservação da vida. Portanto, a natureza humana relativa ao hedonismo - que considera o prazer como a essência da felicidade ou que exalta o prazer como suprema norma moral, considera o prazer e a dor como os únicos critérios para a avaliação de uma dada ação. As ações de prazer ou desprazer, inerentes a natureza humana, recebem a incumbência de gerar a maquinaria mental e a fazê-la funcionar num percurso que vai numa solução de continuidade de dado elementar da impressão sensível às mais complexas operações do espírito.
A proposta freudiana considerava os seres humanos como objetos naturais submetidos a causas e leis naturais. Nessa perspectiva é que ele enfrentou o desafio da articulação entre corpo e mente, apoiado na ciência natural e na teoria das paixões, ambas prevalecentes em sua época. Baseou seu estudo no pressuposto da lei da inércia, que diferencia atividade de repouso, o que demandou de início um enfoque de natureza quantitativa (ciência natural), recebendo uma abordagem complementar qualitativa (teoria das paixões), que acompanhou suas considerações acerca do fenômeno da consciência. Assim, aponta para a peculiaridade da noção de prazer considerando que o ser humano é dotado de um sistema nervoso cuja arquitetura seria organizada em torno da função de manter a variação de estímulos recebidos igual ou próxima de zero.
Inicialmente, Freud, considerava o sistema nervoso apenas como um conjunto de neurônios, porém, a diversidade de fontes de excitação ou estímulos acabou sendo a responsável pela constituição plena do que ele chamou nessa obra de aparelho neurológico, bem como de suas funções, como percepção, memória e consciência. Freud não faz referência somente aos estímulos externos. Ele afirma que o sistema nervoso recebe estímulos do próprio elemento corporal, internamente, da ordem da fome, respiração e sexualidade, operando de uma maneira que não permite esquiva ou eliminação pela ação reflexo-motora.
Por isso o sistema nervoso passa a promover o armazenamento de parte desse estímulo, e assim administrá-lo de modo a ser utilizado para provocar alterações que atendam às suas demandas;
A partir daí, a atuação do princípio do prazer passa a ser a eliminação do excesso excitação, atendendo à exigência de impedir que qualquer estímulo externo danifique o sistema enquanto conserva uma pequena porção dele, mantendo seu nível constante.
Considerações finais
Conclui-se, portanto, em Freud, que o ponto de vista quantitativo ou ciência natural não se desvincula do qualitativo ou teoria das paixões, que leva em conta a constituição das funções mentais ou psíquicas, das motivações das nossas ações, dos motivos para preferir ou ordenar uma cadeia de idéias ou ação a outra. Sem o fator qualitativo nossos pensamentos se movimentariam desgovernados sem direção ou objetivo. Identifica-se, na particularidade da noção de prazer concebido por Freud, a possibilidade de pensar o desprazer, e mesmo a dor, como fatores que põem tanto corpo como a mente em movimento, posto que estimulam o sistema ao cumprimento de sua inclinação primária já que a dor resulta de um aumento quantitativo excessivo. Portanto, prazer e desprazer estariam sempre referidos à ocupação do sistema com enfoque das paixões na constituição mental. Sendo assim, sua teoria demonstra a clara noção de que o prazer estaria relacionado à descarga da excitação ou das quantidades excessivas.
Referências bibliográficas:
BOCCA, Francisco Verardi. 2010: Paixões e Psicanálise: Dimensões modernas da natureza humana. ? Vitória-ES: UFES, Núcleo de Educação aberta e a Distância.
CONDILLAC, E. B. 1993: Tratado das sensações. Campinas, Ed. Unicamp.
HOBBES, T. 1979: Leviathan. S. P., Abril Cultural.