O PIJAMA
Por Jorge André Irion jobim | 25/04/2009 | DireitoVou relatar um caso no qual trabalhei como advogado que me chamou a atenção por suas peculiaridades e me fez pensar a respeito de algumas falhas e preconceitos que nós, às vezes sem percebermos, acabamos reproduzindo e aplicando em nossas relações diárias. Naturalmente, vou omitir nomes e a comarca em que aconteceu, evitando assim que alguém possa ser identificado.
Lembro-me que um empresário que é meu cliente eventual, procurou-me afirmando que dois de seus empregados haviam sido presos em flagrante por um furto que ele não acreditava que eles tivessem praticado.
O meu primeiro passo foi ir até o presídio para tomar um primeiro contato com os ditos “criminosos”, saber exatamente o que havia ocorrido e tentar construir a minha tese de defesa.
Ao conversar com eles no parlatório, perguntei-lhes porque haviam sido presos e surpreendentemente a resposta que recebi foi a de que eles não sabiam o motivo. É claro que existe aquela máxima de que no presídio “todos são inocentes”. Naquele caso, porém, até pela minha experiência como como músico na vida noturna durante mais de trinta anos e meus longos anos como advogado, percebi que eles estavam falando a verdade. O engraçado é que eles estavam resignados com uma situação que normalmente revolta quem está submetido a ela. Eles pareciam conformados e pareciam acreditar que pelo só fato de serem pretos, pobres e analfabetos, já estavam condenados previamente, podendo o estado através de seus agentes, retirá-los de suas casas na calada da noite e tolher-lhes a liberdade, jogando-os na prisão sem que eles tivessem direito de se revoltar com isso.
Fiquei bastante chocado ao me deparar com tal situação. Fui até o fórum e lá tive meu primeiro contato com os fatos. Fiquei sabendo que na verdade, alguns policiais-militares estavam perseguindo os autores de um furto e na perseguição, os verdadeiros ladrões acabaram deixando para trás parte do que haviam furtado justamente nas proximidades do casebre em que meus clientes moravam. Os policiais, ao passarem por perto e verem os objetos no chão, escutaram um rádio ligado dentro da residência e logo imaginaram que os criminosos haviam se refugiado lá dentro. Imediatamente invadiram o local e as pessoas que ali dormiam acabaram sendo levantadas da cama e levadas para delegacia sob a acusação de terem cometido o crime em questão. Não adiantou explicarem que o rádio ligado era pelo fato de não terem relógio e, como precisavam levantar cedo para trabalhar, acabavam controlando as horas pelo rádio.
Imediatamente fiz o pedido de liberdade provisória para os rapazes, pleito que foi atendido pelo magistrado da causa.
Após a fase da defesa prévia, chegou o dia do interrogatório dos réus e posteriormente a audiência de instrução e julgamento.
Durante a referida audiência, saltou aos meus olhos de forma tão cristalina a inocência dos réus, que senti que não poderia existir outro desfecho para o processo, que não o de uma sentença absolutória. À medida que ia transcorrendo a audiência, através dos depoimentos das testemunhas arroladas, iam sendo derrubadas as argumentações dos policiais-militares que acabaram dando sustentação ao oferecimento da denúncia. Eu olhava para aqueles três réus sentados em um lado, silentes, pessoas simples que, por morarem em um lugar de extrema pobreza e terem pouca instrução, acabaram sendo envolvidos em um evento criminoso simplesmente pelo fato de habitarem em casebres sem as mínimas condições de vida digna e para as quais, as próprias autoridades entendem não ser cabível a princípio constitucional de que todos são inocentes até prova em contrário. Eu ia sentindo pena do castigo que já havia sido infligido aos mesmos sem que para tanto, tivesse havido sequer uma sentença condenatória.
O castigo pela pobreza, pela falta perspectivas, pela ausência de cultura, começou no momento em que os Réus foram incriminados pelo fato de residirem próximo do local em que os verdadeiros autores do fato, em fuga, acabaram deixando parte do produto do furto; castigo por não terem a coragem de se insurgir contra a invasão de suas residências na calada da noite, numa clara violação de domicílio; castigo por terem de responder a um processo criminal, que por si só já serve de sanção para o tipo de delito em questão, não precisando de outra pena.
Neste ponto devemos buscar os ensinamentos dos doutrinadores e lembrarmos o que com inteligência e propriedade, ensina Weber Martins Batista: “O processo existe como garantia do acusado, para evitar que o mesmo seja condenado por crime que não cometeu, ou que seja punido por crime que cometeu, mais severamente do que merece. Ocorre que não é menor sua expressão como sofrimento imposto ao mesmo, seja ele culpado ou inocente. “Desgraçadamente - brada Carnelutti - o castigo não começa com a condenação, mas, muito antes, com o debate, a instrução, com os atos preliminares. Não se pode castigar sem julgar, nem julgar sem castigar”.” (Juizado Especial Criminal, e Suspensão Condicional de Processo Penal, ed. Forense, 1996, pág. 381).
Veja-se que os doutrinadores se referem ao processo como um castigo aplicado até mesmo às pessoas que sejam culpadas. Naturalmente, ele é potencializado quando se trata de pessoas inocentes, sobre cujas cabeças são armadas as guilhotinas da justiça penal, e elas acabam tendo que esperar na incerteza da decisão final sobre seus destinos.
Voltando ao caso, os depoimentos dos policiais-militares que haviam sido arrolados, pareciam cópias um do outro, adredemente preparadas para legitimar uma ação precipitada, que eles mesmos já pareciam ter notado que estava eivada de ilegalidade. O argumento central por eles utilizados para inculparem os réus, seria o fato de que os mesmos estaria dormindo vestidos com roupas do dia-a-dia e não trajando pijamas. Foi ridícula tal alegação, demonstrando um total desconhecimento destas pessoas sobre a maior parcela da população brasileira, que sequer tem dinheiro para comprar alimentos ou uma roupa decente e naturalmente não vai se preocupar em comprar roupas de dormir. Pessoas pobres dormem sim com suas roupas comuns, principalmente em noites frias conforme ficou provado nos autos, pois muitas vezes, esta é a única roupa que possuem. Não podemos avaliar suas condutas sob esta ótica de classe média burguesa, até porque os policiais, pelas suas constantes reclamações que ouço na imprensa a respeito de seus parcos vencimentos, me levam a acreditar que não estão enquadrados dentro da classe a que me referi. Creio que eles na verdade, no cumprimento da ordem jurídica imposta pelas elites política e econômica, deveriam ter um cuidado maior para não acabarem sendo algozes de seus iguais, agressores de sua própria gente.
A surpresa maior no entanto, estava reservado para a fase processual das alegações finais, momento em que imaginei que o ilustre representante do Ministério Público pediria a absolvição sumária dos réus. Não foi o que aconteceu. Ele na verdade, não só postulou a condenação de meus clientes como também baseou sua argumentação na alegação desproporcional e desarrazoada de que os acusados não estavam usando pijamas para dormir, numa clara demonstração do distanciamento que existe entre ele e a realidade daquela sociedade que tem por determinação constitucional, o dever de defender. Alegou ainda, a circunstância de que parte dos bens subtraídos foi encontrada no pátio da residência dos acusados, embora tivesse ficado provado que na verdade não existe um pátio no sentido exato da palavra, eis que aquele é um local de passagem em que diversas pessoas transitam a qualquer hora do dia ou da noite.
Estupefato com o pedido do representante do Ministério Público, argumentei que necessário seria que ele se inteirasse melhor da realidade das pessoas e entendesse que a maciça maioria delas, não possui sequer uma roupa para usar no dia-a-dia, quanto mais um pijama para dormir. Aleguei que tais pessoas também não possuem a chamada “casinha dos sonhos”, com um pátio cercado por um muro consistente, capaz de fazer uma delimitação efetiva com as outras residências ou com a rua. Levantei o fato de que, conforme ficou cristalino nos depoimentos, inclusive das testemunhas de acusação, os réus não habitam casas no sentido ideal, mas sim barracos pobres, entre os quais e a rua, não existe uma separação que se possa chamar de consistente.
Felizmente a eminente julgadora, sempre em contato maior com as misérias humanas e com as injustiças sofridas pelas pessoas do povo, talvez tenha se sensibilizado e percebido que na verdade, aqueles réus estavam sendo vítimas do acaso. Talvez ela tenha conseguido, não apenas ouvir, mas lido nos lábios dos réus as palavras por eles proferidos; talvez tenha conseguido vislumbrar nos olhos dos mesmos, as suas almas e concluído por suas inocências e acabou absolvendo-os.
Surpreendentemente não houve recurso do Ministério Público e o caso encerrou-se assim. Porém ficou a necessidade de uma reflexão. Será que nos basta o conhecimento formal para que possamos lidar com seres humanos? Será que não existe a necessidade de deixarmos a segurança de nossos gabinetes e tomarmos um contato mais próximo com as pessoas de todos os diferentes segmentos da sociedade para depois nos arvorarmos a acusá-las e julgá-las?
Bem, de qualquer maneira, por prevenção, exorto as pessoas pobres das periferias que comprem pijamas, já que a qualquer momento poderão ter suas casas invadidas e, se não estiverem trajando vestes de dormir, poderão ser acusadas de estarem cometendo um crime qualquer.
Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS