O PASTOR DO SER

Por Frei Jonas Matheus | 20/03/2011 | Filosofia

Enquanto fazia faxina, numa manhã de sábado, exatamente no refeitório do convento no qual resido atualmente, vinha-me a mente uma reflexão sobre a ontologia de Martin Heidegger, bem como, sobre a metafísica cristã, de raiz mosaica. Tentava conciliar estes pensamentos; não querendo usurpar, é claro, os méritos do teólogo jesuíta Karl Rahner que fora aluno do próprio Heidegger e, que expressou o conhecido pensamento: "Ou os cristãos futuro serão místicos, ou não serão cristãos", isto em pleno século XX.
No entanto a máxima heideggeriana que se me desvelava era "o homem é o pastor do ser". Ora, nesta perspectiva existencialista, poetou Fernando Pessoa, como Alberto Caeiro, e Cecília Meireles. Escreveu Fernando Pessoa: "Sou um guardador de rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos/ E os meus pensamentos são todas as sensações/ [...] Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,/ Sei a verdade e sou feliz". Cecília Meireles, por sua vez, escreveu em "Destino": "Pastora de nuvens, por muito que espere,/ não há quem me explique meu vário rebanho./ Perdida atrás dele na planície aérea,/ não sei se o conduzo, não sei se o acompanho".
Com estas contribuições das poesias, lusitana e brasileira, bem como dando importância ao pensamento daquele filósofo alemão, o ser humano é pastor do Ser na medida em que existe como ser de linguagem, fazendo-se no mundo. Daí a pessoa humana interpreta este Ser que se desvela ludicamente, até de modo metafórico. Assim, o ser humano administra sua própria presença no mundo perante a verdade ontológica. O ente humano é livre e capaz, para interpretar ou não, o jogo do Ser nos entes. Aqui, faz-se necessário ressaltar o pensamento do existencialista francês Jean-Paul Sartre, que diz: "O homem é livre, o homem é liberdade" e, "O importante não é o que fazemos de nós, mas o que nós fazemos daquilo que fazem de nós". É nessa liberdade, que o ser humano pode decidir se "conduz", ou "acompanha" o ser, evidenciando as palavras de Cecília Meireles. Trata-se de uma decisão que deve se dá constantemente na presença humana frente à linguagem, no mundo. Uma decisão livre que põe em cheque a própria felicidade humana.
A esta altura, ressaltamos a Revelação, hebraico-cristã, pois na Bíblia ou "Torá", o próprio Deus único se revela a Moisés como o Ser, e mais, como Ser pessoal, que dialoga com Moisés e preocupa-se com o sofrimento do povo hebreu, então escravizado no Egito. Esta bela passagem religiosa se encontra no livro do Êxodo, donde transcrevemos: "[Deus disse:] ? Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias [...] ?Eu sou aquele que é?. Disse mais: ?Assim dirás aos israelitas: ?EU SOU me enviou até vós?" (Bíblia de Jerusalém: Êx. 3, 7.14).
Para a filosofia cristã, mais especificamente, para Santo Agostinho de Hipona, o ser humano é livre enquanto escolhe e faz o bem, daí sua máxima: "Ama e fazes o que quiseres". Já, São Boaventura de Bagnoregio, também pode iluminar nossa reflexão, com o pensamento: "[...] das coisas visíveis se eleva a alma, considerando a potência, a sabedoria e a bondade de Deus como, existente, vivente e inteligente, puramente espiritual, incorruptível e imutável".
Resulta dessas relevantes pérolas do pensamento universal, nossa interpretação quanto ao ser humano como "pastor do ser". Ele o é no sentido de sua presença no mundo como ser de liberdade, mesmo perante o próprio Ser. No entanto, como sabemos do sentido cristão e hebraico, o Ser é o próprio Deus, uno e pessoal e, se o Ser chama os entes, inclusive os seres humanos, do nada à existência, o verdadeiro pastor é sempre o Ser, no entanto Este se vela e desvela-se perante a pessoa humana, pois quis criar os seres humanos como entes de liberdade. Daí, a felicidade humana consiste na justa autenticidade de entregar o "cajado pastoral" ao seu verdadeiro dono, acompanhando-o.