O Paradoxo Do Poder De Punir

Por Felipe Jacques | 31/07/2008 | Filosofia

A análise da história das civilizações suscita, antes de tudo, evidenciar a desigualdade entre as classes, e os indivíduos, perante o poder exercido por ambos. Observam-se, então, imposições ideológicas, físicas, políticas e econômicas por uma parcela minoritária, como os soberanos – alguns enquanto: faraó, déspota, rei, entre outros tiranos -, ou as classes governantes, por exemplo, aristocracia e burguesia; sobre a maioria oprimida, ignorante, porém responsável pela situação em que se encontra, posto que fonte de força de reação; sendo estes: súditos, plebeus, camponeses, servos, enfim, povo enquanto máquina econômica e política fruto de exploração e aceitação da cultura opressora.

As revoluções são marcos de ruptura, não que a maioria passe a subordinar a minoria citada – já que as revoluções socialistas não promoveram o poder absoluto do povo -, mas dentro desta ocorre a elevação impositiva de: uma tirania a outra, uma classe a outra, ou até mesmo, o sucumbir tirânico e sua substituição por uma classe dominante e vice e versa. Na revolução muda-se a forma de governo, o sistema econômico, a estrutura orgânica da sociedade, podendo também ocorrer mudanças culturais e religiosas, influindo no modo de pensar da população como um todo.

A partir disso, propõe-se compreender a ruptura provocada pela Revolução Francesa, a classe detentora do poder após sua ocorrência, e as mudanças que esta proporcionou, pioneiramente, no modo de punir.

O jus puniendi deve respaldar o modo de castigar, todavia segundo Beccaria esse é fruto do contrato social firmado entre os cidadãos, que sedem parte de suas liberdades para constituir um poder soberano "depositário dessas liberdades e dos trabalhos da administração", e da "reunião de todas essas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir" (BECCARIA, 2003; p.19). Entretanto ele difere o soberano justo e humanitário, que se propõe a utilizar de iguais princípios para punir, daquele amado ou respeitado proposto por Nicolau Maquiavel segundo o qual os meios, mesmo que escusos e desumanos, justificavam um fim. Estes tiranos dominavam a Europa durante o Estado Moderno Absolutista.

Nessa época o modo de punir tinha como características: a atrocidade dos suplícios; o julgamento secreto, no qual pouco se creditava ao réu o direito de defesa, por isso não tinha absoluto conhecimento sobre o processo que estava sendo incriminado; as torturas desumanas que poderiam ser requisitadas pelos juízes, servindo de prova no tramite da ação, já que o acusado estaria subordinado a um juramento impositivo; as penas infamantes que expunham os condenados ao ridículo perante a sociedade, descredibilizando sua honra para vivência em sociedade; a desigualdade ante o castigo que ressalva Foucault (2006, p.70) ao dizer; que durante essa época:

[...] os diferentes estratos sociais tinham cada uma sua margem de ilegalidade tolerada: a não aplicação da regra, a inobservância de inúmeros editos ou ordenações eram condições do funcionamento político e econômico da sociedade.

Explicita ainda que estes privilégios aplicavam-se, somente, à nobreza, ao alto clero e à burguesia aviltada, constituindo uma parcele ínfima da população, visto que à grande maioria desta restava a miséria - fonte de existência primordial da criminalidade.

Pode-se ainda ressaltar outros marcos desse período, entre os quais: um Direito imiscuído de ordenações religiosas, em que o delito estava diretamente ligado ao pecado; a "desnaturação" do poder judiciário, determinada pelas: vendas de sentenças, indicações e hereditariedade para o cargo de juiz, além disso, este contava com plena autonomia para determinar a pena, mesmo que a partir de provas vagas, porém "legais". Assim, devido ao excesso de poder legado ao magistrado, este acabava por reescrever a partir de seus julgamentos a lei que a ele cabia apenas interpretar, consequentemente, havendo um entrecruzamento entre os poderes judiciário e legislativo. Entretanto ambos estavam subordinados ao poder do rei, que era absoluto como explicita bem a celebre frase de Louis XIV: L'État c'est moi (O Estado sou eu), demonstrando um excesso, centralização e má distribuição do poder do Estado, influindo diretamente no modo de punir. Ainda, salienta-se a atuação do fisco, representando o Estado, logo o rei.

Tudo isso, somado aos ideais iluministas, serviu de estopim para que a cólera do povo ante a tirania detona-se em 1789 a Revolução Francesa, como observa Foucault, que o povo tão acostumado a ver o soberano vingando-se com o derramamento de sangue, leva-o à guilhotina. A partir daí ocorre, simultaneamente, uma reforma generalizada e contínua do modo de punir.

Ressalva-se que a grande maioria dos iluministas e reformadores, apesar de defender a "humanização" da forma de punir, e do tratamento aos prisioneiros, são constituídos, em sua maioria, por nobres, como o Barão de Montesquieu e o Marquês de Beccaria, burgueses aviltados, por exemplo, Jacques-Louis David, herdeiro duma indústria têxtil, entre outros. Será que esses homens, realmente, colocaram seus ideais acima dos privilégios que gozavam? Foi uma revolução "do povo, pelo povo, para o povo"(Abraham Lincoln),ou apenas o sucumbir duma tirania que deu vazão a ascensão duma classe que domina desde então?

Certamente o novo regime de castigos infracionais que surgiu, em comunhão com as circunstâncias históricas que antecedem a revolução, como: o forte crescimento demográfico, a multiplicação das riquezas e das propriedades, em função da pressão e conseqüente dilatação econômica burguesa, seguido pela elevação do nível de vida; pode responder aos questionamentos. Visto que um dos marcos da revolução é a queda da Bastilha – fortaleza construída no século XIV, que passa a servir de prisão até 1789 -, isto simbolizou que, indubitavelmente, os mentores do período das Luzes pleiteavam de forma convergente, independente das divergências enquanto a forma e/ou sistema de governo a ser adotado, uma economia do poder de punir do Estado. O movimento liderado por intelectuais usou-se da pobreza, fome, ignorância, enfim da marginalização que abatia a grande massa social como arma para fazer uma revolução, aparentemente, do povo, porém, altamente, classista; extinguindo, conservando e formulando alguns privilégios para a hegemonia burguesa.

Faz-se mister salientar que com o findar da revolução em 9 de Novembro de 1799 (18 de Brumário), e a ascensão de Napoleão Bonaparte como cônsul e, posteriormente, imperador; a governabilidade não deixou de ser determinada pelos burgueses.

O contexto explicitado respaldou uma mudança na freqüência dos tipos de crimes, assim, afirma Foucault numa menção histórica:

Desde o fim do século XVII, com efeito, nota-se uma diminuição considerável dos crimes de sangue e, de um modo geral das agressões físicas; os delitos contra a propriedade parecem prevalecer sobre os crimes violentos; o roubo e a vigarice sobre os assassinatos, os ferimentos e os golpes. (FOUCAULT, 2006; p.64-65)

Ratifica-o que nessa época as punições tornam-se mais severas para salvaguardar os bens móvel ou imóvel enquanto propriedade, pois o modo de punir "toma ares burgueses de justiça de classe" (E. Le Roy-Ladurie apud Foucault, 2006).

Neste intere ocorre a revolução, buscando limitar o poder do soberano através duma constituição, malgrado mesmo com a publicação das Cartas Magnas de 1791 (Período da Assembléia Nacional Constituinte) e 1792 (Período da Convenção) não se conseguiu controlar o excesso de poder exercido na punição, visto que os "criminosos" políticos multiplicam-se durante o processo revolucionário, como aborda Beccaria referindo-se às prisões realizadas pelos magistrados, certamente, pertencentes ou seguidores dos ditames da classe detentora do poder:

[...] refiro-me ao direito de prender, de modo discricionário, os cidadãos, de vedar a liberdade aos inimigos sob pretextos frívolos e, conseqüentemente, de deixar em liberdade os seus protegidos, apesar de todas as evidências do delito. (BECCARIA, 2003; 27)

A estrita legalidade, acontecimento fundamental para o surgimento da economia do poder, somente é concebida da promulgação do Código de Napoleão (1804), e no que é inerente a punição, com a criação do Código Penal Francês (1810). A partir desse preceito básico em que Nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, respaldou-se o amadurecimento e afirmação duma nova forma de punir, imiscuída da ideologia burguesa firmada e do surgimento da chamada "humanização" dos castigos.

O que seria esta "humanização"? Segundo Foucault até o mais nefasto dos assassinos deve ter respeitada seu "humanidade" quando punido. Esta, servindo de medida para o direito de punir, indubitavelmente, "suavizando" a prática punitiva. Malgrado, ele afirma que esta inovação decorre, principalmente, da mudança do poder legitimado a castigar, antes o soberano, e agora – ou seja, em parte do período revolucionário e nos tempos do império – o contrato social. Determina este que ao firmar-se como cidadão, supõe-se que o indivíduo aceita a lei da sociedade, portanto também aquela que poderá puni-lo. Assim, a burguesia pode impor seus ditames de forma oculta. Pois:

O criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompeu o pacto, é portanto inimigo da sociedade inteira, mas participa da punição que se exerce sobre ele. O menor crime ataca toda a sociedade; e toda a sociedade – inclusive o criminoso – esta presente na menor punição. (FOUCAULT, 2006; p.76)

Por isso, a "humanidade" que se pretende respeitar é, essencialmente, da pessoa que subscreveu o pacto, e não cometeu infração alguma, sendo assim, "o sofrimento que deve ser excluído pela 'suavização' das penas é a dos juízes ou dos espectadores" (FOUCAULT, 2006; p.77) unidos para punir.

Aí esta a necessidade da moderação do castigo, visto que não se extinguiu o superpoder, apenas transferiu-o do soberano à sociedade, certamente aquela detentora do poder econômico e, por conseguinte político, e não seu corpo em geral.

Entre as inovações decorrentes, a mais importante para os interesses burgueses refere-se ao princípio da proporcionalidade, não aquele proposto por Beccaria, em que só deveria punir até o limite da culpabilidade, atentando-se para uma maior severidade com os crimes mais prejudiciais à sociedade, segundo ele os menos comuns; mas o analisado por Foucault, afirmando ater-se esse princípio ao fato de que se deve "calcular uma pena não em função do crime, mas de sua possível repetição" (FOUCAULT, 2006; p.78), já que os ideais dominantes da época, não apenas intencionavam salvaguardar seus bens, mas também manter a ordem conquistada devido à revolução. Assim, acreditava que os menores e mais comuns crimes são os que podem ser facilmente imitados, e por isso devem ser punidos de forma mais algoz; já os crimes mais raros que cometem os delitos mais hediondos, aconteceriam em situações tão extraordinárias, sendo dificilmente imitados, logo, seus culpados poderiam ter penas mais leves e indulgentes.

Seguem-se a esses fatores outras inovações que englobam as mudanças do modo de punir, tal quais: o magistrado passa ter a restrita função de fazer a exegese das leis, aplicado-as nos devidos veredictos; por isso a religião deixa de regular as determinações legais; extinguiram-se formalmente as penas de morte e as torturas; os julgamentos não são mais secretos, cabendo ao Estado informar ao acusado do que esta sendo incriminado; as penas infamantes são abolidas; puni-se com "universalidade" e necessidade; "não punir menos, punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada" (FOUCAULT, 2006; p.70), ou seja, moderar a punição; o fisco tornasse obsoleto, diminuindo bruscamente os crimes referentes à sua atuação, visto que o governo imperial apesar de atender os interesses burgueses, promovendo o liberalismo econômico, também põe em prática alguns "ideais da revolução", distribuindo propriedades de terra, e visando melhorar a conjuntura social; enfim, a economia do poder de punir é em parte alcançada, posto que, sendo pleiteada num regime imperial, por mais que delimitado por uma constituição, ainda legava poderes excessivos a Napoleão Bonaparte.

Observa-se que a "humanização" das penas, não aconteceu de fato, pois, mudou-se apenas a intensidade da forma algoz de se castigar para poupar os que não sofriam as atrocidades, mesmo assim, não se pode considerar que as penas restritivas de liberdade – que passam a ser mais aplicadas - sejam menos cruéis, mas, certamente, mais econômicas e políticas. Em nenhum momento visou-se recuperar o homo criminalis, apenas em deturpar a realidade, para os que mais sofrem com a punição - ou seja, o povo - continuasse subordinado e omisso, sujeitado à miséria e à ignorância, falseada por pequenos programas sociais, tentando diminuir o surgimento da criminalidade, no seio dessa massa excluída.

Enfim, os tiranos e classes governantes continuarão existindo e determinando o modo de punir, enquanto a população segregada aceitar ser dominada como arma de falsas revoluções.

Referências Bibliográficas

ABRAHAM, Tomás. El último Foucault. Buenos Aires: Editoral Sudamericana, 2003.

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 1ª ed., São Paulo: Rideel, 2003.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. 31ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006

______________, A Verdade e as Formas Jurídicas. 3ªed. Rio de Janeiro: NAU Ed., 2002.

______________, Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Grall, 1985.

______________, O Sujeito e o Poder. In RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. São Paulo, Forense Universitária, 1995.

MERQUIOR, J.G. Michel Foucault ou o Niilismo de Cátedra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985