O PARADIGMA HOLÍSTICO-CRISTÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA
Por maria angela mirault | 17/03/2010 | ReligiãoO PARADIGMA HOLÍSTICO-CRISTÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA
Maria Ângela Coelho Mirault Pinto
Qual seria o impacto paradigmático, no mundo, se a Ciência e os cientistas assinalassem categoricamente a descoberta da imortalidade como lei natural implícita à própria vida? Se não pairasse qualquer dúvida e, cientificamente, se pudesse comprovar que a existência terrena seria apenas uma dentre tantas outras rumo ao aperfeiçoamento da própria vida intemporal? Mais ainda, se, em vista destas revelações, tivéssemos que reformular nossos paradigmas sob a perspectiva de que a imortalidade implicaria também na responsabilidade com o próprio caminho e a maneira de caminhar ao longo de sucessivas e incontáveis existências? Provavelmente, isso nos obrigaria a alterar toda a cosmovisão que temos com relação aos conceitos antes abraçados com respeito à vida e à morte. Saber-se imortal ? saber é mais do que crer ? implicaria, também, compreender que todo passado comprometeria o presente, que, por seu turno, indicaria um futuro. Assumindo, assim, as rédeas da nossa própria existência, deixaríamos de culpar os outros, a vida e o mundo pelos nossos erros, fracassos ou desditas, admitindo, então, que nosso destino seria consequência dos nossos atos e não fruto de mera fatalidade, privilégios ou castigos de um deus indiferente, submetidos aos caprichos da sorte. Pouco a pouco, então, essas constatações influenciariam os costumes e as leis da sociedade. E na medida em que redimensionássemos essa idéia, a educação assumiria sua função transformadora, enquanto, a economia e a política, sua função mobilizadora da organização social. Reconhecendo a responsabilidade individual frente ao progresso coletivo, o homem a partir de então, preocupar-se-ia também com as condições de vida do seu próximo, tal e qual já o manifestaram os postulados cristãos. Sabendo-se indestrutível, passaria a conceber a morte, não como um fim, mas como um momento de passagem para outra dimensão de vida. A construção da Paz deixaria de ser um argumento de retórica, ou uma utopia e passaria a ser um destino a ser conquistado, no âmago da individualidade, antes de alcançar o escopo da coletividade. Essa a reflexão proposta neste trabalho em que se situará a morte como evento entrópico (assinaladores de novas possibilidades) na flecha do tempo, a luz dos postulados formulados por Ilya Prigogine e a tese da imortalidade proposta pela Doutrina Espírita.
O paradigma-holístico
Thomas Khun foi o físico que conceituou um paradigma como sendo uma proposição de verdade reconhecida e aceita, dada como certa, em determinado flash na linha do tempo. Assim, um paradigma torna-se lente de interpretação de fatos e fenômenos, guindado, pelo status quo dominante, a modelo científico, pelo qual se filtra, e, mesmo, se investiga a realidade. Sua tese preceitua, ainda, que o desenvolvimento científico se dá por uma sucessão de períodos ligados à tradição e pontuados por rupturas revolucionárias não cumulativas, que, em determinado momento, acaba por levar a superação, ou, mesmo, substituição do antigo e dominante paradigma, dando à luz um novo paradigma, mas concernente e mais apropriado ao espírito do tempo. O surgimento de um novo paradigma, portanto, não é simplesmente resultante de um processo linear (na linha do tempo) acumulativo, mas sim o fruto de uma nova gestalt , um até então, inesperado insight ; uma iluminação, pela qual, uma visão inédita (nunca conjuminada antes) da realidade (já existente) é desvelada. Mudar um paradigma significa deixar o antigo, por passar a crê-lo incapaz de oferecer explicações concebíveis em um novo momento. Desse modo, diacrônica ou anacronicamente, todos têm cosmovisões fundamentadas em paradigmas que acreditam satisfatórios aos seus anseios de perceber, conceber e explicar um contexto, em que se julgam inseridos, ou não (dentro ou fora, de acordo com suas concepções paradigmáticas). O paradigma cartesiano-newtoniano - pelo qual a realidade é compreendida e estudada como existente fora de um sujeito, e suscetível de ser, por ele, cognoscível - vem perdendo a hegemonia, a partir da física quântica e as constatações de Albert Einstein, Werner Heisenberg e outros.
A proposição de que o universo seria composto por mais de 85% de matéria "invisível" , pela Física moderna, acrescenta a idéia de que a realidade, certamente, não se circunscreveria ao espaço sensível fora de nós. A realidade, o "mundo", os outros e nós próprios faríamos parte de um mesmo e complexo sistema, cada qual se constituindo também em um sistema em si, capaz de interagir e deixar-se interagir, alterando-se mútua e constantemente. De certo que o mundo, como totalidade e representatividade do que é real para nós, é inapreensível aos limitados sentidos humanos, inaptos por natureza a percebê-lo em toda sua inusitada complexidade, não havendo, portanto, uma realidade totalizadora, uma verdade absoluta e unificadora, ou um saber confinado e definido universalmente. Sob essa análise, o próprio conceito de totalidade já seria uma abstração limitadora e um equívoco epistemológico originado nas concepções provisórias e incompletas que o homem, ainda, tem de si e do mundo.
Por isso, toda abordagem da realidade é pessoal, incompartilhável e única. Não percebemos as mesmas coisas, não compreendemos do mesmo modo, e nos expressamos sempre de maneira original. Nossa realidade é circunscrita à cosmovisão que possuímos com relação ao todo. Na verdade, estamos o tempo todo recodificando e reconfigurando nossos conhecimentos sobre tudo e sobre todos, em todos os dias, em todas as horas e a cada experiência. Qualquer tentativa de compreensão e expressão do mundo constitui-se teias de significações particulares que temos ? sempre provisoriamente ? sobre todas as coisas que, de algum modo, destacou-se do caos, organiza-se e afeta-nos. Sob a nova argumentação, pode-se conceber, então, a hipótese de que todo conhecimento seja fenomênico e parcial, resultante da indução e influenciação de uma mente que o captura e o concebe . Assim, toda percepção, observação, interpretação, decodificação e codificação de um fenômeno seria único e paradigmático, de acordo com a mente - e a forma dada ? que o inquiriu.
Embora a idéia já tenha sido formulada desde o pré-socrático grego Heráclito de Éfeso (544 a.C-483 a.C), ao estabelecer a proposição de que "a parte é diferente do todo, mas também é o mesmo que o todo", o termo holismo passou a ser mais sistematizado (e compreendido, tal como na atualidade) a partir da publicação do livro "Holism and Evolution", do ministro sul-africano, Jan Christian Smuts (1870-1950), em 1926, passando a designar um novo paradigma, ou seja, um modo de pensar, ou considerar a realidade, segundo a qual nada pode ser explicado pela mera ordenação ou disposição das partes, mas antes pelas relações que elas mantém entre si e com o próprio todo. A partir dessa concepção, a apreensão, a interpretação e a compreensão da realidade escapam a análise estanque de particularidades, visto que, estas, ordenadas, não conduzem nem dão conta do holos .
Á luz destas delimitações do tema que propomos, poder-se-ia compreender o Espiritismo como um paradigma holístico-cristão representando uma ruptura com relação aos conceitos anteriores de vida e de morte; de vivo e de morto proposto pelos modelos espiritualistas tradicionais. Foi a natureza investigativa do pedagogo francês Hipollite Leon Denizard Rivail - o codificador da Doutrina Espírita ? que possibilitou essa transição. Sua dedicação à percepção, observação, interpretação, decodificação do fenômeno de intercomunicação extrafísica levaram-no a codificação de um corpo de uma nova e paradigmática doutrina filosófica-religiosa. Assim, o Espiritismo - neologismo cunhado por Allan Kardec , com o intuito de estabelecer-lhe um diferencial paradigmático, dentre as demais correntes idealista-espiritualistas ? pode ser concebido como postulado cristão, constituído por um corpo de doutrina, que, por sua própria característica intrínseca, apresentar-se-ia pela hibridação de três vertentes do conhecimento: filosofia ? porque intenta responder os porquês da existência -; ciência ? porquanto, da investigação de um fato particular, buscando explicá-lo, induz à leis gerais - e religião (cristã) ? ao remeter às questões ético-morais de conduta pessoal e relação com outras esferas e dimensões extrafísicas. A título de delimitação, poder-se-ia distinguir-lhe como eixo principal a idéia da existência de três princípios constitutivos da realidade: Deus, Espírito e matéria, propondo que o inexplicável encontra-se nas leis naturais e não sobrenaturais. Vida e morte nada mais seriam do que acontecimentos sucessivos e complementares de uma realidade que se interrelaciona entre o que se vê e o que se não vê, mas que se insinua no mundo ponderável da vida física, a todo o momento.
Alinhado a concepção idealista consolidada pelos pré e os pós-Socráticos - como Platão e Plotino, dentre outros ? paradoxalmente, o Espiritismo constituiu-se pelas trilhas do experimentalismo-empirista-racionalista, opondo-se a idéia niilista do materialismo, chegando aos dias atuais, com cerca de 30 milhões de adeptos, no mundo, entre os quais, o Brasil deteria o maior número, tendo em vista que, pelo Censo de 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE ? declararam-se espíritas 2,3 milhões de brasileiros. Estudiosos e seguidores dos postulados espíritas codificados pelo pedagogo francês Hyppolite Lèon Denizard Rivail somariam, hoje, no Brasil, cerca de 20 milhões, entre adeptos e simpatizantes, segundo os dados oficiais da Federação Espírita Brasileira - órgão responsável pelo Movimento Espírita, em nosso país.
Trazido à luz pelo método indutivo, com o qual Kardec observou, acompanhou, verificou e explicou os fenômenos ? até, então, considerados e ditos paranormais - obtendo revelações provenientes de inteligências extrafísicas (os espíritos), por intermédio da mediação de pessoas comuns (os médiuns), o Espiritismo acabou por evidenciar, em seu aspecto filosófico idealista-racionalista - que lhe sustentam os preceitos - sua filiação religiosa, par-e-passo com os ensinamentos já revelados, trazidos e registrados no Evangelho de Jesus.
A mensagem cristão sobre a morte
Desde os tempos imemoriais da história humana, a morte constitui-se um dos mais complexos e inexplicáveis fenômenos com o qual o homem terá que se deparar inevitavelmente, mesmo sem compreendê-lo. Os mitos daí surgiram com o intuito de aplacar esse medo atávico do inexplicável, cujos ritos os perpetuariam em cerimônias que, se não esclareciam, pelo menos, abrandariam os sentimentos, dando significado ao que fugia à compreensão desse fenômeno tão inerente à própria vida. Mas, o que entende o homem ainda hoje sobre a morte? Por quais paradigmas e códigos de conhecimento a compreendem na atualidade? Guardam eles os mesmos medos de seus ancestrais?
De súbito, qualquer realidade é por nós percebida em sua complexa desorganização. Somos milenarmente criaturas do medo. Temos medo do escuro, do desconhecido, de andar de avião, de roda-gigante, de insetos, de adoecer, de amar, de perder o amor, de morrer. Desprovidos de códigos referenciais que nos forneçam significações necessárias para compreendermos os fenômenos que desconhecemos, só nos resta, como mecanismo de defesa e escudo de sobrevivência, o temor.
O medo tem sua gênese em nossa própria incapacidade de lidar com o desconhecido, explicar e compreender uma dada realidade que, sempre se nos apresenta aparentemente caótica e inapreensível ? qualquer que seja ela. Somente pouco a pouco, ao buscarmos dentro de nós os referenciais simbólicos constitutivos do nosso repertório de conhecimentos, é que nos capacitamos a aplacar esse medo instintivo que existe em nós.
A mensagem trazida, exemplificada e deixada por Jesus sobre a imortalidade ainda hoje merece atenção. Mesmo que os relatos posteriores registrem sua ressurreição e permanência, por 40 dias, entre seus apóstolos, mesmo que Tomé lhe tenha visto e tocado, a tradição religiosa conservou o instante da crucificação como a mensagem a ser decodificada, reverenciada e seguida. Mas, não foi essa a mensagem cristã legada pelo nazareno. Sua mensagem explícita com respeito à morte é a mensagem da sobrevida, não de aniquilamento. Esse, o paradigma cristão que anuncia o reino de Deus em outras instâncias e dimensões há mais de dois mil anos. Paradigma esse que postula a perenidade da vida além da matéria; anuncia a natureza espiritual transcendente das criaturas destinadas ao encontro com Deus. Determina novas e novas oportunidades para aqueles que têm olhos para ver e ouvidos para ouvir. Desse modo, pode-se deduzir que a imortalidade não é uma tese Espírita, do mesmo modo que o anúncio da existência do mundo espiritual, não o é. A crença na preexistência e sobrevivência da essência espiritual e a possibilidade de comunicabilidade entre a realidade física e a realidade extrafísica, sim, é uma das teses pronunciadas pela Doutrina Espírita, a partir da pesquisa de seu codificador.
A morte e as tradições culturais
Existem, cultural e tradicionalmente, duas grandes matrizes do pensamento acerca do fenômeno da morte, em conformidade com crenças religiosas e, ou linhas filosóficas que professemos. Para os postulados materialistas, ela nada mais significará do que o fim de uma curta existência, e nós, nada mais seremos do que seres biológicos vulneráveis e vitimados pelo acaso das leis naturais impostas pela vida: nascer, crescer, fenecer. Sob concepções espiritualistas, e, de acordo com o embasamento filosófico que sustenta essas correntes, aceitamos a morte, ainda que com medo, com certa parcimônia, dada sua inevitabilidade, sem sabermos (ou não querendo saber) o que nos pode esperar ao ultrapassar os portais dessa travessia. E sob essa concepção, alguns de nós iremos crer nas penas e gozos eternos, enquanto outros crerão na possibilidade do sono reconfortante (o descanso eterno) antes do juízo final, quando cada um encontrará ? aí sim ? sua destinação. Se tivermos sido bons, e, convertido à determinada corrente religiosa, seremos levados aos céus na condição de eleitos do Senhor, se maus, ou não nos tivermos convertido a tempo, estaremos sujeitos ao aniquilamento de nossa própria essência.
Embora o tema venha suscitando o interesse de religiosos e estudiosos a respeito da continuidade da vida após a morte ao longo dos tempos, foi a abordagem do professor lionês Hippolyte Lèon Denizard Rivail, (que passou a ser conhecido sob o pseudônimo de Allan Kardec), discípulo dileto de Pestalozzi, que - ao deparar-se com episódios considerados sobrenaturais, na efervecente Paris dos idos de 1855 - decidiu pesquisar aqueles fenômenos com a seriedade que lhe era peculiar, afirmando ter percebido "naqueles fenômenos, a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade (...)", ou seja, "a solução que procurara em toda sua vida", afirmara ele, na ocasião. Desse encontro e dessa constatação surgirá toda sua extensa e profícua obra, que oferecendo luzes sobre o outro lado da vida, abordará com cientificidade e desdobramentos filosóficos-religosos a tese da imortalidade, da preexistência e da sobrevivência como leis universais da própria vida.
A temática sobre o interrelacionamento de uma realidade natural com a sobrenatural veio ganhar consistência em sua primeira obra a respeito do tema: "Le Livre des Esprits" (O Livro dos Espíritos) lançado em Paris, em 18 de abril de 1857, no qual explicitará toda a codificação sobre o entrelaçamento dos dois lados de uma mesma e única vida imortal. Sua obra inaugural proclamará, também, à humanidade, a tese da reencarnação como pedra fundamental dos seus postulados, ao asseverar ser necessário nascer, viver, morrer, renascer ainda, e progredir sem cessar, lei essa a que todos estamos submetidos.
Tal assertiva virá constituir-se na mais clara proposição da lei de evolução para a vida espiritual dos seres que habitam, provisoriamente, a vestimenta das moléculas, em prol do seu próprio desenvolvimento e autoburilamento existencial.
A tese professada pelos postulados filosóficos (de cunho religioso) propostos na codificação kardequina, pelo emérito professor a respeito das constatações fenomênicas do interrelacionamento de duas realidades de uma mesma vida, busca esclarecer, alentar e proporcionar referenciais substantivos para a abordagem racional do fenômeno da morte, intrínseco a própria natureza humana.
Sob as constatações de Kardec, embora ainda temerosos frente ao fenômeno da morte, podemos concebê-la sob o paradigma de que ela não seja o fim, mas nos remeta a outros possíveis para a continuidade da vida, na trajetória infinita da imortalidade. Aí, não seríamos, simplesmente, seres destinados ao aniquilamento irreversível da morte, cujo destino eterno se decidirá em poucos anos vividos em uma única existência, sem qualquer atenuante. Como em toda natureza, seríamos, também, seres em permanente evolução, em transformação e progressão, não destinados ao aniquilamento irreversível, ou às penas eternas.
A morte, sob o paradigma da imortalidade e da reencarnação, proposto pelo Espiritismo, seria um portal transitório para a mudança e o progresso. A reencarnação seria, então, o mecanismo pelo qual a justiça das Leis Universal proporcionaria o reajuste, o equilíbrio e a oportunidade de refazer o caminho mal feito, aprimorar o que já se fez bem feito, ou, compulsoriamente, realizar-se o que se deixou de fazer.
Sob os postulados milenares e ancestrais reencarnacionistas, organizados, na História Moderna por Allan Kardec, a morte não seria o fim de tudo, mas um instante intermediário até o início de um novo tempo para um futuro renascer. Assim, nossos mortos não estariam mortos nem habitariam a frieza dos túmulos, preparar-se-iam, sim, para novas possibilidades. A morte passaria, assim, a adquirir uma dimensão de travessia para novos possíveis: nem, nós, nem nossos entes queridos jazeriam nos cemitérios, libertos que estariam dos vínculos materiais, preparar-se-iam, quem sabe, para um retorno a vida física, já que a espiritual jamais fenece. A milenar doutrina da reencarnação, postulada, modernamente, por Allan Kardec, amplamente difundida pelos estudiosos do nosso tempo, condicionam-nos como seres imortais e viajantes seculares entre dois mundos, fadados a continuar uma caminhada, que, iniciada antes do nascimento, não se interrompe no decurso da morte.
A concepção da imortalidade não é uma tese nem uma prerrogativa do Espiritismo. Conceber a sobrevivência além da vida é tese contida no paradigma idealista-espiritualista, de modo geral, e, também, no paradigma cristão. O que nos apresenta de novo, e paradigmático, a Doutrina Espírita, é a concepção da existência do Espírito como força viva da natureza, que, precedendo toda realidade física, seria capaz de com ela interagir. Sob esse princípio, não só concebe a imortalidade como verdade, como, também, oferece um novo conceito de vida e de morte. Ao propor a pré-existência e sobrevivência da essência espiritual, postula que a morte, mais não é, do que um momento entrópico na linha do tempo que é infinita. Situando o mundo espiritual como matriz do mundo material , determina como possível e condizente a intercomunicação entre esses dois mundos. A morte, concebida sob esse paradigma, então, não extinguiria a vida; os mortos não estariam mortos, e, mais, naturalmente, comunicar-se-iam com os "vivos".
O tempo e a existência
Historicamente, sabe-se que até o século XIX tinha-se a concepção de um universo estático e eterno. Essa também foi uma concepção substituída por outras "verdades". Newton postulou que o tempo teria um fluxo igual e uniformemente, em todos os lugares e independente da localização do observador, mas, em 1920, Einstein proporia que nem espaço nem tempo seriam absolutos, mas, estabeleceriam uma relação dependente com o observador.
O fenômeno do Big Bang, dado a conhecer após a detecção do telescópio Hublle, em 1929, fez com que a Física passasse a dispor de elementos para entender melhor a origem de um universo em expansão e abolir de vez a idéia de universo estático. Hoje, concebe-se a idéia de que o universo tenha uma idade e teve uma origem. Esses estudos pressupõem, ainda, que esse evento confirmaria a teoria da singularidade tanto da origem do universo como do nascimento do tempo. Ou seja, o tempo teria seu nascimento no instante do Big Bang. Mas, longe de ser uma verdade inabalável, essa tese viria a ser questionada por volta de 1985, por Ilya Prigogine (1917-2003). Afirmaria ele: "O tempo precede a existência". Em suas obras, Ilya Prigongine - Prêmio Nobel de Química em 1977 - exporá suas teorias a respeito do assunto e oferecerá á comunidade científica, uma nova maneira de se pensar o universo. Sua concepção determinará , que "o universo seria criação contínua, sucessão infinita de universos a nascer por toda a parte e a caminhar rumo ao infinito". Essa ocorrência implicaria na idéia complementar de que: "Não podemos pensar a origem do tempo, mas apenas nas "explosões entrópicas" que a pressupõem e são criadoras de novas temporalidades, produtoras de existências novas caracterizadas por tempos qualitativamente novos." Ou, ainda: "O universo é um sistema termodinâmico gigante. Em todos os níveis, encontramos instabilidades e bifurcações". As bifurcações marcariam o instante seguinte ao fenômeno de entropia e abertura para novos caminhos, novos direcionamentos, novas decisões.
No capítulo intitulado O Nascimento do Tempo, da obra Entre o Tempo e a Eternidade, Prigogine questiona "quem poderia imaginar que se pudesse ser levado à concepção de que a "morte térmica" do universo poderia estar situada não no fim da história, mas "no seu começo?" Como se vê, Prigogine apregoa-nos uma concepção totalmente nova, pois propõe a tese de que o universo teria uma idade e uma flecha do tempo preexistente ao Big Bang, obrigando-nos a uma inversão de tudo que se entende como origem, começo ou fim.
Essa nova concepção confronta-se com à cosmologia contemporânea, ainda muito intimamente ligada à relatividade de Einstein e a própria teoria do Big Bang, pois, de acordo com esses pensamentos, viveríamos em um universo em expansão irreversível e se pudéssemos voltar no tempo, seríamos capazes de encontrar a singularidade do evento que deu origem ao tempo e ao próprio universo: o instante do Big Bang. Este fenômeno constituir-se-ia, então, em uma singularidade absoluta, que, na verdade, contentaria físicos e teólogos. É a isso Prigogine (1988: p. 152) contesta quando afirma que a passagem da existência não seria um acontecimento único, mas resultante de um processo, e, isso tornaria possível a concepção de que outros universos possam ter precedido o nosso, do mesmo modo que outros possam suceder-se a ele. O que nos apresentaria o Big Bang como "um processo irreversível (...) e a irreversibilidade resultaria numa instabilidade do pré-universo". O tempo precede a existência. A existência seria um acontecimento na flecha do tempo: "Não somos nós que geramos a flecha do tempo. Muito pelo contrário, somos seus filhos" (1996: 12). Tal afirmação de Prigogine (1996: 13) leva-nos a crença de que podemos conceber o Big Bang como um evento associado a uma instabilidade; concebido como um ponto de partida do nosso universo, mas não o do tempo: "Enquanto nosso Universo tem uma idade, o meio cuja instabilidade produziu o universo não o teria. Nesta concepção, o tempo não tem um início e provavelmente não tem fim", afirmará Prigogine. Nesta perspectiva, o tempo é eterno. "Temos uma idade, nossa civilização tem uma idade, nosso universo tem uma idade, mas o tempo, por seu lado, não tem começo nem fim."
Prigogine proporá então o "fim das certezas" e do determinismo fatídico do fim da história imposto pelo modelo termodinâmico e nos apresentará o futuro como uma opção dentre inúmeras possibilidades de escolha (1996: p.194). Dirá: "(...) o nascimento de nosso universo não está mais associado a uma singularidade, mas sim a uma instabilidade, com certa analogia com uma transição de fase ou com uma bifurcação" (1996: p. 187). Para ele, "o nascimento de nosso universo traduz-se por uma explosão de entropia" (1996: 189). É mais explícito, ainda, quando diz que "agora vemos a irreversibilidade associada não mais à morte térmica do Universo, mas a seu nascimento; não mais a uma evolução que conduz sem retorno a um estado inerte, mas talvez a uma eterna sucessão de Universos."
Nessa flecha preexistente do tempo, "nosso Universo seguiu um caminho de bifurcações sucessivas, poderia ter seguido outros. Talvez possamos dizer o mesmo sobre a vida de cada um de nós", afirmará Prigogine (1996; 75). Assim, sob esse ponto de vista, o futuro seria uma construção que se fará através de inúmeras escolhas, ou eventos. Analogicamente poderíamos conceber a idéia de que - tanto quanto nosso universo - seríamos produtos de uma instabilidade e nos dirigiríamos para um futuro a ser construído, no intento de organizar essa instabilidade. Esse impulso poderia nos direcionar no tempo e nos fazer criar um futuro probabilístico e opcional na existência, já que se poderia, na maioria das vezes, escolher entre a espera do devir klmjnou a escolha do agir, objetivando metas sucessivas, "construídas" em uma linha de tempo pessoal. Nesse impulso gerador do futuro, poderíamos ultrapassar nossa existência, assumir consciência do papel e do espaço que ocupamos na própria vida, em nossa cultura, em nossa sociedade. Nesse aspecto, poderíamos ver que o acaso não deixaria de ser uma conseqüência de uma opção anterior, às vezes até uma entropia geradora de alteração (qualquer alteração) de percurso na flecha do tempo. Metaforicamente, a morte poderia constituir-se em mais um dos inúmeros acontecimentos em nosso percurso em busca da ordem.
Prigogine (1996: 198) afirmará pretender construir um caminho estreito entre a idéia do acaso e do determinismo, pois, segundo ele, "ambas levam igualmente à alienação, a de um mundo regido por leis que não deixam nenhum lugar para a novidade, e a de um mundo absurdo, acausal, onde nada pode ser previsto nem descrito em termos gerais." Para o cientista, será o acontecimento que distinguirá o passado do futuro e constituir-se-á no agora, isto é, no possível. Cada ação desencadearia sempre um futuro imediato e sucessivo, desconhecido enquanto não se realiza, já que se abriria para outras escolhas e realizações. Estaríamos sempre na iminência de optar por fazer coisas que por sua vez desencadeariam outras como sucessão ou conseqüências de múltiplas escolhas e decisões que poderíamos tomar, pelo uso do livre-arbítrio, na construção do futuro singular da peculiaridade de cada um.
Concluíndo
Respeitando a liberdade de todas as correntes de crença, a Doutrina Espírita oferece seus argumentos, traça paralelos com os ensinamentos do Cristo, acompanha o progresso e recomenda o estudo das ciências, buscando libertar as inteligências dos dogmas remanescentes de correntes idealista-religiosas, as quais, ainda hoje, sustenta-se no sobrenatural. Despertando essa abertura de consciências, abre-se, dialogicamente, às discussões filosóficas-cientifícas-religiosas, nos tempos atuais. Desvelando um mundo invisível - mas atuante - no qual estamos imersos e do qual sequer suspeitáramos, disseca-lhe as leis que o regem, revela-lhe a relação entre os que lá se encontram com o mundo físico, no qual, ainda estagiamos. Atribui-se a detenção das respostas aos milenares questionamentos que deram origem ao pensamento filosófico: que é Deus; que é a realidade; que somos; de onde viemos; para onde iremos após a submissão à lei da entropia, da morte física? Somos simplesmente matéria inerte, desprovidos de vida, pensamento e sentimento, ou terá valido alguma coisa o aprendizado realizado e as teias de relacionamentos inefáveis que construímos (e, muitas vezes, destruímos) ao longo de nossas existências?
Pondo por terra a idéia da morte como fim, da imortalidade como meta, das vidas sucessivas como caminho, o paradigma espírita transcende a aparência e intenta alcançar o holos, para e passo, tal e qual concebido pelas idéias proposta nas vertentes cristãs.
Irradiando-se, a partir de sua abordagem primeira (no âmbito do fenômeno em si), todo o seu corpo e aspecto doutrinário, convergiu para as implicações religiosas, haja vista que, o Espiritismo nada descobriu nem inventou. Analisando os efeitos buscou desvendar as causas e o que se encontrava no campo do sobrenatural e do inexpugnável passou, sob a lógica de Kardec - convencido da veracidade dos fatos que se lhe apresentavam - ao campo da normalidade. Após a pesquisa e a codificação kardequiana, o Espiritismo passou a ser a primeira das correntes idealistas a aderir como tese a possibilidade da comprovação da existência do elemento espiritual - por excelência, imortal - capaz de, ao lado do elemento material constitutivo da realidade física - explicar a "multidão de fatos até então inexplicáveis", e da dados ao campo do sobrenatural, no dizer de Kardec. Esse o caráter holístico-paradigmático da Doutrina Espírita, resultante de um processo de hibridação de três vertentes do pensamento humano: científica -filosófica, e religiosa. Talvez, por isso, num mundo que se antagoniza (e agoniza) entre a crença niilista (e da morte de Deus) e a esperança de uma mera possibilidade da existência de algo que sobreviva a entropia do que conhecemos por vida e morte, o Espiritismo, por sua proposição de apreensão e compreensão de uma realidade que transcende ao aspecto das formas materiais, vem conquistando, pelo mundo, vigorosamente, novos adeptos, sem proselitismo e respeitando todas as diferenças de idéias e práticas religiosas.
PS: O presente artigo integra capítulo de livro - no prelo - e foi rejeitado pela comissão responsável pela seleção dos trabalhos a serem apresentados no III Simpósio Internacional de Religiões ocorrido na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, em 2009.