O papel feminino no mundo romano a partir de uma anetoda de petrônio

Por Marcelo Leandro de Campos | 22/12/2011 | História

Fonte: Satyricon, de Petrônio

            O propósito deste trabalho é analisar a questão da representação do gênero feminino na antiguidade romana a partir de um trecho do Satyricon de Petrônio, a anedota sobre “a dama de Éfeso”. Subsidiariamente é possível também tecer considerações sobre relações de poder e extratificação social no mesmo período.

 1- Abordagem Teórica

            O estudo de uma obra literária como fonte de informação sobre o imaginário e a realidade social de um determinado momento histórico partiu das considerações feitas nos trabalhos de Glaydson e Garraffoni:

“O texto literário constitui, portanto, uma forma de registro histórico, diferindo deste propriamente dito pela sua não intenção de assim se constituir.(...) Pensar a Arte de Amar e o Satyricon como veículos de informações históricas de seus contextos implica, necessariamente, em uma concepção destas obras como produtos de um imaginário social a ser decodificado, interpretado, uma vez que lida, simultaneamente, com questões como liberdade e poder (...); nesse sentido o implícito do discurso está carregado de múltiplos pensamentos encobertos”. (SILVA, Glaydson, p. 25)

            É necessário recorrer à interdisciplinaridade para uma correta análise do material; em Garrafoni/Furnari vemos uma descrição do esforço para reconstituir a estrutura lingüística do Satyricon a partir de uma análise filológica, onde concluem:

“Ao estudar o episódio da Dama de Éfeso, tomaremos como pressuposto, portanto, que a literatura é uma linguagem e que, para compreendê-la, torna-se necessário que recorramos às alegorias, seus significantes e significados. Por meio do questionamento do texto e da análise das estruturas e vocabulário, pretendemos estabelecer um diálogo com os personagens para explicitar os sentidos que produzem.” ( GARRAFONI/FURNARI, 94)

            O ferramental da história a partir da interdisciplinaridade permite ao historiador entender que um texto literário, como a sátira, possui características discursivas específicas, permeadas pelos interesses e visões de mundo daqueles que a criaram (GARRAFONI 2009, p. 94). Foi exatamente a falta de leitura crítica dos textos clássicos (como Petrônio, Apuleio e Juvenal) que produziu a interpretação vigente no final do século XIX, da população romana como uma massa amorfa, sem vontade própria, fútil, que não gosta de trabalhar e gasta todas suas energias na busca desenfreada do prazer. Ao passo que uma leitura crítica permite o acesso às camadas sociais e/ou identitárias menos favorecidas do mundo romano e sua ação como sujeitos de sua história em dinâmicas de resistência, acomodação e negociação. O estudo filológico a partir dos textos em latim revelou, ainda, que no Satyricon Petrônio dá voz aos diferentes segmentos sociais retratados em sua obra, reproduzindo sua linguagem social com todos valores orais e populares, com toda vivacidade e crueza que lhe são peculiares, permitindo o contato com todo o universo simbólico presente nas expressões cotidianas; como ressalta Paulo Leminski, “essa crueza da linguagem de Petrônio sempre foi maquilada nas traduções para as línguas modernas, onde giros eufemísticos, ditados pelo moralismo, substituem o verdadeiro nome das coisas”. (SILVA, Glaydson, p. 106-107)

 2- A Dama de Éfeso 

            A anedota surge durante uma viagem de navio empreendida pelos personagens principais do livro. Encólpio, o narrador das aventuras, descreve a anedota como um esforço de Eumolpo em destacar-se na conversação através de ditos espirituais, durante as quais “(...) começou a dizer mil bobagens sobre a leviandade das mulheres, sua facilidade em apaixonar-se, sua presteza em esquecer amantes.”(PETRONIO, CX, p. 150). Eumolpo, por sua vez, enuncia sua tese e a atualidade do assunto, declarando:

“Não há uma única mulher, por mais fiel que seja, que uma nova paixão não possa levar aos maiores excessos. Não é preciso, para provar o que eu digo, recorrer às antigas tragédias, citar nomes famosos nos séculos passados. Para isso, contar-vos-ei um episódio ocorrido em nossos dias.” (idem)

            Fazendo menção a um episódio atual, o autor dota a narrativa de maior capacidade persuasiva (LEÃO, p. 80).

            Garrafoni e Funari chamam a atenção para a construção discursiva do autor; eles chamam a atenção inicialmente para as expressões que ele emprega ao referir-se à dama: no início da narrativa ela é descrita como matrona (senhora) com pudicitia (grande reputação de castidade) a ponto de ser modelo para outras feminae (mulheres); ao expressar enorme dor pela morte do marido é definida como singularis exempli femina (mulher de exemplo singular). Ela está, nesse primeiro momento, encarnando o imaginário da virtude feminina herdado do pensamento tradicional romano, e enquanto isso o autor se refere a ela como matrona; o termo deriva de mater (mãe), indicativo do principal papel que lhe cabe na sociedade romana (SILVA, p. 896). No momento seguinte, em que chama a atenção do soldado romano, ela é agora a pulcherrima mulier (bela mulher); a expressão mulier era utIlizada para descrever a mulher de baixa extração, o extremo oposto da elevada matrona (FURNARI, GARRAFONI, p. 113). Nessa primeira visão a imagem da mulher age intensamente sobre a imaginação do soldado, numa interessante associação da imagem feminina aos mistérios do mundo subterrâneo (monstro infernisque imaginibus). Na percepção seguinte o soldado entende a cena a partir do imaginário da época: trata-se de uma mulher consumida de desejo pelo marido falecido. Ela está agora sendo descrita com um termo médio e de amplo alcance (mulher, feminam), nem tão alto como matrona ou tão baixo como mulier. Descrita como feminam ela é imediatamente associada à sua característica central, o desejo (desiderium). Glaydson também apóia essa leitura: a despeito das especificidades de sua posição social, todas mulheres possuem uma natureza comum, centrada no desejo (SILVA, Glaydson, p. 108).

            Quando o soldado lhe oferece comida, ela é agora uma muliercula (uma mera mulher); assediada, ela é descrita como abstinentia sicca (seca pela abstinência); a idéia implícita é de que a nobre mulher vai se deixando cegar pelo desejo até chegar à suprema desonra e degradação de copular com um homem desconhecido encima do túmulo do marido recém falecido. Ao mesmo tempo que isso ocorre a nobre família da matrona e toda sociedade crêem que ela permanece velando o falecido e sofrendo as agruras do luto, numa ácida referência à fachada de moralidade atribuída às matronas da alta sociedade.

            Nesse momento da narrativa a Dama de Éfeso cedeu desonrosamente à investida galante do soldado romano, até aqui o herói da anedota, cheio de iniciativa e no controle da situação. Mas subitamente os papéis se invertem: ocupado com sua aventura amorosa, o soldado descuida suas obrigações, e o corpo de um dos sentenciados é recuperado por sua família. Antevendo um castigo mortal, ele submete sua situação à dama de forma servil e subalterna. Toda iniciativa agora se transfere à dama (descrita no episódio ainda como mulier), que é agora misericordiosa e pudica (non minus misericors quam pudica) e ao mesmo tempo uma inteligente planejadora (prudentíssima femina) ao conceber um artifício para salvar a vida do soldado: ela manda (iubet) que o corpo do marido fosse colocado na cruz. Ao mesmo tempo em que salva a vida do soldado, a ação da dama reduz a condição do falecido, de um homem de importante posição social a de substituto de um condenado à cruz (punição enormemente degradante).

            Em suas conclusões, os autores ressaltam diversos elementos extraídos a partir da anedota: as regras do domínio patricarcal são burladas pelas artimanhas da mulher; ela logra sair do papel social que lhe é reservado, como figura submissa e casta, e revela-se dominadora e senhora da situação (FUNARI, GARRAFONI, p. 116).

            Delfim Leão chama a atenção para dois detalhes: primeiro, ao situar o episódio em Éfeso, o autor está nos dando informações importantes: trata-se de um importante porto marítimo, um grande entreposto comercial por onde circulam comerciantes e navegantes vindos de diferentes regiões do Império; a contestação dos valores de uma sociedade patriarcal tradicional aparece no contexto dos intensos contatos culturais entre Ásia e Europa propiciados pela universalização do controle romano no século I d.C., período onde normalmente se situa a produção da obra. Segundo, ao analisar como reagem os ouvintes à narrativa, ele compõe uma amostragem de valores: os marinheiros do navio riem a valer, claramente identificados com o soldado e atraídos pela fantasia de corromper uma matrona; Trifena, a única mulher presente, fica profundamente ruborizada (sugerindo, entre outras possibilidades, uma consciência pouco tranqüila com o relato); Licas, proprietário do barco e homem de posses, por sua vez identifica-se com o marido morto e com os valores patriarcais desonrados pela dama (LEÃO, p. 80).

            A mulher vista no Satyricon é dotada das contradições inerentes à sociedade romana nesse período: é uma sociedade que valoriza o ideário moral de uma sociedade patriarcal, que reserva à mulher o papel secundário e passivo, e suas obrigações com relação à fidelidade e castidade; como Glaydson lembra muito bem, outro trecho do mesmo Satyricon atribui catástrofes naturais e a ira dos deuses à inobservância por parte das mulheres das regras da velha moral romana (SILVA, Glaydson , p. 109). Ainda seguindo o ideário patriarcal, o monopólio da responsabilidade é masculino; os juízos de valor sobre a mulher via de regra são todos negativos: ela não é digna de confiança, não é sincera; não tendo controle sobre seu desejo, não pode ser fiel, e apenas um tolo pode esperar isso dela (idem, p. 111); e a lista prossegue: falsas, interesseiras, não confiáveis.

            Ao mesmo tempo, curiosamente, as mulheres do Satyricon são em sua maioria representadas como pessoas livres, independentes, cheias de iniciativa e profundamente dominadoras, controlando inclusive a vida dos homens (idem, p. 109). A mulher tem autonomia para se deslocar livremente pela cidade e algumas delas, como a sacerdotisa Quartila, tem enorme poder e status social. Outro elemento destacado pelo estudioso é a capacidade de mobilidade social demonstrada por algumas delas: Fortunata, por exemplo, a esposa de Trimalchio, o homem mais rico de toda narrativa, é definida como “pobre de origem” e em seguida como “a sagaz administradora que cuida detalhadamente de sua fortuna” (idem, p. 115).

“Ainda que dadas a ler pelo “olhar do inimigo”, dos homens, as mulheres descritas por Ovídio e Petrônio são representativas das mudanças nas condições femininas neste período. Ovídio e Petrônio, juntamente com outros autores da época, contribuem para a leitura de uma certa libertação das mulheres dos antigos costumes romanos, na medida em que dão a conhecer mulheres que querem ter o direito ao desejo, ao prazer, rompendo com toda aura de valores castos que a tradição romana lhes tinha legado” (idem, p. 140).

 3- A serva

            Há uma segunda personagem feminina na anedota, a serva da viúva (ancilla); definida como “criada fiel”, acompanha sua ama em seu retiro de luto e a serve; o ato de chorar junto com ela indica uma familiaridade que vai além da mera relação servo-senhor. Sua passividade inicial modifica-se completamente quando o soldado entra em cena; ela é a primeira a aceitar seus oferecimentos de comida e vinho, e ao dar-se conta do fracasso do soldado em convencer sua ama a comer, toma a iniciativa e vence sua resistência com um discurso bastante articulado e persuasivo. Mais tarde, diante agora do flerte do soldado, é a serva que a incentiva a ceder: “Podereis resistir a tão doces inclinações e neste triste lugar consumir vossos belos anos ?” (PETRONIO, CXII, p. 153).

            Nas atitudes da serva vemos novamente as características clássicas da mulher petroniana, de independência e controle; o que chama a atenção é que estas características estão presentes a despeito de sua condição de serva (escrava). Isso nos remete a um estudo de Fabio Faversani sobre a compreensão da dinâmica social a partir de relações diretas de poder; ele lembra a crítica de Finley à divisão tradicionalmente aceita da sociedade romana, associando extratos jurídicos às camadas sociais. Para o estudioso há tamanha inter-relação entre pobres e ricos (e grande possibilidade de mobilidade social) que ele considera mais válido o sistema de Alfody, que propõe uma divisão verticalizada opondo setores rurais e urbanos. No espaço urbano estariam lado a lado escravos, libertos, pobres livres e (a partir das relações de patronagem) os ricos (FAVERSANI, p. 44). Para ele a patronagem é a chave para compreender as dinâmicas sociais da sociedade romana, sobretudo quanto à mobilidade: o escravo, ao ser libertado, torna-se cliente de seu antigo patrão; a partir dessa relação pessoal de fidelidade e reciprocidade de favores, o antigo escravo constrói uma rede de relações sociais que lhe permite ascender socialmente (idem, p. 58). Os diálogos da serva com sua ama seriam ainda um exemplo das relações diretas de poder estabelecidas entre senhor e escravo; longe de serem uma “massa livremente manipulada, sem volição ou alternativas de afirmação, eles estabelecem uma dinâmica ativa que concilia resistência, cooperação e negociação como estratégias (de sobrevivência e afirmação) para atingir seus objetivos (idem, p. 51-56). As relações sociais são menos estanques do que se pensava, e dotadas de grande fluidez de idéias e percepções (GARRAFFONI, 2009, p.102).

             4- Conclusão

            Lourdes Conde Feitosa define de maneira muito abrangente a origem e o alcance dos estudos sobre gênero na antiguidade: as escolhas do historiador e as idéias apresentadas nunca são aleatórias, são políticas; o debruçar-se sobre o passado é uma forma de buscar perspectivas para pensar a própria sociedade contemporânea. As enormes mudanças que ocorrem nas relações entre os universos feminino e masculino, e nas relações entre gênero e poder, a partir de 1960, criam um interesse sobre as experiências e o olhar feminino sobre a História; as pesquisas revelam o que foi ignorado pelo discurso patriarcal de supremacia do homem sobre a mulher, ao mesmo tempo em que servem de justificativa para os paradigmas do novo discurso.

            A sociedade romana tem um caráter claramente patriarcal e as relações públicas e cargos políticos são monopólio dos homens; mas a complexidade social e jurídica vai muito alem disso; uma expressão como “povo romano” esconde uma série de diversidades jurídicas, econômicas, étnicas e lingüísticas; as relações entre feminino e masculino, sobretudo, são regidas pelos costumes próprios e pela legislação local. A ampliação do universo documental (moedas, inscrições, estátuas, tumbas, etc.) revela, por um lado, a presença de uma classe de mulheres abastadas que pratica uma intensa política de concessão de benefícios (como distribuição de alimentos) e patrocínio de obras públicas, desenvolvendo um complexo sistema de relações pessoais de clientela que envolve patrocínio de corporações de ofício e gerenciamento de propriedades particulares ou de negócios familiares.

“Também encontram-se referências da participação feminina em discussões políticas em escrutínios locais. Na Pompéia romana, foram encontrados cartazes de propagandas eleitorais (programmata) e inscrições em paredes (grafites), por meio dos quais indicavam os seus candidatos, manifestavam o seu apoio, discutiam e opinavam sobre a política local, mesmo sem poderem, legalmente, participar das eleições” (FEITOSA, p. 127).

            Toda a questão do confinamento feminino no lar é repensada; a visão da casa romana como espaço privado, exclusivo para descanso e convívio familiar, cede espaço para uma nova visão baseada em pesquisa arqueológica: as casas aristocráticas surgem agora como espaços onde se desenvolviam articulações políticas e relações de clientelismo, supondo uma participação feminina nas discussões políticas muito mais intensa do que imaginado. O mesmo ocorre em relação às classes baixas (mulheres livres pobres, libertas e escravas), onde elas agora são vistas participando ativamente nas dinâmicas econômicas (atuando como taberneiras, tecelãs, vendedoras, cozinheiras, açougueiras, perfumistas, enfermeiras, entre outros) e no espaço social (idem, p. 124-128).

            A autora chama ainda a atenção para outra importante dimensão do debate sobre gênero na antiguidade romana: trata-se de uma sociedade anterior à imposição dos valores do pensamento judaico-cristãos, com juízo de valor muito negativo em relação à sexualidade, e estão sendo na atualidade profundamente contestados; isso provoca evidentemente um novo olhar sobre o mito da devassidão moral dos antigos, destacando-se a percepção do sexo como componente agradável e natural da vida, ou a necessidade aparentemente tão moderna de querer compartilhar com outros o prazer sentido numa relação. A autora menciona grafites de Pompéia em que tanto o homem como a mulher aparecem como dominadores do ato sexual; é comum ver inscrições onde a mulher gosta de se definir como “possuidora”. Outro detalhe interessante é a referência comum à prática de cunilíngua, demonstrando uma busca comum de satisfação do desejo feminino e uma conexão sexo-afetiva entre homem e mulher baseada em outros parâmetros que não aqueles de dominação e controle (idem, p. 128-135).

 5- Bibliografia

LEÃO, Delfim F. Amor e amizade no Satyricon de Petrônio. Universidade de Coimbra. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8338.pdf. Consultado em 19/11/2011.

SILVA, Amós Coelho da. De Dido à Matrona de Éfeso. Cadernos do CNLF, Vol. XIV, Nº 2, t. 1. Disponível em: http://www.filologia.org.br/xiv_cnlf/tomo_1/892-898.pdf . Consultado em 19/11/2011.

SILVA, Glaydson José da. Aspectos de cultura e gênero na Arte de Amar, de Ovídio, e no Satyricon, de Petrônio: representações e relações. UNICAMP, Campinas. Julho, 2001.

FAVERSANI, Fábio. As relações diretas de poder enquanto instrumento analítico para a compreensão da pobreza no Satyricon de Petrônio. Revista de História, 1(I): 43-70, jan/jun 1996.

FUNARI, Pedro Paulo A. GARRAFFONI, Renata Senna. Gênero e conflito no Satyricon: ocaso da dama de Éfeso. História; Questões & Debates. Curitiba, no. 48/49, p. 101-117, 2008. Editora UFPR.

GARRAFFONI, Renata Senna. Marginalidade e exclusão: o caso do Satyricon de Petrônio. Dimensões, vol. 23. 2009. Disponivel em: http://www.ufes.br/ppghis/dimensoes/artigos/Dimensoes22_RenataSennaGarraffoni.pdf. Consultado em 19/11/2011.

GARRAFFONI, Renata Senna. Bandidos e salteadores na Roma antiga. São Paulo: Editora Annablume. 2002. Disponível em: http://books.google.com.br/books . Consultado em 19/11/2011.

FEITOSA, Lourdes Conde. Gênero e Sexualidade no mundo romano: a antiguidade em nossos dias. História; Questões & Debates. Curitiba, no. 48/49, p. 119-135, 2008. Editora UFPR.

PETRONIO. Satiricon. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Editora Abril, 1981.

 

ANEXOS

Matrona quaedam Ephesi

[CXI] "Matrona quaedam Ephesi tam notae erat pudicitiae, ut vicinarum quoque gentium feminas ad spectaculum sui evocaret. Haec ergo cum virum extulisset, non contenta vulgari more funus passis prosequi crinibus aut nudatum pectus in conspectu frequentiae plangere, in conditorium etiam prosecuta est defunctum, positumque in hypogaeo Graeco more corpus custodire ac flere totis noctibus diebusque coepit. Sic adflictantem se ac mortem inedia persequentem non parentes potuerunt abducere, non propinqui; magistratus ultimo repulsi abierunt, complorataque singularis exempli femina ab omnibus quintum iam diem sine alimento trahebat. Adsidebat aegrae fidissima ancilla, simulque et lacrimas commodabat lugenti, et quotienscumque defecerat positum in monumento lumen renovabat. "Una igitur in tota civitate fabula erat: solum illud adfulsisse verum pudicitiae amorisque exemplum omnis ordinis homines confitebantur, cum interim imperator provinciae latrones iussit crucibus affigi secundum illam casulam, in qua recens cadaver matrona deflebat.

"Proxima ergo nocte, cum miles, qui cruces asservabat, ne quis ad sepulturam corpus detraheret, notasset sibi lumen inter monumenta clarius fulgens et gemitum lugentis audisset, vitio gentis humanae concupiit scire quis aut quid faceret. Descendit igitur in conditorium, visaque pulcherrima muliere, primo quasi quodam monstro infernisque imaginibus turbatus substitit; deinde ut et corpus iacentis conspexit et lacrimas consideravit faciemque unguibus sectam, ratus (scilicet id quod erat) desiderium extincti non posse feminam pati, attulit in monumentum cenulam suam, coepitque hortari lugentem ne perseveraret in dolore supervacuo, ac nihil profuturo gemitu pectus diduceret: 'omnium eumdem esse exitum et idem domicilium' et cetera quibus exulceratae mentes ad sanitatem revocantur.

"At illa ignota consolatione percussa laceravit vehementius pectus, ruptosque crines super corpus iacentis imposuit. Non recessit tamen miles, sed eadem exhortatione temptavit dare mulierculae cibum, donec ancilla, vini odore corrupta, primum ipsa porrexit ad humanitatem invitantis victam manum, deinde retecta potione et cibo expugnare dominae pertinaciam coepit et: 'Quid proderit, inquit, hoc tibi, si soluta inedia fueris, si te vivam sepelieris, si antequam fata poscant indemnatum spiritum effuderis? Id cinerem aut manes credis sentire sepultos? Vis tu reviviscere! Vis discusso muliebri errore! Quam diu licuerit, lucis commodis frui! Ipsum te iacentis corpus admonere debet ut vivas.' "Nemo invitus audit, cum cogitur aut cibum sumere aut vivere. Itaque mulier aliquot dierum abstinentia sicca passa est frangi pertinaciam suam, nec minus avide replevit se cibo quam ancilla, quae prior victa est.

[CXII] "Ceterum, scitis quid plerumque soleat temptare humanam satietatem. Quibus blanditiis impetraverat miles ut matrona vellet vivere, iisdem etiam pudicitiam eius aggressus est. Nec deformis aut infacundus iuvenis castae videbatur, conciliante gratiam ancilla ac subinde dicente:

'Placitone etiam pugnabis amori? Nec venit in mentem, quorum consederis arvis?'
"Quid diutius moror? Jacuerunt ergo una non tantum illa nocte, qua nuptias fecerunt, sed postero etiam ac tertio die, praeclusis videlicet conditorii foribus, ut quisquis ex notis ignotisque ad monumentum venisset, putasset expirasse super corpus viri pudicissimam uxorem.

"Ceterum, delectatus miles et forma mulieris et secreto, quicquid boni per facultates poterat coemebat et, prima statim nocte, in monumentum ferebat. Itaque unius cruciarii parentes ut viderunt laxatam custodiam, detraxere nocte pendentem supremoque mandaverunt officio. At miles circumscriptus dum desidet, ut postero die vidit unam sine cadavere crucem, veritus supplicium, mulieri quid accidisset exponit: 'nec se expectaturum iudicis sententiam, sed gladio ius dicturum ignaviae suae. Commodaret ergo illa perituro locum, et fatale conditorium familiari ac viro faceret.' Mulier non minus misericors quam pudica: 'Ne istud, inquit, dii sinant, ut eodem tempore duorum mihi carissimorum hominum duo funera spectem. Malo mortuum impendere quam vivum occidere.' Secundum hanc orationem iubet ex arca corpus mariti sui tolli atque illi, quae vacabat, cruci affigi.

"Usus est miles ingenio prudentissimae feminae, posteroque die populus miratus est qua ratione mortuus isset in crucem."

A Matrona de Éfeso

CXI – “Havia uma mulher casada em Éfeso que era de uma castidade tão notável que levava as mulheres até mesmo dos povos vizinhos a visitá-la. Então, quando ela perdeu o marido, não se limitando a seguir o enterro com os cabelos soltos, segundo o costume geral, ou a bater no peito nu na presença da multidão, ela também acompanhou o defunto no túmulo e resolveu chorar e velar o corpo colocado na cripta, de acordo com o costume grego, por duas noites inteiras. Nem os pais, nem os parentes puderam afastá-la daquele local, pois ela se atormentava assim e buscava a morte através da abstinência de alimentos; os magistrados, repelidos por último, foram-se embora, aquela mulher de exemplo singular, por quem todos lastimavam, já passava o quinto dia sem alimento. A mais fiel escrava daquela mulher atormentada não se afastava dela e, ao mesmo tempo, não só compartilhava suas lágrimas com as de sua senhora, mas também reacendia a lâmpada colocada no monumento toda as vezes em que ela se apagava. Assim, pois, na cidade inteira era esse o único assunto, os homens de todas as classes sociais reconheciam que tal atitude se destacava como exemplo verdadeiro de castidade e de amor, quando, nesse meio tempo, o imperador daquela província ordenou que ladrões fossem pregados em cruzes ao lado daquele túmulo, no qual a mulher velava o cadáver fresco. Então, na noite seguinte, quando o soldado que vigiava as cruzes, para que ninguém levasse corpo para a sepultura, notou uma luz brilhando mais forte entre os túmulos e ouviu o soluço de alguém chorando, por um vício da raça humana ele desejou saber quem era, ou o que estava fazendo. Então, ele desceu para o interior do túmulo e, quando viu aquela mulher belíssima, primeiro ficou parado, como que perturbado por algum monstro ou por fantasmas infernais. Em seguida, quando viu um corpo de homem estendido e ainda observou as lágrimas e as faces golpeadas pelas unhas, evidentemente percebendo o que era – uma mulher que não conseguiu suportar a saudade do extinto marido – levou para aquele túmulo seu pequeno jantar e aconselhou aquela mulher chorosa a não persistir numa dor inútil e não dilacerar seu peito com um gemido que não lhe serviria em nada. Ele argumentou que todos teriam aquele mesmo fim e aquela mesma morada e ainda disse outras coisas com as quais as mentes atormentadas são reconduzidas à razão. Mas ela, chateada com aquela tentativa de consolo, castigou mais violentamente seu peito e depositou cabelos arrancados sobre o corpo do defunto. O soldado, contudo, não recuou, mas, com aquele mesmo estímulo, tentou dar alimento à pobre mulher, até que sua escrava [certamente corrompida] pelo bom cheiro do vinho, primeiro ela estendeu sua própria mão vencida até o espírito de humanidade daquele sedutor, depois, repetida a dose da comida e bebida, derrotou a obstinação de sua dona e disse: O que você poderá lucrar sendo aniquilada pela falta de alimento, sendo enterrada viva, entregando sua alma que ainda não foi condenada, antes que os destinos exijam? Acreditas que os restos mortais, ou os manes sepultados percebem teu sacrifício? Você não quer voltar a viver? Não quer usufruir das coisas boas da vida, enquanto ainda pode, dissipando esse erro próprio das mulheres? O próprio corpo do defunto deveria encorajá-la a viver? Ninguém deixa de ouvir, quando está sendo coagido a se alimentar, ou a viver. Assim, a mulher, faminta devido ao jejum de alguns dias, admitiu que sua perseverança fosse rompida e fartou-se de alimento não menos avidamente do que a escrava, que foi vencida primeiro.

CXII – Mas vocês sabem o que geralmente costuma inquietar a satisfação humana. Com as mesmas palavras ternas com que tinha conseguido que a senhora quisesse viver, o soldado abordou também a castidade dela. E aquele jovem não parecia disforme ou pouco eloqüente à virtuosa senhora, acrescentando-se a isso a influência de sua escrava, que dizia a tempo todo:

Ainda lutarás contra este agradável amor? [Não vem à tua mente nas terras de quem vieste a te estabelecer?] Para que ficar me alongando tanto? A mulher não mais se absteve de saciar aquela parte de seu corpo e o soldado vitorioso a persuadiu de ambas as coisas. Eles, então, deitaram-se juntos não só aquela noite, em que celebraram suas núpcias, mas também no dia seguinte e ainda no terceiro dia, evidentemente com as portas do túmulo fechadas, para que qualquer um que viesse ao monumento, entre conhecidos e desconhecidos, pensasse que aquela virtuosíssima esposa exalava seu último suspiro sobre o corpo de seu marido. Mas o soldado, encantado pela beleza da mulher e pelo mistério, comprava e levava para o túmulo, imediatamente ao cair da noite, tudo de bom que conseguia, dentro de suas possibilidades. Assim, os pais de um

crucificado, quando viram a guarda baixada, tiraram durante a noite o corpo pendurado e lhe prestaram a última homenagem. E o soldado logrado, quando viu no dia seguinte uma cruz sem cadáver, sentiu o chão sumir a seus pés e, temendo a punição, expôs à mulher o que tinha acontecido. Ele disse que não iria esperar a sentença do juiz, mas que iria determinar ele próprio para si a pena de morte, com a espada, por negligência. Por isso, ele queria que ela lhe concedesse um lugar para morrer e dedicasse aquele túmulo fatal a seu amante e a seu marido. A mulher, não menos misericordiosa que virtuosa, disse: Que os deuses não permitam que eu assista, ao mesmo tempo, aos dois funerais dos dois homens mais especiais para mim. Prefiro pendurar o morto a matar o vivo. Depois desse discurso, ela ordenou que o corpo de seu próprio marido fosse retirado do sarcófago e pregado na cruz que estava vazia. O soldado pôs em prática o plano genial daquela mulher sapientíssima e, no dia seguinte, o povo espantado ficou a se perguntar de que modo o morto tinha ido parar na cruz”. (Texto em latim e tradução cf. FUNARI, GARRAFFONI, p. 108)

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