O Mar, O Marinheiro e o Tempo
Por Cristiane Alves Pereira | 18/06/2009 | ContosO MAR, O MARINHEIRO E O TEMPO
Há algum tempo, não muito, que ela vinha fazendo viagens de navio, na companhia de um marinheiro que, às vezes, segundo ela, ainda se assustava com a agitação do mar.
Carregava três marcadores do tempo em sua bagagem. Um deles, marcava a manhã, um outro, para marcar a tarde e outro ainda que marcava a noite. O marinheiro carregava apenas um que, inclusive, fazia questão de deixá-lo estampado na parede da entrada do navio. Decorando o ambiente, como um troféu... Ela sabia que ele se orgulhava disto. Uniu os três em um só. Sincronizou os ponteiros... Às vezes, ela o invejava por isto. Lamentava o fato de que ainda precisaria navegar algumas milhas mar adentro e que, nem mesmo seu admirável marinheiro, com toda a sua sabedoria do mar, teria como poupá-la das viagens que ela ainda deveria enfrentar.
Havia se tornado um costume, quase um vício. Sempre que a noite chegava, ainda quando não fazia muito tempo que o sol havia se posto, ela já se alegrava. Era tomada de uma sensação boa. Ele estaria lá em seu grande navio, aguardando sua chegada. Às vezes, ele a esperava em pé na proa que, inclusive, era onde a acomodava em seus braços e de onde lhe deixava transparecer toda a sua sabedoria de homem do mar, apresentando-lhe a imensidão das águas e do céu.
Ela admirava toda aquela intimidade que ele tinha com o leme, com a âncora, com a bússola, com as coisas de marinheiro experiente, como ela o via. Mas, lhe incomodava perceber a necessidade que, muitas vezes, ele tinha em traçar as rotas. Ela preferia quando eles, por alguns instantes, ficavam à deriva. Era quando, sem querer, ele a conduzia a lugares pelos quais ela já havia passado. Sentia que lhes eram familiares. O porto, o cais. Não era preciso bússola, nem mapa. Ela era capaz de reconhecer as águas.
Sempre que chegava no porto, percebia que ele já aguardava ansioso. Era lá que ela encostava e deixava o seu barco enquanto se entregava, se depositava nos braços de seu marinheiro. Era neste momento que ele lhe tomava pelas mãos e adentravam à grande embarcação. O marcador do tempo era a peça coringa da decoração. Ela não poderia deixar de percebê-lo. A cada quinze minutos, soavam as batidas de seu pêndulo. Ela sabia, e ele também, que aquelas batidas os traziam de volta.
Ela conhecia um pouco das acomodações do navio, ele havia lhe apresentado à elas. Mas, ela também sabia da existência de alguns porões. Havia lugares onde, nem mesmo ele, ousou entrar novamente. Zonas de perigo... Ela acreditava que nessas áreas proibidas, estava estocada toda a munição. Dinamites, bombas... Coisas de grandes navios de guerra... Ela sabia, mas nunca permitiu que sua curiosidade a deixasse se aproximar mais do que julgava que deveria...
Havia muito de muito antigo no interior do navio... Coisas de muito tempo. Lembranças, sonhos, desejos... Às vezes, ela se assombrava. Sabia da presença de muitos fantasmas pelos corredores, em todo o convés. Ele a acompanhava, nunca a deixou sozinha, exceto por uma única vez, quando muito assustado com a eminência de uma grande tempestade, ao sair para atender ao chamado de seu velho rádio, separou-se dela por alguns minutos, quando ela ainda estava embebida da beleza da ilha onde haviam lançado a âncora. Assustada, quis sair correndo... Durante o tempo em que estiveram juntos, foi a única vez em que ela desejou estar longe, ir embora, voltar à terra firme...
Nem o navio, nem a história dele, foram capazes de afastá-la de seu marinheiro.Ela já o amava. Confiava nele e reconhecia sua paixão pelo mar, por navegar... Sabia que cedo ou tarde enfrentariam grandes tempestades, mas nem ela saberia explicar de onde lhe vinha tanta coragem... Enfrentaria o que fosse preciso junto de seu marinheiro... Ele, que lhe despertara desejos que, há muito estiveram adormecidos, merecia todo o seu amor e consideração. Presenteou-a com a lua, o mar, o céu e as estrelas. Era merecedor de todo o seu afeto. A fez reviver sensações boas... Havia conspirado, sem perceber, a favor de toda a sua capacidade criativa, seu reencontro com a poesia... Merecia ser amado! E, ela, realmente o amou... Com toda a sua força ela o desejou a cada dia. Mesmo quando o marcador do tempo soava que já era tarde, ainda assim, ela o amou... Sabia que não podia ficar... Ele também já não poderia... O tempo os chamava e, ninguém, em absoluto, enganaria o tempo... Ela chorou... Chorou todo o seu choro reprimido, engasgado, sufocado... Reviveu toda a sua dor de mulher em busca de um porto, de um marinheiro...
Visitou todo o seu passado através de suas lembranças. Tinha a certeza de que faria viagens mais longas. Lamentava o fato de ter que dizer adeus...
O navio seguiria viagem e, desta vez, ela ficaria no porto. Era tarde... Os séculos marcavam a distância entre os dois... De repente, tudo se tornou passado... O navio, o porto o marinheiro, as viagens...Entregou de volta à vida o que não lhe pertencia... Generosamente, pode ficar apenas com o que era seu... Tudo era lembrança... Por instantes foi tomada por um sentimento bom, que alegrou-lhe a alma... Estava mais forte, plena... Seu coração lhe oferecia um lugar gostoso, seguro... Se alegrou... Acenou para o marinheiro... Agora, ele já poderia partir, pois estaria sempre junto dela...
Pensou que, em alguns momentos, o tempo uni e, em outros, ele afasta... Mas, isto já não a assustava... Era bom saber... Ela realmente pode amar... Ficou feliz, pois estava certa de que também poderia ser amada... O tempo a fez entender...
Estava ela em seu barco, em alto mar e FELIZ...
FIM