O Mal Kabbalístico

Por Germano Brandes | 09/05/2016 | Filosofia

Mal Kabbalístico

     De acordo com uma antiga lenda judaica, Lúcefer, o Portador da Luz, fora um dia o mais alto de todos os Seres angélicos. Em termos kabbalísticos, estava no nível do sétimo céu, logo abaixo do Criador, no centro da Árvore da Emanação. Isso lhe proporcionava uma posição excepcional favorecida, até a chegada de Adão. Quando o homem, a imagem completa de Deus, foi trazido do plano do Divino e criado no sexto dia, todas as hostes angélicas ficaram cientes de haver agora um Ser em existência mais perfeito que eles, pois embora nessa época superassem Adão, ele os suplantaria em experiência e conhecimento de todos os mundos.

     Do Grande Miguel para baixo, a maioria dos anjos reconheceu Adão como o filho de Deus, mas Lúcifer não, pois não via de que forma essa criatura, até então inocente, poderia ser algum dia o seu senhor. Por esse motivo, uma competição foi organizada pelo Divino, a fim de demonstrar que, embora Lúcifer tivesse grandes poderes, não possuía uma completa semelhança ao Santo, nem o favoritismo especial conferido a Adão. Quando Lúcifer perdeu a disputa, sentiu que seu orgulho havia sido ferido. Por isso, deixou os Céus cheio de ódio, levando consigo todos os seres angélicos descontentes, que se tornaram, então, parte das hordas demoníacas que serviriam a Lúcifer em seu papel como Satã.

     Satã em hebraico significa “o que testa”, e assim ele é empregado pelo Santo, pois nada no Universo é desperdiçado, mesmo sendo rebaixado em sua patente devido à conduta errônea, ou por escolha própria. Desse modo, possuindo Lúcifer a mais sutil forma de inteligência da criação, foi convocado para tentar a humanidade, começando por Adão e Eva no Mundo da Formação, mais conhecido como Éden, o plano da alma. O lugar vago com a queda de Lúcifer foi um dia preenchido por Enoc, o primeiro humano a compreender completamente todos os níveis dentro de seu ser. Assim, Enoc subiu através dos mundos, suplantando os anjos que de início se opuseram a que esta criatura, ainda cheirando a Terra, assumisse a posição deixada por Lúcifer. A partir daí, Enoc, então já transfigurado no arcanjo Metatron, iniciou seu trabalho, que era ensinar a humanidade como evoluir e compreender que no relacionamento espelhado entre o microcosmo e o macrocosmo, Deus olha para Deus, Lúcifer, é fácil de entender, se opõe a qualquer ser humano capaz de atingir o nível de Enoc. Por esse motivo, se tornou para ele uma questão de honra pessoal testar, tentar e apanhar em armadilhas todos os que entram no caminho da auto-realização. Esta operação é bem diferente do mal generalizado, que busca estabelecer o caos e promover o ódio nos níveis coletivos das nações e das disputas mesquinhas entre as pessoas. Lúcifer está diretamente interessado naqueles indivíduos que possuem alguma capacidade espiritual, porque essa é justamente a área de maior ressentimento, pois ainda tem saudades de sua glória perdida.

     Como é de esperar, a pessoa mais vulnerável à atenção de Satã é o tutor. Embora um tutor possa ter tido encontros anteriores com o Mal sob a forma de outras pessoas ou de acontecimentos externos, este ataque específico é armado por dentro. Possuir conhecimento é ter acesso ao poder. Contudo, isso só pode ser manifestado em relação a algo, seja uma determinada situação ou uma pessoa fácil de ser manipulada, sabendo-se o que fazer e o que acontecerá. Quando tal habilidade é utilizada a serviço de alguma coisa boa, como um médico procurar uma disfunção do corpo, ou um juiz encontrar uma solução satisfatória para o conflito de interesses, tudo vai bem. Mas em uma situação esotérica, onde as questões são de longe muito mais sutis, há uma linha muito tênue separando o dirigir do manipular. Nos estágios iniciais de um novo grupo a situação é simples porque as regras são óbvias, como chegar a tempo e só falar quando tiver algo a dizer. Mais tarde, à medida que o grupo começa a se integrar e os níveis mais psicológicos se ativam, existe uma definição menos clara das regras, pois cada situação é mais complexa e peculiar em si. Tome, por exemplo, um indivíduo que vem ao tutor para um conselho conjugal. O caso pode parecer óbvio, e o tutor pode ser tentado a formular um comentário que poderia ser tomado como uma instrução expressa pelo estudante, que então a executaria sem questionamento posterior, porque acredita que o tutor sempre está certo. Tal situação é claramente suspeita, porque ninguém pode estar sempre certo e, em especial, sobre o casamento dos outros, o que sempre possui fatores só conhecidos pelos parceiros. Apesar disso, existem alguns tutores que dirigiram grupos, e até mesmo escolas, que emitem leis capazes de afetar profundamente a vida de muitos estudantes, e nem sempre em seu benefício. Isso acontece porque o líder passou a acreditar, com a excessiva atenção dada às palavras, ser ele um oráculo esotérico. Quando isso acontece, então pode-se aceitar que Lùcifer foi bem-sucedido em bloquear o Caminho do tutor, e de muitos do grupo.

     Não importa se Lúcifer é visto por muitos kabbalistas como uma entidade em si, e por outros, como um princípio cósmico. O que importa é que, em determinado ponto, qualquer pessoa na posição do tutor é levada ao auge da tentação e ali lhe é oferecido o domínio sobre seu mundo, no caso, o grupo. Tal momento ocorre quando a dependência e a adoração do grupo, intensificadas pelo crescente fluxo de energia obtida por sentar-se na cadeira, abre o Tiferet do tutor, mas, em geral, acontece apenas quando as reuniões estão, de fato, se tornando sem rumo. Insinua-se no tutor, e se manifestará inconscientemente, até se fazer notar sob formas, como o gesto displicente ou o tom santo de voz que sugere uma insinuação da arrogância. Em algumas pessoas este fenômeno será muito dramático e até mesmo teatral; em outras será apenas discernível aos perceptivos, que verão o grupo, pouco a pouco, deslocar sua direção da Árvore e focalizar-se sobre a personagem do tutor. Esta crise é a primeira, das muitas que chegarão ao grupo, bem como no tutor.

     Em algumas circunstâncias, e nos baseamos em muitas Tradições, o tutor se torna tão identificado com seu papel que todos deixam de ver quem ele é na realidade. Na verdade, alguns perdem todo o sentido de identidade individual, enquanto gradualmente assumem as pompas externas da tradição. Tais situações são testemunhados na Índia hindu e na Pérsia islâmica, entre os judeus hassídicos e na Igreja Ortodoxa. O carisma de muitos líderes se deriva desta conspiração entre eles mesmos e seus seguidores. Não é incomum a arrogância fundamentada em uma conexão original interna, e subseqüente possessão. Nisso, a pessoa é tomada por seu próprio aspecto luciférico, e desempenha o papel de líder espiritual, sem qualquer conhecimento ou consciência. O resultado é que muitos são desencaminhados por identificar a Tradição com aquela pessoa, e não conseguem ultrapassar o estágio infantil, até superar o seu líder, ou abandonar a organização dirigida por esse líder.

     Essa é uma situação muito grave, pois não só alguns tiveram seu crescimento interno interrompido, como muitas pessoas talentosas passarão um tempo perdidas de si mesmas e de seus destinos por serem tentadas pelo Caminho que aparenta ser um modo espiritual de vida. Aqui é onde o princípio luciférico é extremamente habilidoso. Pode convencer uma pessoa de que está certa, quando está obviamente errada para qualquer outra fora do campo de fascinação de Lúcifer. Embora seja, muitas vezes, o caso da nova roupa do imperador, não está sempre óbvio, porque ás vezes não é uma questão de conduta correta, mas de motivação. Felizmente, se uma instrução não vier da bondade, então não importa quão correta possa parecer de início, porque eventualmente se tornará pervertida em sua manifestação. Assim, intima-se as pessoas a jejuar pelo motivo errado e a executar exercícios difíceis, que danificam mais que fortalecem. Uma doença ou um esgotamento nervoso são a restrição máxima. O Conhecimento mal conduzido, ou distorcido, leva as pessoas para fora da realidade e para o nível anormal que o tutor luciférico possa permitir na cadeira do grupo. Isso corta, naturalmente, a origem do fluxo dos mundos superiores e, assim, a qualidade e a integridade do grupo decai de modo gradual, até que exista um distinto sentido de fantasia, ou pior, de morte nas reuniões. Neste ponto, um grupo começa a se desintegrar, se não for corrigido; dos membros mais perceptivos, abandonam os que não aceitam adorar no santuário o professor possuído. Tais grupos podem sobreviver por muitos anos. Algumas pessoas se encantam com o estranho carisma e caem sob o seu fascínio, até qualquer substância, que um dia tenha existido, esgotar-se e apenas um resíduo permanecer. Algumas vezes, algo dramático remove o tutor, como um acidente. Em outros casos, o grupo se deteriora, o tutor começa a beber, ou brinca com algum jogo autodestrutivo, deixando perplexos muitos do grupo. Felizmente, tais situações não são comuns, e muitos tutores que escorregam, após diversos avisos de seus superiores, ou da Providência, sob a forma de acidentes significativos, acordam a tempo e continuam o Trabalho com muito mais sabedoria que antes.

     A maior parte disso não é percebida pela maioria do grupo. Os mais sensíveis ou inteligentes podem sentir que o tutor está passando por uma fase difícil, ou que, em certas ocasiões, é demasiado severo, astuto ou mesmo casual. Tal crise se manifesta sob diferentes formas, de acordo com o temperamento e nível do tutor. Alguns estudantes podem suspeitar que alguma coisa está faltando, porque o tutor está atuando fora do papel, mas atribuem a algum problema pessoal; assim, não compreendem estar tudo diretamente relacionado a eles. Se o tutor reconhecer a situação, então ele, em geral, deverá trabalhar muito para se livrar da função aprisionadora construída ao redor deles. Alguns podem manter uma atitude muito humilde, até que Lúcifer se retire sabendo que perdeu essa partida. Um encontro casual com o Mal não é bem como a maioria das pessoas imagina, porque envolve um conflito dentro da alma entre os dois impulsos, o bem e o mal, como diz a Kabbalah. Esta situação faz a humanidade única, no sentido de temos escolha. Contudo, a dádiva do livre-arbítrio não é completamente testada até nos transferirmos da rotina dos processos do ego para a tríade do despertar, que conduz ao lugar da alma. Pelo fato de todos os tutores deverem estar no Trono de Salomão, em Tiferet, entre essas duas tríades, devem estar abertos à tentação máxima, e qualquer fraqueza deve ser corrigida antes que se permita ao grupo seguir adiante sob a sua direção. A confiabilidade e a integridade são de suma importância, e Satã está aí para conferi-las.