O lugar de onde se vê e as representações de quem vivencia

Por Deina Anunciação | 16/07/2024 | Arte

O LUGAR DE ONDE SE VÊ E AS REPRESENTAÇÕES DE QUEM VIVENCIA

 

Deina Anunciação[1]

 

Resumo

Este artigo intitulado O lugar de onde se vê e as representações de quem vivencia[2] tem como situação problema as relações entre o teatro e como os atores representam seus personagens. Para isso, os objetivos foram: perceber se existe tensão entre as representações dos atores e as que eles têm de seus personagens; identificar os mecanismos utilizados pelos atores para expressar seus personagens; e observar como os atores traduzem seus personagens no palco. A fim de alcançá-los, adotou-se como metodologia o estudo de caso de natureza qualitativa, incluindo observação, registros e entrevista aberta sem estruturação como instrumentos de coleta de dados. Os resultados apontaram para uma repercussão na vida do ator do trabalho teatral no qual as representações estão relacionadas aos gestos. Daí, concluiu-se que o que há entre o lugar de onde se vê e as representações de quem vivencia é o poder de dentro de cada um que, com olhar único, pode estender-se ao exterior do indivíduo.

 

Palavras-chave: Teatro. Lugar. Pessoa. Posição. Representações.

 

ABSTRACT

This article titled O lugar de onde se vê e as representações de quem vivencia has as problem situation the relations between the theater and how the actors represent their characters. For this, the objectives were: to perceive if there is tension between the representations of the actors and the ones that they have of their personages; Identify the mechanisms used by the actors to express their characters; And watch how the actors translate their characters onto the stage. In order to reach them, a case study of qualitative nature, including observation, records and open interview without structuring as instruments of data collection, was adopted as a methodology. The results pointed to a repercussion in the life of the actor of theatrical work in which the representations are related to the gestures. Hence, it was concluded that what is between the place from which one sees and the representations of those who experience is the power within each one that, with a single look, can extend to the exterior of the individual.

 

Key Words: Theater. Place. Person. Position. Representations.  

 

INTRODUÇÃO

Este artigo aborda o lugar de onde se vê e as representações de quem vivencia como mote para pensar as relações entre teatro e como os atores representam seus personagens. A discussão parte de experiências individuais e coletivas de atores, autores de seus próprios personagens, a partir de suas vivências em aulas e ensaios de teatro.

Essa pesquisa começou no Curso de Iniciação Teatral na Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB em 2016, tendo como situação problema as relações entre o teatro e como os atores representam seus personagens.

Para o trabalho em questão, houve os seguintes objetivos específicos: perceber se existe tensão entre as representações dos atores e as que eles têm de seus personagens; identificar os mecanismos utilizados pelos atores para expressar seus personagens; e observar como os atores traduzem seus personagens no palco.

Para tanto, este artigo mostra trechos das cenas da peça Atrás dos Muros, quando necessários, destacados em recuo e enumerados em notas de rodapé, conforme a organização do diário de campo, e, não, da sequência da apresentação teatral.

Para articulações entre tais cenas e referencial teórico, há diversos autores, como Stanislavski (2001), Kusnet (1985), Ostrower (2001), Artaud (2006), Jovchelovitch (1995) e Xavier (2002), entre outros, que serão abordados nesse trabalho para a ampliação do conhecimento de temas em discussão.

Stanislavski (2001), Kusnet (1985), Ostrower (2001) e Artaud (2006) para tratar de assuntos especificamente referentes ao teatro; Jovchelovitch (1995) e Xavier (2002) para situações de representações, lembrando que ambas as especificidades não deixam de ter interligações.

Em busca dessas articulações e dos objetivos em questão, adotou-se como metodologia o estudo de caso de natureza qualitativa, usando como técnicas a observação, os registros e a entrevista aberta sem estruturação, já que esta “é um diálogo que o pesquisador estabelece entre uma ou mais pessoas que guardam informações sobre um tema e problema de pesquisa”. (GROPPO; MARTINS, 2007, p. 51).

Com isso, esse trabalho carrega pertinência artisticoeducacional e oportuniza a discussão sobre representações ou percepções de teatro e de ser humano. Além disso, tem relevância no sentido em que o teatro não está dissociado de questões econômicas, políticas, morais, sociais, culturais e, portanto, pode ser uma arma nas relações de poder. Resta saber quem a portará e como virá a utilizá-la.

No teatro, como em outros espaços, ator e personagem podem ter diversas representações, gerando interpretações que nem sempre coincidem com as que o ator tem de si e/ou daquelas que deve expressar pelo seu personagem. Se for o caso, cabe pensar “—Mas usou as expressões faciais, os gestos e o modo de andar adequados? – Tórtsov[3] frisou esse ponto” (STANISLAVSKI, 2001, p. 59), o que leva a compreender que essa é uma questão que contribui para tornar visíveis experiências interiores invisíveis.

É uma percepção que representa importância no espaço artístico ao criar, desenvolver um personagem e convém observar a posição aqui assumida de que a palavra teatro, em consonância com a plataforma Slide Player[4], vem do “grego theatrón, que significa “o que se vê”, thea: olhar com interesse; e tron: donde; ou seja, “o lugar de onde se vê””.

Representação, um dos conceitos chaves dessa pesquisa, vem do latim repraesentare, que “significa “tornar presente ou manifesto; ou apresentar novamente”, e, no latim clássico, seu uso é quase inteiramente reservado para objetos inanimados”. (LAGARDE, 1937; HAUCK, 1907, p. 479 apud PITKIN, 2006, p. 17).

Sobre personagem, de acordo com o Site de Etimologia da palavra, vem “do latim personna, que vem do etrusco phersu, “máscara teatral”, do grego phósopon, “face, máscara””.

A partir da compreensão dos referidos conceitos etimológicos, vale mencionar que falar do lugar de onde se vê é mostrar, ao menos, um pouco de quem o indivíduo é e, consoante a isso, faz-se necessário pensar sobre o espaço que se ocupa onde quer que esteja, abrangendo não apenas o universo vivido, porém o posicionamento, a postura assumida de fato, pois cada pessoa que se expressa o faz de algum lugar.

 

2 TEATRO COMO ELEMENTO ESTRUTURANTE DAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS 

O professor/diretor é um mediador entre o teatro e os atores[5], propiciando espaços de (re)criação de uma obra que pode ser produzida a partir da experiência de vida que vai sendo descoberta durante esse processo, envolvendo vivência e simbolização, oportunizando reorganização de pensamento e ampliação de possibilidades, representando uma estruturação nas relações entre os indivíduos.

O teatro é permeado por representações de todo tipo e é impossível discuti-las no espaço em pauta sem falar da interface teatro e vida real, considerando que ambos dialogam valores imbricados. As representações são imagens atribuídas a personagens, a pessoas. O teatro é um espaço relacional em que a categoria social ator aciona e vivencia representações carregadas de valores morais.

O teatro, então, realmente pode ser uma arma porque, entre outras razões,

A força da convicção do teatro é tão grande que ele é capaz de convencer – embora provisoriamente – um espectador que vem com uma idéia preconcebida sobre o espetáculo e baseada numa convicção pessoal profunda. (KUSNET, 1985, p. 7).

Em busca dessa força, as cenas da peça Atrás dos Muros, escrita pelos estudantes/atores do grupo pesquisado, expressam situações cotidianas e conflituosas que precisam ser repensadas e que, por estas se manifestarem com tanta frequência, parecem despercebidas. Perante essas situações, o indivíduo deve tomar atitudes que tornem saudáveis as relações interpessoais.

Diante disso, pode-se imaginar a forma de o indivíduo representar a si mesmo e como percebe ser representado, que nem sempre coincidem, podendo gerar tensão entre as próprias representações e o tratamento relacionado às atribuídas por outrem.

As representações sociais são um sistema ou sistemas de interpretação da realidade, que organiza as relações, o indivíduo com o mundo e orienta suas condutas e comportamento no meio social, permitindo-lhe interiorizar as experiências, as práticas sociais e os modelos de conduta de objetos socializados. (XAVIER, 2002, p. 22-23).

Com os referidos sistemas, as representações são imagens atribuídas aos personagens por conta de seus comportamentos e pelo visualizar e representar das pessoas, e os atores os vivem e os apresentam. Assim, também o teatro é um sistema de interpretação, uma arte que organiza as relações entre as pessoas a partir não só da simples reflexão vinda de si mesmo, mas da reflexão sobre quem o indivíduo é, de onde vem, em que universo vive e que mundo deseja que exista e (sobre)viva. 

Nesse contexto, diversas temáticas podem ser trabalhadas. O fato, contudo, de, no teatro, temas serem abordados não garante que os problemas que lhe são atribuídos sejam sanados. É uma forma de oportunizar discussões que contribuam para iniciativas, atitudes saudáveis com a dimensão com a qual se tem contato.

Essas contribuições não ocorrem somente quando a plateia assiste a uma peça, já começam antes, pois o ator tem de estudar os comportamentos dos personagens, o que pode fazer com que ele passe a ter outro posicionamento, pelo menos, diante dos temas do trabalho de modo mais criativo.

É preciso ter consciência de que o pensamento humano é um processo contínuo, e que as ideias de hoje são uma consequência das ideias do passado. O pensamento criativo é evolutivo, dotado de insights, mas nunca é totalmente novo. (HALLAWELL, 1994, p. 52 apud TASSO, 2010, p. 95).

Criam-se interpretações da realidade e, com base nisso, histórias são elaboradas, cenários e figurinos são produzidos e diversas obras de diferentes linguagens são geradas.

As interpretações também servem para o trabalho de construção do personagem que pode contribuir para eliminar problemas do presente ou, se isso não for possível, ao menos, superar problemas do passado do ator ou passar a lidar com situações cotidianas, para tornar mais salutar a sua convivência com os outros.

Isso se deve ao fato de que, ao criar o personagem, o ator[6] imagina para a nova pessoa, infância, trajetória até a idade na história elaborada, criando acontecimentos positivos e negativos, podendo fazer o indivíduo recordar fatos ocorridos na própria vida.

Ao pensar acerca de por que os personagens têm determinados comportamentos, o artista pode, em uma viagem dentro de si mesmo, acabar compreendendo por que age de determinado modo e, assim, tentar mudar, se ele se permitir.

Nesse contexto, é possível inferir que viver é uma criação não apenas do ponto de vista biológico, porque o ser humano é capaz de estar sempre se reinventando, criando formas para manter-se vivo mesmo após a morte. E a arte é uma delas.

Pode-se afirmar, obviamente, que criação e vida têm ligação fortemente entrelaçada e, para Ostrower (2001, p. 53), “A criatividade é, portanto, inerente à condição humana”. No entanto, é importante acrescentar que habilidade, criatividade, potencialidade não se restringem à arte.

Desenvolver potencialidades e processos criativos por intermédio do teatro é alimentar uma fome que gera mais fome, e a busca por algo para saciá-la deve ser incessante, porque, considerando que esses processos não se restringem à arte, quem desiste dessa busca terá outra fome.

Através do teatro, por esse apetite, o ser humano nunca fica absolutamente satisfeito e, por isso, deseja sempre mais, muito além de onde pode alcançar. Dessarte, o teatro é lugar de insatisfação, havendo sempre, pelo menos, um motivo para transformação de algo ou de alguém.

Na verdade, trata-se de um processo contínuo de insatisfação, satisfação, insatisfação, por obter alimento para fortalecer-se e necessitar alimentar-se de novo. Como seria a vida se todas as pessoas estivessem satisfeitas com tudo o tempo todo?

O teatro fornece bases para a decisão sobre o que fazer com o que se busca, além de ter qualidade estruturante na organização das relações entre os indivíduos. Pode apresentar uma dimensão intrapessoal, considerando que a pessoa pode utilizá-lo como recurso para relacionar-se com os próprios sentimentos e pensamentos, algo importante no agir ao ser confrontada consigo mesma e com situações comuns ou não.

 

2.1 O CASO EM ESTUDO: THEATRON

Em busca de compreender O lugar de onde se vê e as representações de quem vivencia, pesquisou-se sobre essa temática no Curso de Iniciação ao Teatro, realizado pelo CFA - Centro de Formação em Arte/ FUNCEB - Fundação Cultural do Estado da Bahia, na turma do turno matutino, localizado na Rua do Bispo – 29 e 30, Pelourinho, Centro Histórico de Salvador – Bahia.

Iniciou-se o estudo com a apresentação da autora deste artigo ao professor e diretor e ao grupo, passando pelo processo de seleção dos candidatos às poucas vagas do curso através de audição. Foram muitos os inscritos.

A primeira vez no local foi em abril de 2016 e, na ocasião, o professor explicou como seria o teste e que este deveria acontecer na terceira data de comparecimento. Ouviu a todos um por um.

Ao longo de 2016, ocorreram muitas conversas, como entrevistas abertas sobre as questões que nortearam esta pesquisa. Houve diálogo com os colegas e se manteve contato com eles e o professor por telefone, e-mails e WhatsApp.

No primeiro dia do processo de seleção do curso, em abril, o professor fez atividades de aquecimento, improvisações e exercícios de respiração junto ao grupo, avaliando e orientando que observassem a postura de cada um enquanto falava. A sala era pequena para a quantidade de pessoas e, principalmente, para o conhecimento que professor e estudantes chegariam a ter.

Em maio, o grupo fez improvisações em dupla, trabalhou visão periférica, formas de o artista se posicionar no palco, usando o exemplo de não permanecer de costas para o público, a menos que fosse deste modo a apresentação; maneiras de finalizar uma cena, sugerindo seu congelamento; e desconstrução do eu, pensando desde já em personagens diversificados a serem interpretados. Nessa fase, o grupo foi dividido em dois, visando organizar elenco e temas de interesse para o desfecho do curso.

Em junho, o diretor orientou a turma sobre a criança dentro de cada um e a sustentação da emoção[7] como uma das questões fundamentais na carreira de um ator, pois estão relacionadas ao crescimento e amadurecimento do artista. Não se mantém um personagem sem sustentar suas emoções.

Em julho, ao trabalhar cenas criadas a partir de improvisações das aulas anteriores que estariam na composição da peça Atrás dos Muros, o diretor orientava uma atividade em que atores entravam na história dos colegas, e, não, na própria cena. Isso foi feito outras vezes.

Nos meses seguintes, o grupo fez outros exercícios envolvendo formas diversificadas de leitura de textos, trabalhos de dicção, ensaios mais específicos para cada duas pessoas que contracenassem juntas e montagem da peça. Esta teve seus textos criados pelos próprios estudantes do curso, discutindo e fazendo críticas a realidades observadas e/ou vivenciadas pelos mesmos.

No decorrer da pesquisa, ocorreram aulas, ensaios em lugares diferentes: no CFA – Centro de Formação em Artes, nas duas primeiras datas do processo seletivo; no TCA – Teatro Castro Alves, as audições; no Liceu de Artes e Ofício, por semanas; e ao TCA voltou, permanecendo até a montagem da peça Atrás dos Muros.

A turma chegou a fazer alguns ajustes de apresentação no Liceu antes do fechamento do curso com a exibição da referida obra no IRDEB – Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia.

O professor tinha uma vasta experiência em teatro. Sugeria filmes, vídeos, livros e exercícios para um estudo fora da sala de ensaio, propondo sempre atividades diversificadas e, por isso, as aulas nunca se tornavam enfadonhas. O grupo, várias vezes, executava o que realmente precisava ser feito: falas; posturas; gestos de personagem e memória emotiva, a qual era um trabalho em que se usavam experiências pessoais para viver a cena; e muitas outras atividades.

A criatividade fazia parte da metodologia do professor, visto que potencializava a imaginação humana e, com base nisso, os atores passavam a rever informação e pensamento. E enxergavam obras sob uma ótica que não aquela anterior ao curso, analisando mais tecnicamente intenções de personagens e de quem os interpretava, gestos de elencos de vídeos, filmes, peças e novelas.

Diante de tantas informações e pensamentos, nos estudos de teatro, que o grupo tinha de processar durante seu desenvolvimento artístico, era possível se manifestar alguma tensão em lidar com representações de atores e personagens.

 

3 TENSÃO E REPRESENTAÇÕES MEDIADAS PELO TEATRO

As aulas de teatro e ensaios da peça revelaram linguagem e temas de cenas, além de tensões nas representações exibidas pelos personagens e atores. Essas tensões foram trabalhadas como desafios, porque nenhum ator fez papel de alguém com comportamento muito próximo ao da própria personalidade, exprimindo cada um suas interpretações de acordo com o que percebia do ser humano.

É notável que nem sempre a tensão está entre a representação de si e a representação do personagem. Pode estar nas reações do corpo, como a tremedeira que permanecia após o término de cenas ensaiadas, quando tremer não era característica do personagem.

Caso observado nas atrizes, autoras de Cida e Joana da cena sobre o lixo, que ficaram trêmulas de raiva um pouco após o término da cena pela intensidade em que permaneceram suas emoções. Essa reação não estava nos comportamentos de tais personagens. No entanto, foi trabalhada para não haver dificuldade em alguma apresentação por parte das artistas.

Pode surgir tensão também na distância de personalidades ator e personagem, algo observado no processo de montagem de Atrás dos Muros, quando uma atriz teve de utilizar músicas mais agitadas em casa, a fim de trazer para si os sentimentos de sua personagem, Lua, uma pessoa que estava muito irritada com sua companheira.

A situação nem sempre é tensa pelas representações que não coincidem, pode ser pelas emoções que não se harmonizam. Lidar com essa desarmonia no teatro pode ser utilizado como motivo para tentar descobrir, perceber, entender por que determinadas coisas acontecem ou como podem ser (des)estimuladas, propiciando o surgimento de ideias.

Todavia, “em primeiro lugar, para ter ideias é preciso pensar” (HALLAWELL, 1994, p. 51 apud TASSO, 2010, p. 94-95) e, do contrário, como seria possível criar um personagem com a representação que o autor quisesse?

Estar livre para criar pode proporcionar prazer e estranhamento pela liberdade de pensar que, quando não há imposto um limite para fazê-lo, pode assustar por causa do condicionamento intelectual e até se tornar uma ameaça, por poder contribuir para chegar a lugares imaginados como, antes, inalcançáveis. E, portanto, por enquanto, desconhecidos.

O lugar, entretanto, de onde a pessoa olha com interesse nem sempre é onde ela está, podendo gerar uma tensão entre uma posição e outra, um ocorrido na cena[8] de Lua com sua namorada Gio.

Lua, ao referir-se aos pais de Gio, afirmou que eles são preconceituosos, dizendo:

--SÃO, SIM, E VOCÊ SABE DISSO! Viu a cara deles quando falou onde eu morava. Tanto que começou a enfeitar a apresentação, “Ah, mas ela tá na faculdade”. Você disse “mas”, Gio.

Considerando essa fala, é possível pensar: Cursar faculdade define o caráter de uma pessoa? E onde mora define? Pelo visto, é a representação do ter em detrimento do ser fazendo parte de um cenário distante do que determina a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu Art. 5º.

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...].

 Atrás dos Muros deixa claro que, fora da lei, essa igualdade não existe e, se existe, seus personagens não sabem onde está, pois a desigualdade se faz presente novamente e, desta vez, em um casal na cena[9] em que:

André diz:

-- [...] E não passava pela minha cabeça que essa história de Rio pudesse se tornar realidade, não que duvide de sua capacidade de nada...

Leila responde:

-- Não duvida, mas não achava que isso pudesse acontecer...!

Dentre tantos temas abordados, em meio ao conflito desses personagens, há uma tensão nos posicionamentos de papéis sociais e, para Freitag (2005, p. 139),

Se os papéis sociais estão integrados, isto é, internalizados (no sistema de personalidade) e institucionalizados (no sistema social), o sistema está em ordem e equilibrado. A integração garante o seu pleno funcionamento, sem atritos e sem conflitos fundamentais.

Qual é o papel social de Leila? Qual é o papel social de André? Cada um deles só tem um papel social? Leila não parece ter internalizado o papel de quem não pode ser mais bem remunerada que seu companheiro, assim como André demonstra ter internalizado um papel com o qual ele entra em contenda com sua companheira. São esses os papéis dos dois?

Sobre esse assunto, “Trata-se de modelos ou tipos de ações consideradas válidas e efetivas em uma situação ou conjuntura. Os papéis sociais constituem um estoque cultural”. (FREITAG, 2005, p. 140).

Para expressá-los em personagens, o elenco de Atrás dos Muros usou o referido estoque como uma das referências para discutir temas que foram surgindo na montagem da peça e, para isso, precisou se preparar. Quanto a isso, Stanislavski (2000, p. 42) afirma ter ouvido de Tórtsov que

[...] a melhor coisa que pode acontecer é o ator se deixar levar pela peça inteiramente. Ele então vive o papel, independente de sua própria vontade, sem notar como se sente sem se dar conta do que faz e tudo se encaminha por conta própria, subconsciente e intuitivamente.

Quando os trabalhos fluem dessa forma, é possível que, em algum momento, o ator chegue a sentimentos difíceis de analisar e, até passar por isso, pode ter de enfrentar desafios durante o desenvolvimento do próprio crescimento artístico.

Nesse processo, a preparação do ator para um personagem, além de proporcionar emoções diferentes das mais costumeiras em sua vida, pode gerar tensão entre representações do papel que ele está fazendo e como ele se representa, como aconteceu com um estudante que ficava preocupado em saber se o grupo percebia seu personagem como homossexual, afirmando que ele, o ator, não o era.

Nos ensaios, ele concentrava-se em cena e, quando conversava com o grupo, estava um pouco tenso com as representações diferentes observadas: as do personagem que ele mesmo tinha criado e aquelas que tinha de si mesmo.

Apesar da situação, no percurso da montagem da peça, o ator foi se livrando de tal preocupação, ficando bem à vontade para o personagem. Contudo, a cena não foi incluída na culminância do curso, porque ele apresentou um monólogo após seu colega de cena ter saído do grupo.

Diante dos desafios surgidos mediante representações vivenciadas no teatro ou fora dele, é pertinente discutir os mecanismos utilizados pelos atores para seus personagens.

 

3.1 MECANISMOS DO ATOR/ATRIZ PARA PERSONAGEM

Para escolha dos mecanismos, é necessário levar em conta as intenções e o contexto em que o personagem está inserido, sua personalidade, idade, acontecimentos da infância, mensagens do ator a serem transmitidas por intermédio de sua atuação, além de gestos e palavras coerentes ao trabalho pretendido, ou seja, deve ser feito um estudo do personagem.

Nesse processo, para Haetinger (2005, p. 128 apud TASSO, 2010, p. 102),

As atitudes e as ações criativas correspondem a meios para a compreensão e alteração da realidade. Todo ato criativo expressa a percepção que alguém tem do mundo, de uma ideia ou situação. O indivíduo necessariamente usa o seu entendimento da dimensão real para criar algo novo.

Atitudes e ações pedem gestos e estes pedem aqueles em um ciclo que, quando uma pessoa tem todas essas expressões acrescentadas ao pensar e ao sentir, o personagem toma forma, existe. Pode-se inferir, então, que há mecanismos visuais: os gestos sonoros, como entonação de voz, músicas e sons de fundo, efeitos especiais; e os psicológicos mentais, isto é, o lidar com as situações.

Cada indivíduo tem maneiras peculiares de perceber e representar o mundo, por isso, o elenco pode exprimir mecanismos diferentes para seus personagens, consequentemente, diversificados modos de apresentar. Um destes pode ser retratado pelo gesto que, para Pavis (1998, p. 164),

vem do latim gestus (gesture), uma forma que persistiu em alemão até o século XVIII. Isso significa maneira característica de usar seu corpo e já foi colorida pela conotação social de uma atitude em relação aos outros, um conceito assumido por Brecht em sua teoria do gestus [...]. Meyerhold identifica “posições de pose” [...] que indicam a posição fixa e fundamental de um personagem. Um dos objetivos de seus exercícios biomecânicos é buscar essas atitudes fixas, que são verdadeiras “pás de mudança” do movimento gestual [...].

No processo de montagem da peça, o olho foi um dos principais instrumentos de trabalho, e o olhar se fez um dos principais gestos, dando existência e vida a tudo que fazia parte desse universo cênico.

Para elucidar tais afirmações, destaca-se a personagem Cida que, com seu olhar, moldava tudo que estivesse ao seu alcance, e quem a observasse, podia enxergar o formato do que ela queria que os outros soubessem que estava sentindo e pensando.

Cida, como se fosse superior, veio a lançar olhares de cima, de lado, para Joana, com quem entrou em atrito pelo descarte inadequado de lixo em local público; teve expressão de nojo na boca; apontou ainda para Joana como em uma acusação, culpando-a pela sujeira; gesticulou com o dedo como se este fosse uma arma de fogo e pudesse fulminá-la ali mesmo sem esperar nem mais um instante;

Lançou cascas de tangerina no chão e contra Joana; jogou os próprios pertences no chão como um basta para a divergência, em uma forma de imposição; partiu contra Joana como quem está disposto a entrar em luta corporal, para vencer a disputa de quem era mais detentora da verdade.

Cida só começou a jogar cascas de tangerinas no chão depois de ter tentado repreender Joana por descartar papel na praça, dando a entender, com olhares e movimento do rosto, que era uma resposta a quem sujara o espaço.

Expressão facial, tom de voz e atitude física, de acordo com Pavis (1998), ao mencionar gesto de Brecht, são determinados por um gatilho social. Esses gestos podem denunciar comportamentos e, por intermédio deles, é possível visualizar que Cida fez uso do ato de jogar cascas de tangerina no chão não apenas para expor Joana a pensar sobre o que fez. E, sobretudo, para pirraçá-la e livrar-se dela, como se pudesse controlar a situação.

Ainda no início da cena[10], antes do desentendimento se aquecer, as personagens falaram conforme o seguinte:

Após a reprovação de Cida, Joana disse:

-- E daí? O lixo é meu. Eu jogo onde eu quiser.

Cida respondeu:

-- Custa você jogar na lixeira?! Está bem ali! Você está querendo entupir o bueiro. Quando chover, a água vai e leva o lixo que você jogou para a boca do esgoto e alaga, enche tudo de água lá onde você mora.

Cida parecia querer inundar todo o local com suas irritações, entonações de palavras utilizadas, como alaga, quando se refere a Joana porque, depois de alagado, tudo fica contaminado. Então, faz sentido, no decorrer da discussão, a menina da tangerina dizer para Joana:

-- [...] O lixo sujou sua cabeça também?!

Mais parece uma poluição mental. A sujeira alagou o espaço todo até o pensar e, por consequência, a postura diante do ambiente, que é poluído por ambas. Na verdade, os detritos que elas tinham dentro de si acumularam-se e acabaram vindo a público, quando cada uma demonstrou e defendeu seu ponto de vista sem se importar com o espaço que ocupavam.

Cida, com tangerinas e livro, manifestou-se sob a máscara de meio ambiente e, nesse cenário, vale ressaltar que meio ambiente, em consonância com a Lei Nº 6938, de 1981, em seu Art. 3º, é “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. As ações de Cida e de Joana implicam nesse conjunto e, de antemão, alteram as condições de limpeza de modo inconsequente.

Sobre isso, é pertinente citar, ainda de acordo com a Lei Nº 6938/1981, em seu Art. 3º, que se entende “por poluição a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente”.

É fato, pessoas, por algum motivo, descartam lixo inadequadamente, que vai ao esgoto, obstrui a passagem da água de chuva, afetando a natureza de modo a prejudicar a própria população. Podem parecer uma bobagem algumas cascas de tangerina e um pedaço de papel jogados no chão. Entretanto, o problema é a postura que cada um assume diante do que faz. Os indivíduos cometem erros, porém o que os diferencia é como cada um vai lidar com isso.

Nesse sentido, é válido afirmar que os gestos de Cida expressam muito mais do que é visto e, a exemplo disso, há outras intenções que, primordialmente, talvez, somente ela mesma saiba quais são. E, assim, o caso dessa personagem serve de alerta para a plateia, pois fora da peça, um ser humano pode observar uma pessoa e o que esta deseja sem saber o que ela pretende de fato.

Durante a pesquisa, a plateia costumava rir ao assistir a cena relacionada ao descarte inadequado do lixo, o que é compreensível pelos rompantes das personagens. Contudo, ao mesmo tempo, há possibilidade de comportamento que requeira questionamentos. Por que uma personagem fala alaga com ênfase? Que representação ela tem?

Para Pavis (1998, p. 164), ao apresentar gesto Brechtiano, “atitude física, tom de voz e expressão facial são determinados por um gesto social”. Também por isso, é possível atentar para gestos que os atores acabam priorizando para seus personagens.

Quanto ao trabalho do ator, usando tom de voz mais enfático, vale salientar que o

Gesto está situado entre a ação e o tipo de personagem. Como ação, mostra o caráter envolvido em uma prática social; como tipo de personagem, representa um grupo de traços peculiares a um indivíduo. Gesto é perceptível tanto no comportamento corporal do ator como em seu discurso. (PAVIS, 1998, p. 164).

O que significa que toda ação pressupõe atitude e cada gesto tem propósito, intenção e gera consequências. Sob essa ótica, é pertinente lembrar um gesto muito importante, a expressão de respiração do personagem que não se manifesta somente porque o ator está vivo, e, sim, porque existe um histórico representado nesse respirar.

A questão da respiração é de fato primordial, ela é inversamente proporcional à importância da representação exterior.

Quanto mais a representação é sóbria e contida, mais a respiração é ampla e densa, substancial, sobrecarregada de reflexos. (ARTAUD, 2006, p. 152).

Para esse autor, a cada sentimento, a cada alteração de afetividade humana corresponde uma respiração própria. Dessarte, atores de Atrás dos Muros experimentaram alterações no respirar e no sentir, pelo tremer do corpo, gesticulações dos membros, entre outras movimentações, em consonância com o tipo de afetividade representado nas cenas da peça.

Tudo o que acontece na vida do ator pode influenciar seu desempenho, por essa razão, ele precisa canalizar seus sentimentos para seu desempenho em outras áreas de conhecimento. É o caso das atrizes que acompanharam parentes doentes e usaram a força do sofrimento na interpretação de personagens durante os ensaios.

Por outro lado, há casos em que a dor é tão intensa que o ator chega a ser liberado de alguma atividade em vez de entrar em cena pela complexidade em lidar com o falecimento de um ente, fato que ocorreu em um dos ensaios da peça em pauta, quando uma atriz teve de ausentar-se para ir ao funeral de um familiar.

Entre familiares ou no teatro, por que escolher determinados gestos como mecanismos de apresentação, e, não, outros? Na verdade, algo que influencia bastante essa escolha é a cultura, pois “é um elemento indispensável à manutenção da ordem social, na medida em que envolve aprendizado de hábitos, normas, tradições, valores e comportamentos por parte dos indivíduos”. (TASSO, 2010, p. 24).

Toda cultura tem suas características específicas, e o teatro pode ser influente por ser um sistema simbólico de representação que pode ser utilizado a contribuir para não executar ações prejudiciais ao ser humano. E essa preocupação evita danos para si e para outrem?

Quando uma pessoa faz com muita frequência coisas que não devem ser feitas, a convivência torna-se difícil. No entanto, “Todos os dias, aprendemos comportamentos e atitudes fundamentais para que possamos sobreviver e conviver em sociedade”. (TASSO, 2010, p. 21).

Quanto ao aprendizado, no decorrer das aulas e ensaios, o grupo trabalhou várias formas de resolver problemas, e uma das situações em que isso foi exercitado foi a saída de pessoas do curso sem um aviso prévio, o que exigiu mais criatividade, disciplina e concentração por parte do elenco e do diretor.

Por isso, houve reorganização de cenas que já estavam sendo ensaiadas e cena a mais para um mesmo ator, levando em consideração a sequência de entrada de cada um no palco e o tempo de vestir e/ou trocar o figurino. Todo esse processo traduziu-se em um trabalho de cuidado com conhecimento e desempenho do grupo, refletindo seu estágio de amadurecimento.

Dentro e fora do palco, esse desenvolvimento pode se manifestar em relação às intenções dos personagens, visto que seu autor pode recorrer a acontecimentos verídicos da própria vida para uma criação não baseada em fatos reais.

Concernente a tal observação, vale mencionar que a atriz, autora de Linda Lopes, contou durante os ensaios da peça que realmente tinha entrado no ônibus da seleção da Inglaterra por engano e resolveu aproveitar esse ocorrido para a escrita da cena com sua colega.

De modo geral, os autores da peça Atrás dos Muros vivenciaram ou presenciaram fatos que foram aproveitados para a criação de suas cenas, apresentando, assim, diversas representações do mundo humano.

Nesse sentido,

As representações sociais se articulam com a vida coletiva de uma sociedade e com os processos de constituição simbólica, nos quais sujeitos sociais lutam para dar sentido, entendê-lo e nele encontrar seu lugar, através de uma identidade social. (JOVCHELOVITCH, 1995, p. 65).

Essas representações podem ser ou não percebidas e, no palco, são recursos que permitem o ator expressar pessoas que estão inseridas e/ou excluídas da sociedade. É o caso da cena[11] da diretora com a mãe de um estudante que abre a discussão de como família e escola podem lidar com atritos entre uma criança, com comportamento que exige uma atenção especial redobrada, e outras crianças no mesmo espaço educacional.

Eduarda, a mãe, chega à sala da diretora porque seu filho apanhou na escola de um colega e diz:

-- Eu quero saber que história é essa de colocar um doente mental na mesma sala que as crianças normais?

Diretora responde durante o conflito:

-- Nós precisamos oportunizar e fazer com que os portadores[12] de necessidades especiais vivenciem a sala de aula e sejam tratados de maneira igualitária. Trabalhar a diversidades dos alunos de forma humana e democrática, percebendo as singularidades de cada um e oportunizando a inserção social de todos, é nosso papel.

Pelo discurso da mãe, o menino que agrediu Rafael, seu filho, não é normal e, por isso, não deve frequentar o mesmo espaço escolar, deve estar excluso. Mas como ela se comportaria se o filho batesse no menino? Ou como seria se ela fosse mãe do menino que ela chama de doente mental?

Realmente não se deve considerar normal uma criança bater em outra, porém a mãe parece ver na ocasião uma oportunidade para livrar-se do menino que, para ela, é doente mental. Por outro lado, é compreensível a mãe querer proteger seu filho. Todavia, a forma escolhida por Eduarda para isso foi discriminatória, desrespeitosa e somente agravou a situação.

No que concerne à Lei Nº 13146, de 2015, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, no §1º do Artigo 5º, “A pessoa com deficiência será protegida de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, tortura, crueldade, opressão e tratamento desumano ou degradante”.

Por essa e outras razões, a diretora da escola mantém seus princípios morais em não ceder aos desejos de Eduarda, deixando claro que continuará com a criança, arriscando-se a perder outros alunos, pois a mãe incomodada, no desenrolar da história, pensa em convencer as mães de outras crianças de que algo tem de ser feito quanto à postura da diretora que, para ela, não é boa.

O estudante de teatro criar uma cena como essa mostra que ele já chega ao curso com representações de si mesmo e de outros seres humanos, agenciadas nas relações cotidianas que fazem parte de sua formação social e que enriquecem seu repertório profissional. O uso que cada um fará deste é uma outra questão.

Por causa disso, é importante tomar cuidado para ator e diretor não trabalharem as cenas de modo que as representações se tornem geradoras de exclusão social. Daí, então, a expressão da diretora deixar claro que não se submeterá à vontade de Eduarda. Afinal, o elenco de Atrás dos Muros lembra-se de que o artista também é formador de opiniões.

Sobre exclusão social, vale mencionar que, de acordo com Fachini (2009), é considerada, essencialmente, como “Uma condição humana de falta de acesso às oportunidades oferecidas pela sociedade aos seus membros” (p. 15). Há, entretanto, diversas formas de afastar um membro de oportunidades sociais, situação que aparece na cena[13] da entrevista de emprego.

João fala:

-- Meu nome é João, vim para a entrevista de emprego para a vaga de gerente de marketing.

Joana diz:

-- Você é o João?

João responde:

-- Sim, sim, sou eu mesmo. Nós temos um horário agendado agora às nove horas!

Joana acrescenta:

-- Desculpe, João. Achei um pouco... diferente. Me confundi um pouco, tudo bem?

O personagem João, na sua entrada, percebe a aproximação do preconceito às suas características físicas, através do olhar de Joana, porque ele é um rapaz com uma aparência que Joana não quer que faça parte do conjunto facial do seu local de trabalho. Apesar disso, ambos têm semelhanças no nome, na cor da pele, nos cabelos cheios e no desejo de estar em uma grande empresa.

Os gestos dos atores dessa cena, especialmente, o tom de voz, evidenciam que a personagem Joana se mostra como em um lugar superior. Contudo, se ela é tão elevada, por que se incomodar tanto com a presença do rapaz? Na verdade, ele mais lhe parece uma ameaça. É muito bem qualificado, algo que a plateia ouviu quando seu currículo foi citado por Joana. E, para ela se ver em uma posição profissional elevada, somente tendo-o fora da empresa.

Nessa perspectiva, para reafirmar a visão preconcebida de Joana, João tem de estar em uma posição hierárquica que ela considere de baixo status ou sem. Todo cargo honesto é importante e, portanto, o profissional que o ocupa deve ser respeitado. E, se algum trabalhador for apresentado como sem importância ou não for representado, os sujeitos envolvidos já precisam rever seus conceitos quanto a isso.

A abordagem ao trabalho não é a única dimensão a ser observada em Atrás dos Muros, existe a cena[14] de um evangélico com um homem na situação de morar na rua com representações diferentes de pessoas que falam de lugares diferentes, apesar de estarem, por um momento, em um mesmo espaço físico.

O evangélico fala: -- O que é? Tire suas mãos sujas de mim. Eu cantando meu louvor e você me interrompendo.

Morador de rua responde:

-- Pode me arranjar alguma coisa pra comer ou dois reais? Estou com fome.

Evangélico diz:

-- Que dois reais, rapaz? O que eu tenho a ver com isso? Você está novo. Arrume um emprego. Vá procurar Jesus!

Mais tarde, o evangélico acrescenta:

-- Êpa! Igual a mim mesmo, não. Tá repreendido. Quando eu tinha a sua idade, eu trabalhava, rapaz! Oxe! Olha essa roupa, esse cabelo feio. Jesus tá voltando, viu? Vá se converter.

O evangélico da cena expressa hipocrisia e superioridade, contradizendo sua imagem de cristão, o que deixa seu comportamento mais evidente diante do homem que mora na rua[15]. O conflito entre esses personagens se intensifica no fato de o evangélico não se ver como semelhante à pessoa que está em sua frente por não ser esta bem-vista[16]. Realmente, indivíduos são diferentes em muitos aspectos. Não obstante, pelo tom de voz durante a cena, o morador de rua estava se referindo a ambos serem seres humanos.

O comportamento do religioso pode ser alvo de críticas. E será que alguém gosta de ser comparado a um homem, conforme a plateia presenciou, desempregado que dorme nas ruas e tem cheiro de bebida alcoólica e sujeira? E quem está nessa situação está por querer? No lugar do evangélico, o que você, leitor, faria em relação ao morador de rua? No lugar do morador de rua, o que faria? E quem quer este último lugar?

Considerando que a representação evangélico é relacionada ao Cristianismo, é relevante citar que, de acordo com a Bíblia, no livro de Marcos 12: 30-31, entre tantos feitos, o Senhor Jesus orientou acerca dos mandamentos:

30 Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força.

31 O segundo é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.

Não há mandamento maior do que estes.

Pode-se esperar que o evangélico de Atrás dos Muros expresse gestos condizentes com o corpo doutrinário de sua religião que lhe confere o reconhecimento social de evangélico.

O personagem em questão não deixa de ser humano, existindo a possibilidade de cometer erros, o que não deve ser usado para justificá-los todos em todas as circunstâncias.  Ele dizer “Jesus tá voltando, viu?” é avisar que o julgamento de todos acontecerá, e o evangélico tem de refletir sobre isso também. Enfim, ser humano não o exime de ter de responder por seus atos.

Discutir religião pode gerar polêmica, como é possível notar através da situação, anteriormente, descrita e pela cena[17] na qual Neide quer converter Cida, levando-a para a sua igreja.

                                           Em um momento, Cida responde:

                                           -- Sou do Candomblé, filha de Iansã.

                                           Neide chega a referir-se ao Candomblé como “Religião do Satanás...”

Cida, na verdade, não é do Candomblé. Responde assim para provocar Neide, resposta ou mensagem que pode ser percebida pela expressão facial de Cida e movimento da cabeça segundos antes e durante a fala. No desenrolar da cena, Neide insiste na sua tentativa de conversão, enquanto Cida continua tão ácida quanto as cascas das suas tangerinas.

De acordo com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Art. 5º, “II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”. Logo, ninguém tem o direito de obrigar Neide a deixar de ser evangélica, assim como ninguém deve obrigar Cida a ter a mesma orientação religiosa de Neide.

E vale acrescentar, ainda conforme a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no Art. 5º, que

VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício de cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

E, portanto, caso Cida deseje frequentar, de fato, os Terreiros de Candomblé, tem respaldo legal para isso. Na verdade, ela representa um indivíduo que não tem religião, e a personagem se diz ter alguma orientação sobrenatural porque entende, pela postura de Neide, que essa afirmação serve de provocação e para evidenciar, sobretudo, que existe divergência entre pessoas de diferentes orientações religiosas. Apesar da observação, não se trata de divergências somente por orientações religiosas diferentes, e, sim, de pessoas que não se respeitam.

É válido mencionar que a criadora de Cida, ao refletir sobre o comportamento de sua personagem, pensou Pode haver algo dessa personagem em mim. Algo meu nessa personagem. Eu a criei. E, em um dia, após o ensaio de suas cenas, a atriz e autora sentiu uma coisa que a deixara com ar de riso de um jeito cuja descrição parecia não chegar aos pensamentos nem ao fim.

Acerca de sensações semelhantes a essas e indagações da autora em pauta, afirma Stanislavski (2001, p. 48)

Alegrava-me porque compreendia como viver a vida de outra pessoa, e o que significa embeber-me numa caracterização.

Isso é um recurso importantíssimo para o ator.

Enquanto tomava banho lembrei-me de que representando o papel do Crítico ainda assim não perdia a sensação de que era eu mesmo. Concluí que isso era porque, enquanto representava, eu sentia um prazer imenso em acompanhar a minha transformação. De fato era o meu próprio observador ao mesmo tempo que outra parte de mim estava sendo uma criatura crítica, censuradora.

Mas posso acaso afirmar que essa criatura não faz parte de mim? Derivei-a da minha própria natureza. Dividi-me, por assim dizer, em duas personalidades. Uma, permanecia ator, a outra, era um observador.

Por mais estranho que pareça, essa dualidade não só não impedia, mas até promovia meu trabalho criador. Estimulava-o e lhe dava ímpeto.

Os atores de Atrás dos Muros tiveram de desenvolver um trabalho criador e, com esse cuidado, outra abordagem para a qual se deve atentar é a da cena[18] de uma mulher com sua mãe em que o idoso é tratado como um ser incapaz de administrar a própria vida sozinho. Certo que o idoso pode precisar, sim, de muitos cuidados. Todavia, precisa se divertir, viver e, é obvio, em algum momento, vai acabar cometendo erros como todos os outros seres humanos.

Existem casos também nos quais o idoso não é enxergado até fazer algo considerado problema. É o caso da fala da mãe, Linda Lopes:

-- [...] De hoje em diante, não vou mais comprar o pão. Vocês vão ter que se virar! [...].

Com isso, é claro que se configura um problema para sua filha, visto que esta terá de manter-se financeiramente sozinha e, diante da plateia, essa filha agiu como se a mãe não pudesse tomar decisões.

Vale salientar que o idoso tem vontade própria. Apesar disso, é como se não tivesse, como se fosse um objeto com prazo de validade para funcionar. É fato que todo corpo humano, um dia, para. Existe um prazo. Só não se sabe qual é. Contudo, isso não quer dizer que o ser humano, em algum momento, seja destituído de alma, cérebro e coração, ou seja, uma coisa. E o idoso não deve ser tratado como um inútil ou qualquer coisa.

O idoso em outra cultura, por exemplo, pode ser considerado um sábio. Entretanto, no contexto da personagem, não é e, para elucidar essa percepção, há a fala da filha:

-- [...] Lembra que a senhora viajou sozinha, entrou, equivocadamente, no ônibus da seleção da Inglaterra e foi expulsa pelo motorista? 

A viagem de Linda Lopes não é aprovada e ela chega a afirmar que se tornou invisível com a idade, demonstrando seu incômodo diante da representação que já tem dentro de casa. E as pessoas fazem tal invisibilidade, e não o tempo em si. Linda Lopes se faz visível com a iniciativa de viver a própria vida e quem se comporta assim não quer ser apagada.

Então, vale ressaltar que, de acordo com a Lei Nº 10741, de 2003, o Estatuto do Idoso, em seu Art. 10, “É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais garantidos na Constituição e nas Leis”.

Apesar desse respaldo, os direitos de Linda Lopes parecem ter sido vedados pela filha e, por uma brecha nas leis da casa, a filha, em uma das suas muitas falas, sugere um passeio dentro do Brasil mesmo. Por fim, ainda segundo a Lei Nº 10741/2003, o Estatuto do Idoso, no Art. 20, “O idoso tem direito a educação, cultura, esporte, lazer, diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem sua peculiar condição de idade”.

Em verdade, a filha está muito mais preocupada em como vai pagar as próprias contas do que proporcionar lazer e diversão à mãe, demonstrando que só propõe os passeios em espaços culturais próximos para a mãe continuar sob o mesmo teto, custeando todos os gastos da casa.

E vale lembrar que o nome da senhora em pauta é Linda Lopes, e idoso(a) é uma representação em discussão que não deve ser transformada em rótulo.

Há outra abordagem a representações relacionada ao passar do tempo em Atrás dos Muros, em uma estória/história diferente, é a cena[19] de minutos e segundos, conforme se confere a seguir:

Minutos diz:

-- A tempo-fabricadora digital 2034 promete produzir 72 horas por dia.

Segundos responde:

-- Mas isso é impossível, fabricar mais de 24 horas por dia.

 No decorrer do conflito, Segundos fala:

-- Nossa capacidade de fabricação é de 19 horas. Qual a finalidade disso? Nós não podemos exceder o nosso limite. Você já pensou em fabricar um minuto para você?

O tempo reservado para a rotina profissional é tão ocupado que um dia inteiro se torna insuficiente para cumpri-la e, por essa razão, não existe tempo para pensar em separar um tempo para viver a própria vida. Essa situação serve também para expor que não basta existir, auxilia na reflexão sobre tempo e meios de organização, ações criativas para o aprendizado e o trabalho.

De outro modo, vale imaginar que tipo de cargo está sendo ocupado, que sentido faz e como o indivíduo se vê em um universo no qual existe uma carga horária que requer mais horas para tornar-se completa ou um profissional com perfil diferente daquele da referida cena.

Minutos e segundos, todavia, estão além da cena e, depois de estar em um mundo surreal, repleto de ocorridos quase absurdos, cercado por muros criados pelos próprios personagens, alguém, Atrás dos Muros, tenta descobrir como ficar fora dos limites do local em pauta, dizendo “Como é que saímos daqui? Estar perdido aqui é como na vida, andamos sem saber onde estamos e não chegamos a lugar algum!”  Trata-se do personagem Gil[20], que acrescenta: “Estamos sempre morrendo. Cada dia a mais é um a menos”.

Não chega a lugar algum, ao mesmo tempo, em algum lugar está, mesmo desconhecendo qual é o lugar para saber que não chegou. E um a menos pode ser por cada instante que passa ou uma pessoa a menos para existir. Nesse caso, cada segundo faz toda a diferença.

Em se tratando de existência, a peça evidencia reflexões acerca desse assunto na cena[21] que deixa claro não haver tempo sequer para chegar à conscientização da própria existência e muito menos para viver em um contexto em que quem para a refletir sobre tal tema é considerado louco. Para explicar essa situação, há o momento conflituoso entre Ana Clarice e Joaquim:

Ana Clarice:

-- Às vezes, tenho medo da loucura, nunca sei onde as palavras podem me levar, elas me carregam e, como se não bastasse, faz-me sentir o quase não existir.

Joaquim:

-- Você é louca! “O quase não existir”. Eu já disse que você existe. Você é louca!

Ana Clarice:

-- Louco é você, que se deixa levar pelos sentidos que são impostos para você. Deixou que a rotina te prendesse os braços, pernas e abafasse seu coração. Você tem medo de se enfrentar, de ousar se permitir sentir.

Faz sentido os dois personagens divergirem de opiniões, porque pelo existencialismo de Sartre (1996, p. 8),

[...] os homens simplesmente “existem”. Isto, porém, não implica uma total liberdade, pois não há uma existência abstrata, e sim uma existência concreta, em um momento determinado, em uma “situação” determinada. Esta “situação”, que limita e condiciona a existência dos indivíduos, nada mais é do que a sociedade com suas regras e sua moral. Normalmente, no cotidiano, o homem a suporta, sem perdê-la, entorpecido pela rotina. 

Joaquim está tão atado pela situação em que vive que vê a reflexão de Ana Clarice como loucura. Para ela, a loucura está nele, sendo duas óticas em conflito, podendo despertar outras impressões do existir na plateia.

Joaquim está posto em sofrimento com Ana Clarice que, no desenrolar da cena, expõe o desejo de separar-se dele, expressando ainda uma relação com o existencialismo. Segundo Sartre (1996), quando os conflitos sociais e pessoais se intensificam, o ser humano é colocado diante de situação limite, como guerra, sofrimento, morte. 

Em convergência com o pensamento de Sartre, Atrás dos Muros também tinha uma personagem cuja voz era em tom suave, acompanhado de determinada respiração e roupas leves, em momentos de sofrimento por causa de alguém que ela preferia esquecer. Essas observações representavam-na, exprimindo pelos discursos oral e corporal para a plateia o quanto sentia as emoções percebidas.

Se com uma aparência branda, a plateia percebe o que o personagem está passando, imagine quando um homem aparece perto dela de repente com bermuda rasgada, corpo sujo, odores desagradáveis e olhar de quem estava sozinho, bradando que tem fome e erguendo a mão para as pessoas que o ignoravam de modo geral.

 Viver é maravilhoso, um sonho. É preciso, antes, ter as condições para tanto. Então, como (sobre)viver quando não se tem, ao menos, o essencial à vida, o alimento? Não se sabe se o homem em questão, pelas ruas, vai conseguir comida ou não. A cena o mostrou em invisibilidade e morte sociais, visto que ninguém queria lhe dar atenção. A única personagem que olhou para ele foi Cida, com um olhar que o fuzilava enquanto ela segurava um livro.

Esse personagem nas ruas está excluído nas dimensões social, política, econômica e cultural. Para Rodrigues (2017), na econômica, por estar excluído do acesso ao consumo de produtos e do processo de produção; na política, pela falta de acesso a informações e pelo acesso precário a meios que auxiliem na formação de opinião; na social, por englobar todas essas dimensões, ter formas específicas de desigualdade e acabar separando o ser humano do convívio com o restante da sociedade em um processo pelo qual não tem acesso a direitos que são essenciais ou fundamentais para seu desenvolvimento pleno.

Na dimensão cultural porque, para Tasso (2010, p. 25), “Não existe cultura fora da sociedade nem existe sociedade sem cultura”. E, nesse contexto, mediante o referido personagem,

O mais urgente não me parece tanto defender uma cultura cuja existência nunca salvou o ser humano de ter fome e da preocupação de viver melhor, mas extrair daquilo que se chama cultura, idéias cuja força viva é idêntica à da forme. (ARTAUD, 2006, p. 1).

Ainda no que tange à fome, há uma personagem que sonha se tornar modelo internacional e priva-se de diversos alimentos, a fim de estar com o corpo chamado por ela de perfeito, no trecho da cena[22] a seguir.

Ana disse:

-- ’Tô’ perfeita!

Paty respondeu:

-- Perfeita pra não passar na catraca do ‘buzu’, ‘né’, linda?

Ana falou:

-- Paty, sério isso? Nem me diga. Olhe, eu’ tô’ a uma semana comendo só saladas de folha e uns tomates. Bebendo pouco líquido, só pra fazer esse processo seletivo. E você me diz que ’tô’ gorda. Paty, eu consegui emagrecer 3 Kg essa semana.

Diante dessa situação, vale mencionar que a plateia viu que Ana já não é gorda e deseja emagrecer mais. Apesar de compreender que no ser humano costuma existir uma preocupação com a aparência, não se deve deixar de ter cuidado com o que se faz para obter o corpo perfeito e com suas consequências. O que é o corpo perfeito? 

Com tantas questões a serem pensadas por Ana, em um momento, ela chegou a uma decepção em um dos processos seletivos para tornar-se modelo, apresentando uma expressão no rosto que dispensava palavras para o desfecho da cena.

E Atrás dos Muros chegou se despindo de inibições, contribuindo para que o trabalho fosse bem desenvolvido, e “O corpo ficava tão nu quanto a decência o permitia. Medida indispensável. Porque, anulado o rosto, todos os membros do corpo não eram suficientes para substituí-lo”. (DECROUX, 1963, s/p).

Quanto a isso, a peça veio como resultado de uma preparação cênica que se despiu de gestos que pudessem interferir negativamente em sua culminância. As discussões dos mecanismos utilizados pelos atores em cena levam a investigar-se sobre como eles traduzem seus personagens no palco dentro das relações entre o lugar de onde se vê e as representações de quem as vivencia.

 

3.2 ATOR/ATRIZ PARA PERSONAGEM

Parece muito simples falar de como, no palco, se traduzem as representações humanas. Ao mesmo tempo, pode ser complexo discorrer acerca de um assunto que a pessoa pensa já conhecer ou até conhece, entretanto, não sabe como exprimir por ser tão óbvio a ponto de nem parar para refletir a respeito.

Nesse universo de complexidade, características do surrealismo e do teatro do absurdo na peça colaboram para um estranhamento que, por sua vez, auxilia a plateia em não se identificar com atitudes tortuosas dos personagens e contribui para pensar sobre os temas abordados nem que seja por um instante.

A referida tradução é feita através dos mecanismos utilizados pelos artistas com diversas representações que não surgem do nada, e, sim, de concepções de mundo e de humanidade, o que depende das referências que cada um tem. Estas estão ligadas ao histórico da pessoa e, por isso, é relevante o ator estudá-lo quando se trata de um personagem e de si mesmo.

Esse ato pode colaborar quanto a compreender qual modificação deve ser feita no trabalho ou na vida e, com isso, influenciar os outros, direta ou indiretamente, sobre como passará a ser representado.

Ao observar essa possível variação de representações, há que se cuidar em refletir sobre que representação se deseja ter, quais meios para alcançá-la e as consequências envolvidas.

E é pertinente lembrar que não é possível o indivíduo prever todas as representações que poderá ter, sejam positivas, sejam negativas, porque há sempre descobertas a serem feitas, o que demonstra a complexidade em relações com pessoas que queiram controlar tudo. É o caso das personagens Cida, Eduarda e Joana que impõem suas verdades como se os outros indivíduos tivessem de acatar tudo o que elas dizem da maneira que bem entendem.

 Ainda vale salientar que, para os Parâmetros Curriculares Nacionais,

[...] a arte ensina que é possível transformar continuamente a existência, que é preciso mudar referências a cada momento ser flexível. Isso quer dizer que criar e conhecer são indissociáveis e a flexibilidade é condição fundamental para aprender. (BRASIL, 1997, p. 19).

Poder transformar a existência é necessário ao ser humano e é algo que o elenco de Atrás dos Muros aprendeu também com a arte do teatro. Isso foi possível observar entre os sujeitos pesquisados, através de vivências com colegas que afirmaram ter iniciado o curso, para enfrentar problemas de depressão, pois todos os envolvidos puderam reinventar-se. A flexibilidade para a mudança é fundamental, assim como estar firme no propósito de melhorar o próprio estado.

A transformação e a flexibilidade marcam presença na variedade de personagens com suas representações, sendo que algumas destas o ator poderia ter fora do palco quando expressa comportamento semelhante.

Para esclarecer tal afirmação, há um ocorrido na casa de uma atriz[23] ao tentar persuadir outras pessoas quanto a algo que queria, utilizando-se dos mesmos mecanismos usados nos ensaios para convencer os colegas de elenco de que sua personagem tinha vida.

[...] os maus atores não nos convencem da realidade do que representam e os bons convencem. Por conseguinte, o objetivo do ator que pretende fazer “bom texto” é conseguir essa capacidade de convencer o espectador da realidade do que se imaginou para a realização do espetáculo, o que, no fundo, sempre redunda na transmissão da idéia do autor ao espectador. (KUSNET, 1985, p. 5).

Quanto a convencer alguém de algo a ser transmitido, há também o caso de uma outra atriz[24] que respondeu com a aspereza acompanhada de cinismo e comicidade de sua personagem, para livrar-se de um homem que, por ela não lhe ter dado o número do telefone, tornou-se intrometido, achando-se na razão de insinuar que, por ela estar solteira, tinha de dizer sim para ele. Uma pessoa solteira pode dizer sim para alguém. Isso não significa que deva ter relações sexuais com qualquer um só por ter esse estado civil.

É possível afirmar, então, que a arte repercute na vida dos sujeitos pesquisados por intermédio de uma linguagem, em formas de reproduzir e/ou transgredir situações, usando recursos aprendidos no universo teatral.

Considerando que Atrás dos Muros é uma construção artística, a repercussão liga-se à função da arte e à sua importância que estão próximas a desafios, como questionamentos e debates, (im)possibilidades e experimentações, representações simbólicas do mundo humano e críticas.

Sem esquecer que é uma repercussão no que será feito com a arte estudada, trabalhada, tratando-se do teatro ou não. Porque as traduções desse universo não se limitam às representações de ator sobre personagem, extrapolando até mesmo as compreensões a respeito do que é ser pessoa e do que é ser humano.

A partir da análise de como os atores traduzem seus personagens no palco, cabe pensar sobre como os indivíduos dão sinais de condutas em lugares diferentes diante de pessoas diferentes, visto que as pessoas não costumam comportar-se sempre do mesmo jeito nessas circunstâncias. Não excedendo o ser humano com esse cuidado, pode representar zelo com a vida.

Essa pesquisa revela a tessitura artística no teatro, não determina a forma correta de viver e de ser quem é, porque cada um é quem tem de saber quem, de fato, vai ver ao olhar-se no espelho, não é a autora deste artigo quem vai ensinar.

Ao considerar essa observação e todas as questões até, então, discutidas, os resultados apontaram que há uma repercussão do trabalho teatral na vida dos atores à medida que seus estudos, experimentações, obras representam utilidade em seu cotidiano e em âmbito profissional, envolvendo conhecidos e desconhecidos, implicando formas de lidar com o que tenha a vivenciar.

Nessa repercussão, as representações estão intimamente relacionadas aos gestos, partam estes de quem é representado, partam de quem representa. Quando há representações, há posições e não deixam de ser lugares. Isso não quer dizer que todas façam parte do caráter do sujeito representado.

Nesse cenário, os gestos apontaram que, obviamente, se houvesse respeito às pessoas, não haveria a necessidade de existirem tantas leis com o intuito de garantir seus direitos e cumprimento de seus deveres, enquanto as mesmas leis, apesar de em vigor, parecem não existir.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sobre todas as questões abordadas anteriormente, conclui-se que o lugar de onde se vê, nesta pesquisa, é o teatro, sim, porém, antes, é o interior de cada um, pois o local de onde parte um indivíduo, ao posicionar-se, não está dentro de outrem, ou pode estar, quando é o caso de algo em comum. Ainda assim, nunca é exatamente como dentro de si mesmo.

Considera-se ainda que o teatro, o lugar de onde o indivíduo vê, é o lugar do qual se interpretam as representações de seres e de coisas, sob uma ótica que só carrega consigo quem a vivencia, visto que cada um tem seu sentir e seu pensar e, consequentemente, seu olhar único.

O que está entre o lugar de onde se vê e as representações de quem vivencia é o poder que há dentro de cada um e que pode estender-se para fora do indivíduo, abrangendo, entre outras coisas, a abertura à liberdade no pensar, no sentir e no fazer. Contudo, por mais que se exercite a liberdade, não se deve esquecer que existem consequências e, portanto, nunca se é absolutamente livre de tudo, em tudo e para tudo por todo o tempo.

 

REFERÊNCIAS[25]

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DECROUX, Étienne. Fontes. In: DECROUX, Étienne. Paroles sur le mime. Trad. José Ronaldo Faleiro. Paris: Gallimard, 1963. Disponível em www.grupotempo.com.br/tex_decroux.html  .

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[1] Atriz, Dançarina e Escritora. Pós-graduada em Arte e Educação pela UCAM - Universidade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, e graduada em Pedagogia pela FSBA - Faculdade Social da Bahia, em Salvador – BA, Brasil.

[2] TCC da Pós-graduação de Deina Anunciação em 2017. O artigo foi atualizado para publicação em 2024. 

[3] Tórtsov é um personagem do livro A Construção da Personagem, de Constantin Stanislavski.

[4] A plataforma Slide Player com o texto Etimologia da palavra Teatro; não disponíveis ano e número de página.

[5] No primeiro dia do processo de seleção do Curso de Iniciação Teatral, o professor e diretor de teatro Ronaldo Braga disse aos candidatos: “Para mim, vocês são atores”. Portanto, atores é um termo para caracterizar os sujeitos pesquisados.

[6] Os atores do grupo pesquisado são autores de seus personagens mencionados neste artigo.

[7] Neste artigo, embora emoção e sentimento sejam coisas diferentes, emoção aparece como sinônimo de sentimento em várias ocasiões, pois é o que foi percebido durante a pesquisa.

[8] Diário de campo: cena 1, 2016.2

[9] Diário de campo: cena 2, 2016.2

[10] Diário de campo: cena 3, 2016.2

[11] Diário de campo: cena 4, 2016.2

[12] Há divergências sobre o uso dessa palavra portador ao referir-se a necessidades especiais. Existem pessoas alegando que o que é portado pode ser deixado, questionando se toda necessidade especial se deixa de ter? Outras pessoas usam a palavra em destaque. Há muitas discussões quanto a isso.

[13] Diário de campo: cena 5, 2016.2

[14] Diário de campo: cena 6, 2016.2

[15] A rua é onde se deve morar? Onde moram os que são chamados de moradores de rua? A rua é um tipo de moradia?

[16] Com ou sem hífen, qual é a pronúncia correta de bem-vista? O que muda?

[17] Diário de campo: cena 7, 2016.2

[18] Diário de campo: cena 8, 2016.2

[19] Diário de campo: cena 9, 2016.2

[20] Diário de campo: cena 10, 2016.2

[21] Diário de campo: cena 11, 2016.2

[22] Diário de campo: cena 12, 2016.2

[23] Autora da personagem Linda Lopes.

[24] Autora da personagem Cida.

[25] Baseada na NBR-6023/2003, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

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