O lado negro da caridade
Por Marcia Keller | 10/10/2009 | SociedadeA caridade é umavirtude social que pode ter dois sentidos: O sentimento para si mesmo e o sentimento ao próximo.
As sociedades capitalistas geram uma competição desmedida,intensificando a "coisificação do homem", que perde o prazer, a alegria de estar vivo, sempre pressionado, estressado,em conflito, revoltado, agressivo... Essa experiência coletiva altamente negativa leva ao egoísmo, à frieza, à crueldade, à falta de afeto, ao jogo de interesses, enfim, à desumanização.
O egoísmo social é uma forte fonte de violência "branca", em que não escorre sangue e, devido a isso, nem é considerada violência. Ninguém enxerga como violência o salário mínimo, a injusta distribuição de renda, os escândalos financeiros, as enchentes, os acidentes de trabalho, a seca, o desmatamento, a poluição, a perseguição aos índios...Mas se ecoar um tiro em um assalto à padaria da esquina e for constatado um cadáver na calçada com sangue escorrendo, aí sim é violência!
O mal-estar social assume proporções gigantescas que influem na individualidade, gerando falta de amor ao próximo. A miséria, a competição, as dificuldades, a necessidade de alcançar riqueza e poder para sobressair em uma sociedade consumista nos fazem esmagar quem quer que apareça em nosso caminho, faz com que nem olhemos para as dificuldades do próximo, quando nos encontramos anestesiados pelo sistema cruel que nos faz lutar contra nós mesmos, sem que percebamos esse fato.
Não encontramos em cada esquina a caridade dos governantes, enquanto que mendigos, meninos de rua e necessitados nos olham com ar de censura quando lhes negamos R$ 1,00 de ajuda. Mas, já somos lesados nos impostos, que nos levam 27,5% do que recebemos,e onde já se encontra toda a verba destinada a habitação, alimentação,transporte,saúde e segurança para toda essa gente... Como ousam nos olhar como se fôssemos monstros por não ter R$ 1,00 em cada esquina, chegando muitas vezes a mais de R$ 20,00 diários os pedidos de R$ 1,00 por caridade?
Você ganha para distribuir essa verba todos os dias do mês? Quanto isso sairia por semana? E no final do mês? Faria falta no seu orçamento? Você concorda em fazer duas vezes a parte do governo, ser lesado nos impostos e no dia-a-dia, e ainda sofrer a terceira lesão, essa moral, de ser apontado como um monstro insensível que não tem dó e não ajuda os irmãos mais necessitados?
É justa essa cobrança mental e emocional que nos deixa fragilizados e nos força a uma caridade por vezes apenas material, sem coração, sem aceitação do ato, sem a verdadeira solidaridade que dá o sentido a uma doação?
Você já parou para pensar que toda essa caridade material que lhe é cobrada diariamente está incluída nas cinco fontes de impostos que você paga, e que se encontram entre os impotos mais altos do mundo? Isso fora as taxas... O governo, além de cobrar os tributos, ainda cobra altas taxas, e o valor arrecadado é exorbitante!É taxa para retirar passaporte, para ter o lixo coletado,taxa de iluminação pública, taxa de alvará...
Cadê o dinheiro da receita?Sempre falta para o pagamento da dívida social, mas sempre sobra para o pagamento da dívida pública. Isso significa que o governo sempre paga o que deve aos bancos, e estes pagam juros a quem aplica dinheiro a juros.Para os juros da dívida nunca falta dinheiro...Mas isso é porque o governo não pode ficar em falta com os bancos, e estes com seus ricos aplicadores.Traduzindo: Os altos impostos pagos pelos pobres e arrecadados pelo governo remuneram escandalosamente as pessoas mais ricas e, mais uma vez, somente os ricos são beneficiados no posto de credores desta dívida!E ainda fazem chantagem emocional, cobrança moral, querendo que os pobres sustentem os miseráveis, mesmo sendo lesados de todos os lados?
Quem explicará aos governantes que a justiça social é uma grande forma de caridade? E, mesmo que aparentemente seja só material, ela gera o bem-estar nacional, e isso potencializa a capacidade de se olhar para o próximo, de deixar de olhar pra o próprio umbigo atolado em dramas, lamentações e desespero. O progresso moral vai muito além de dar uma esmola ou prestar assistência social. A justiça pede o cumprimento da lei e a caridade governamental está embutida,sim. Pode soar estranho, no primeiro instante falar em "caridade do governo", mas isso significa que um misto de justiça,amor e caridade levam ao bem comum, unindo a responsabilidade social,empresarial e governamental.
É responsabilidade social, também, exercer a cidadania e cobrar dos governantes o que não é repassado aos necessitados e que se encontram embutidos em todos os impostos que pagamos! Afinal, a concentração de renda injusta explora a mão-de-obra quase escrava dos trabalhadores assalariados nesse quadro entorpecido por um regime capitalista e selvagem.
A caridade inspira a noção de igualdade que está prevista em nossa Constituição,mas, para não cair igualmente em descrédito, esta precisa ser sincera,justa,correta,vinda do coração e sem arrependimento,para que consiga sobreviver a um sistema capitalista.A caridade é maravilhosa, faz bem ao espírito,nos ilumina e ajuda a transformar o mundo, mas somente quando é verdadeiramente caridade,e não uma imposição ideológica fantasiada de solidariedade