O INSTITUTO FALIMENTAR EM FACE DA EMPRESA PÚBLICA E SOCIEDADE DE ENCONOMIA MISTA EXPLORADORAS DE ATIVIDADES ECONÔMICAS

Por | 07/03/2017 | Direito

Na conjuntura hodierna de intensa atuação estatal na economia através de empresas públicas e sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica, torna-se imprescindível definir-se as normas e princípios aos quais tais entes se submetem, uma vez que não há regulamento legal que pacifique as discussões em torno da (in)compatibilidade do instituto da falência aplicado a essas empresas estatais. A presente pesquisa pretende averiguar exatamente a possibilidade de sujeição da empresa pública e sociedade de economia mista exploradoras de atividade econômica ao regime falimentar. Por ser um debate que gera decisões divergentes do intérprete, a contribuição científica para ele é imprescindível para o seu aprimoramento, respeitando por uma vertente o interesso público, e por outra a livre concorrência. Diante isso, contribuir para esta discussão possibilita elucidar o objeto em estudo, especialmente para que restem intactos os princípios da segurança jurídico, da supremacia do interesse público sobre o privado e da igualdade.

A empresa pública e a sociedade de economia mista são criadas como pessoas jurídicas de direito privado, e é a partir desta natureza jurídica que se sustenta a posição em defesa da aplicação do instituto falimentar a tais entes estatais.Ainda retomando o tópico precedente, tais empresas estatais somente podem atuar na exploração de atividades econômicas quando presente relevante interesse público ou a segurança nacional, consoante ao caput do artigo 173 da Constituição. Deste modo, a insolvência de uma empresa estatal evidencia ou sua má gestão ou ausência de interesse público ao promover aquela atividade, impondo sua liquidação. Conforme Verçosa preconiza:

Contudo, tendo em conta os princípios que regem o Direito Administrativo, espcialmente o princípio da moralidade administrativa também de matriz constitucional, estaria impedido o Estado de deixar insolventes os instrumentos dos quais se utiliza para o exercício de seu papel constitucional. Disto resultaria que, diante da insolvência de uma empresa pública ou de uma sociedade de economia mista, dever-se-ia entender que o Estado é subsidiariamente responsável, nada impedindo que os credores requeressem sua falência quando não pagos, cabendo ao síndico efetivar judicialmente tal responsabilidade. Neste sentido, se o Estado viesse a não se interessar mais, por qualquer motivo, manter solvente uma empresa pública ou sociedade de economia mista, não poderiam os credores destas experimentar quaisquer prejuízos. Neste caso, a falência implicaria na liquidação do ente, cujo passive seja inteiramente pago com a venda dos seus ativos e a complementação do saldo restante a cargo do Estado, subsidiariamente responsável (VERÇOSA, 2005, p.101).

Em face disso, os credores ficariam sem qualquer garantia de receber seus créditos, sendo, portanto, inconstitucional o inciso I do art. 2º da Lei de Falência na medida em que houve uma determinação constitucional da extensão do regime jurídico privado às empresas estatais e, todavia, estas permanecem excluídas pelo supracitado diploma legal da aplicação do instituto falimentar. Ademais, considera-se o princípio da isonomia em relação as concorrentes privadas destes entes estatais. Admitir que o Estado realize atividade econômica sem admitir a possibilidade de falência importa em diferenciação infundada, comprometendo a livre concorrência, e estímulo à incompetência. Na esteira deste racioncínio Bandeira de Mello assevera:

Quando se tratar de exploradoras de atividade econômica, então, a falência terá curso absolutamente normal, como se de outra entidade mercantil qualquer se tratara. É que a Constituição, no art. 173, §1o, II, atribui-lhes sujeição “ao regime jurídico próprio das empresas privadas inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais (...).Quando, pelo contrário, forem prestadoras de serviço ou obra pública, é bem de ver que os bens afetados ao serviço e as obras em questão são bens públicos e não podem ser distraídos da correspondente finalidade, necessários que são ao cumprimento dos interesses públicos a que devem servir.Com efeito, não faria sentido que interesses creditícios de terceiros preferissem aos interesses de toda a coletividade no regular prosseguimento de um serviço público. O mesmo se dirá em relação a obras servientes da coletividade. Assim, jamais caberia a venda destes bens em hasta pública, que seria o consectário natural da penhora e execução judicial em caso de falência.(BANDEIRA DE MELLO, 2007, p. 380).

O Superior Tribunal de Justiça corroborou com tal entendimento na medida em que permitiu a penhora dos bens de sociedade de economia mista ou empresa pública exploradoras de atividade econômica:

PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL; PENHORA EM BENS DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA QUE PRESTA SERVIÇO. A sociedade de economia mista tem personalidade jurídica de direito Privado e está sujeita, quanto à cobrança de seus débitos, ao regime comum das sociedades em geral, nada importando o fato de que preste serviço público; só não lhe podem ser penhorados bens que estejam diretamente comprometidos com a prestação do serviço público; só podem ser penhorados bens que estejam diretamente comprometidos com a prestação de serviço público. Recurso especial conhecido e provido. (RESP 176078/SP, Segunda da Turma do STJ, Relator Min. Ari Pargendler. DJ de 08/03/1999, página 00200).

Em contrapartida, parte da doutrina não admite a possibilidade de aplicação da falência no caso de empresas públicas sociedade de economia mista ou empresa pública exploradoras de atividade econômica, sendo o entendimento que mais se alinha à Lei de Falência, uma vez que tal diploma legal excluiu expressamente tais entes estatais de sua incidência, privilegiando o interesse público em detrimento dos interesss financeiros particulares. E, para diversos doutrinadores, esta determinação legal já finalizaria o debate sobre a possibilidade de sujeição à falência dessas empresas estatais.

No caso de estarem insolventes, cabe ao Estado a iniciativa de dissolvê-las, arcando com os valores necessários à integral satisfação dos credores, sob pena de não se poder realizar uma dissolução regular, a que está obrigado, em obediência aos princípios da legalidade e da moralidade, inscritos no artigo 37 da Constituição Federal (...)A Lei n° 11.101/2005, em seu artigo 2°, exclui, explicitamente, a sociedade de economia mista e a empresa pública de sua incidência, retornando, em relação a primeira, ao conceito central traduzido na versão original da Lei n° 6.404/76 (Lei das S/A). Assim, não podem ser sujeito passivo de falência ou de recuperação judicial extrajudicial ditas pessoas jurídicas. (CAMPINHO, 2009, p. 24).

Nesse diapasão, assevera Fábio Ulhoa Coelho que em nenhuma hipótese tais entes estatais poderão sujeitar-se à falência e nem à recuperação empresarial em razão de constituirem-se sociedades exercentes de atividade econômica controlados direta ou indiretamente por pessoas jurídicas de direito público, tendo credores, com isso, sua garantia manifestada pela disposição dos controladores em mantê-las solventes  (COELHO, 2011).

Dito isto, as sociedades de economia mista e as empresas públicas não se sujeitam à recuperação judicial ou à falência, em caso de insolvência, ainda que sejam pessoas jurídicas de direito privado, pois isto não possibilita no caso da sociedade de economia mista, considerando o disposto no art. 173, §1º, inciso II, da CF confere-lhe regime jurídico próprio das empresas privadas, até mesmo no que tange os direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, não conferindo-lhe, contudo, quanto ao regime de insolvência, posto ser mais específico; e no caso da empresa pública, embora constitua pessoa jurídica de direito privado, seu capital é inteiramente público - “a pessoa é particular; o capital é público” –e, assim, diante prejuízo continuado, a empresa públicapoderá ser liquidada ou incorporada a outra entidade por ato do Poder Executivo, de acordo com o Decreto-lei 200/67(FAZZIO JÚNIOR, 2011).

Tendo em vista a harmonização entre o art. 2º da Lei de Falência e o art. 173 da Constituição, Cretella Júnior posiciona-se de modo diverso dos entendimentos precedentes,a firmando que a sujeição das empresas estatais ao instituto falimentar é teoricamente admissível mas não factível, pois frente a uma insolvência da estatal o Estado iria tão-logo socorrê-la a fim de preservar os imperativos do interesse público ou segurança nacional que lhe motivaram a criação (CRETELLA JÚNIOR, 2001).

Há ainda entendimento doutrinário que torna critério para aplicação da falência em face deempresas públicas sociedade de economia mista ou empresa pública a atividade que exercem, constituindo-se o entendimento mais aceito. Assim, as empresas estatais exploradoras de atividade econômica, segundo Aloisio Zimmer Junior, irão se sujeitar ao instituto falimentar, buscando compatibilizar o art. 2º da Lei de Falência e o art. 173 da Constituição Federal, pois caso contrário haveria flagrante inconstitucionalidade (ZIMMER JUNIOR, 2009).Converge com este posicionamento o Hely Lopes Meireles que afirma ser necessário a distinção entre as empresas que prestam serviços públicos e aquelas que exercem atividade econômica, ficando estas sujeitas à aplicação do instituto da falência (MEIRELES; ALEIXO; BURLE FILHO, 2011).

No julgamento do Recurso Extraordinário no 172.816 - Rio de Janeiro cuja relatoria coube ao Min. Paulo Brossard, o Tribunal Pleno, por maioria, vencido o Ministro Marco Aurélio, discutia-se a possibilidade de desapropriação, por ente da federação, de bem de propriedade de sociedade de economia mista federal, dando a seguinte interpretação ao art. 173, §1º, da Constituição:

EMENTA: DESAPROPRIAÇÃO, POR ESTADO, DE BEM DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA FEDERAL QUE EXPLORA SERVIÇO PÚBLICO PRIVATIVO DA UNIÃO. 1 (...). 5. A Companhia Docas do Rio de Janeiro, sociedade de economia mista federal, incumbida de explorar o serviço portuario em regime de exclusividade, não pode ter bem desapropriado pelo Estado. 6. Inexistência, no caso, de autorização legislativa. 7. A norma do art. 173, par. 1., da Constituição aplica-se as entidades publicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação as sociedades de economia mista ou empresas publicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade. 8. O dispositivo constitucional não alcanca, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado a União. (...) RE não conhecido. Voto vencido.

Considerações finais

O Estado desempenha uma função crucial na economia. As empresas públicas e as sociedades de economia mista que exercem atividades econômicas, em decorrência de sua personalidade jurídica de direito privado, atuam como verdadeiros particulares no mercado sem, todavia, visar o lucro. É sabido que seu regime jurídico é um misto de direito público e privado, despontando a discussão em voga neste trabalho. A doutrina e a jurisprudência já apontaram a prepoderância, desembocando em vários posicionamentos, circunscritos pelo teor do art. 173 da Constituição e pelo art. 2º da Lei de Falência.

Optar pela impossibilidade de falência de empresas públicas e sociedades de economia mista violaria os princípios de livre concorrência e a determinação normativa que equipara as estatais exploradoras de atividades econômicas às empresas privadas quanto às suas obrigações. Por outro lado, a admissão da aplicaçãodo regime falimentar atesta ainconstitucionalidade do art. 2º da Lei Falimentar, implicando ainda na preponderância dos interesses privados dos credores sobre o interesse público que sustenta a existência da empresa estatal.

Perante as divergências pautadas, viu-se que a via mais harmônica sem, contudo, ser bem sucedida em compatibilizar todos os aspectos revelantes, atravessa a análise da distinção da finalidade das sociedades de economia mista e das empresas públicas, apresentando o posicionamento de que não se aplicam às sociedades de economia mista e às empresas públicas prestadoras de serviço público as regras destinadas àquelas que exercem atividade econômica em razão de que estas últimas se sujeitariam ao regime jurídico das empresas privadas, conforme o arrolado no art. 173, da CF. Deste modo, afasta-se a possível inconstitucionalidade do art. 2º, I da Lei 11.101/2005, não desprezando o princípio da isonomia nem da livre iniciativa, primando a concorrência leal com as empresas privadas.

Diante disso, verifica-se a dificuldade de se pacificar a questão e nesta pesquisa objetivou-se estudar a relação entre o instituto da falência e a empresa pública e sociedade de economia mista exploradora de atividade econômica a fimde contribuir ao aprimoramento do tratamento dado às empresas públicas e sociedades de economia mista a partir da perspectiva do direito empresarial à luz dos preceitos constitucionais.

Referências

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2007.

CAMPINHO, Sérgio. Falência e recuperação de empresa: o novo regime da insolvência empresarial. Rio de Janeiro: Renovar, 4 ed. 2009.

COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à leide falência e de recuperação de empresa. São Paulo: Saraiva, 2011.

CRETELLA JÚNIOR, José. Tratado de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2001.

FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Manual de direito comercial. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2011.

MEIRELES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2011.

VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falênciain PAIVA, Luis Fernando Valente de (coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

ZIMMER JUNIOR, Aloisio. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2009.