Conto: O Inquilino

Por César Vaz Ângelo | 31/05/2017 | Contos

1 O INQUILINO Autor: César Henrique Vaz Ângelo. Inicio esta história com uma breve descrição de Pedro e da casa onde morou nos últimos anos de vida. Cidade, bairro e rua onde se encontra a residência, de pé ainda hoje, não tem tanta importância, amigos leitores, posso garantir. Quero mostrar-lhes apenas o que acredito ser essencial, e espero que isso seja o suficiente para chegarmos ao destino desejado. Pedro, então com 29 anos, morava sozinho em um casebre de três cômodos, alugado no centro da cidade. Tinha poucos amigos, e estes viviam longe. Cresceram e criaram asas. Resignado com o caminho que sua vida seguiu, isso não o incomodava mais. Sua aparência era a de um homem comum. Estatura mediana. Nem gordo e nem magro, olhos castanho escuros, quase negros, assim como os cabelos. O rosto fino de traços suaves quase o tornava simpático. Possuía poucas roupas e sempre usava um casaco sobre a camisa velha e desbotada de malha, exceto nas horas de trabalho no escritório quando usava uma calça preta e camisa social branca, roupas que odiava em segredo. A casa, com paredes de pouco mais de três metros de altura, e cores claras e desgastadas era, mesmo assim, acolhedora. O teto, composto de ripas e telhas com alguns buracos que permitiam a entrada de braços de sol e da chuva em pequenas lágrimas. Uma cama feita de madeira antiga de excelente qualidade, uma cômoda e um criado-mudo, onde repousava um livro de Lorca e um pequeno relógio despertador, mobiliavam o quarto. Na sala, uma mesa no centro e um tamborete onde fazia as refeições. Isso era tudo. Podem parecer inúteis essas descrições da casa de Pedro. Mas os amigos mais atentos compreenderão a importância. Agora, vamos aos fatos ocorridos na vida desse homem simples. Após um dia comum de trabalho, cansado e com dores, Pedro entrou em seu quarto ansioso pelo aconchego do lar e por alguns momentos de reclusão. Sofria a exaustão dos relacionamentos humanos e aproveitava qualquer oportunidade para escapar deles. No entanto, isso lhe era impossível. Havia tarefas inadiáveis a executar, nove horas no escritório não eram suficientes. Aconselhado pelos chefes, sempre trazia trabalho para casa devido ao medo de não cumprir as metas mensais. E vozes imaginárias não o deixavam esquecer as obrigações nem um único instante. “Prepare os relatórios agora mesmo!” “Quero esses papéis na minha mesa em menos de uma hora!” “Envie estes documentos”. *** 2 Uma chuva começou a cair em grandes gotas com um barulho seco nas telhas, e misturou-se aos outros sons, reais e imaginários. − Viste hoje o teu último raio de sol. Disse o ser no ombro esquerdo do nosso herói. Foram as primeiras palavras proferidas por ele desde que surgiu. Pedro estremeceu, porém não ficou surpreso. Já esperava por este momento há alguns anos e até torcia para que chegasse. Esboçou um sorriso, e a nuvem nos olhos aclarou. Adormeceu apesar das dores, e todos calaram. O novo e inseparável companheiro surgiu na vida de Pedro no dia 03 de agosto. Aquele fora um dia difícil para o funcionário de repartição, humilhado em público no trabalho depois de um erro pouco grave em um relatório. Como prezava a discrição, ser repreendido na frente dos colegas de trabalho o atingiu mais fundo do que qualquer um dos que presenciaram a cena poderia imaginar. Reprimido ante uma força mordaz, Pedro não mais se recuperou. Ao chegar em casa, naquele dia, sentou no chão da sala e chorou em pequenos soluços e com as mãos no rosto como a esconder algo vergonhoso, talvez a própria fraqueza. Expeliu dores acumuladas durante anos e descansou a cabeça nos joelhos até perceber-se melhor. Enquanto recobrava as forças, alguma coisa saltou em seu ombro. A princípio pensou que fosse um dos filhotes da gata do vizinho que dera cria havia pouco tempo. Passado o susto inicial, viu o que realmente era. Esse pequeno monstro corcunda e de peso moderado passou a acompanhá-lo a todos os lugares. Visível apenas para Pedro, fixou-se nele como um parasita e não mais o deixou. Nos primeiros dias, não o incomodava muito. Reclamava apenas de um leve cansaço. Mas com o passar dos meses, dores terríveis no ombro o maltrataram. Desciam pela coluna e seguiam até as pernas. O que o viciou em anti-inflamatórios. O ser crescia e o peso aumentava. Colegas de trabalho diziam que poderia ser bursite, e que ele deveria procurar um médico. Não suspeitavam que Pedro já soubesse o motivo e que aceitasse passivamente o seu destino. Respostas eram desnecessárias. A criatura se alimentava constantemente e exigia cada vez mais. Em pouco mais de dois anos, Pedro parecia ter graves problemas de saúde. Os interesses e projetos pessoais que arquitetou nos anos de estudo haviam mudado de maneira radical. O que antes desejava com ardor, como uma promoção no emprego, parecia agora sem sentido. Queria apenas dormir e evitar todos os olhares. Sobretudo os dos colegas. − Viste hoje o teu último raio de sol. Repetiu o ser ao ouvido de Pedro. Desta vez, não pode discernir se era sonho ou realidade. Era uma voz cavernosa, só que distante e nasalada. Virou de lado e olhou para o relógio que marcava três e meia, e estranhou. Será que dormi nove horas ininterruptas! Pegou o despertador para olhar mais de perto e só então notou que o ponteiro dos segundos estava imóvel. 3 De costas para a cama, observou um furo acima. O céu escuro, sem lua. A chuva passou a sereno mal tocando o telhado. Pedro lutou por levantar, algo sobre o peito o imobilizava como uma mão gigantesca. Começou a pensar em todo o trabalho acumulado, e no esforço a despender caso quisesse recuperar o tempo perdido e resolver tudo dentro do prazo. Mas logo caiu em si, e riu do erro cometido. Não mais existia a necessidade de preocupações com o trabalho e os chefes. Em breve, não estaria mais ali para ser pisoteado e devorado pelos abutres. Lembrou dos rostos dos patrões, faces sombrias, fechadas, a resmungar. E dos gritos imperiosos sempre direcionados aos subordinados, que tremiam e abaixavam as cabeças, submissos. Depois de grande esforço, pôs-se de pé e caminhou até a sala entre silêncios. A chuva cessara por completo e o ambiente estava abafado. Mesmo os grilos, que sempre o faziam companhia à noite, haviam desaparecido. Quis gritar, quebrar qualquer coisa para romper aquela inércia, desistiu. Sentou no tamborete e fechou os olhos na tentativa de recuperar a serenidade. − Essa é a sensação de estar morto? Disse em voz baixa. Quando ouviu um coro feminino passando na rua em frente, que dizia: O solo recebe a chuva e o sol, E acolhe tuas lágrimas vertidas. O último pranto, a despedida. É chegada a hora de partir. Senta-te ao lado dos guerreiros Bravos e decentes cavaleiros, Seguirão viagem junto a ti. Sobe à barca e segues teu destino. Pobre parvo! Tolo em tuas ações. Enfrentaste o mundo, multidões Sem armas em punho, falso mártir. Senta-te ao lado dos guerreiros Bravos e decentes cavaleiros, Seguirão viagem junto a ti. O braço de rio se estende morto. Envolto em bruma e seres alados Que brincam no céu enevoado E cantam, funestos bem-te-vis. Senta-te ao lado dos guerreiros Bravos e decentes cavaleiros, Seguirão viagem junto a ti. 4 Caminhou até a janela e observou pela persiana. Um cortejo de mulheres de vestidos e véus negros seguia em direção à capela de São Sebastião no final da rua. Eram de idades variadas, inclusive algumas crianças também de luto. A maioria, porém, de meia idade e idosas que caminhavam com certa dificuldade e entoavam os versos com vozes gastas pelo tempo. Pedro apertou os olhos na tentativa de reconhecer algum daqueles rostos. Uma cortina de neblina as envolvia impedindo-o. Cogitou sair de casa e questionar o motivo daquela procissão. Poderia ser o falecimento de alguém no bairro. No entanto, não teve coragem de pôr os pés na rua. A escuridão, o cortejo, a névoa, formavam um clima opressor e davam ares de irrealidade, como um pesadelo. − Viste hoje o teu último raio de sol. Sussurrou pela última vez a sombra. Em seguida, saltou para a janela e a escancarou, pulando-a e acompanhando o cortejo. Surpreso em ver-se livre pela primeira vez em mais de dois anos, Pedro pôs o rosto para fora e recebeu as gotas da chuva que recomeçava. As mulheres não se incomodaram com o aguaceiro. Continuaram a caminhada sem alterar o ritmo ou olhar para os lados. Com a distância e o barulho da chuva, não mais pode compreender os versos. Estranhamente atraído, apesar do medo, Pedro ficou a observar o companheiro dos últimos anos seguindo as mulheres rumo à capela. A água caía agora furiosa sobre os corpos que não passavam de vultos em lentos movimentos. Passados alguns minutos, conseguiu escapar da apatia que o mantinha cativo à janela e percebeu que não podia mais ouvi-las. Resoluto, pulou para fora e partiu em disparada para a igreja. Pés nus em contato com a lama da estrada. As poucas residências vistas durante o percurso dormiam tranquilas. Em frente à capela do santo padroeiro da cidade, viu a porta aberta como uma boca negra e convidativa. Não captou nenhum som vindo de dentro. Os cajueiros dançavam melancólicos em volta. Sua súbita coragem em cacos. Mesmo assim continuou em frente, agora com passos mais curtos. *** Chegando à entrada, apoiou uma mão na parede e espreitou hesitante. O breu era absoluto. Imaginou como seria bom ter uma lanterna, ou que a iluminação da capela funcionasse mesmo com tantos anos de abandono. Antes de entrar, varreu a memória em busca de lembranças de como era a igrejinha por dentro. Em quais lugares ficavam os bancos e as colunas? Rememorou para não esbarrar em nada. Já fazia cinco anos que punha os pés ali pela última vez, e a recordação não era das melhores. Lixo por todos os lados, insetos e ratos empestavam o local. Apesar de não ser 5 religioso, não pode deixar de ficar deprimido com a decadência daquele lugar que visitara tantas vezes quando criança. Não sabia determinar o momento em que as pessoas da cidade começaram a perder a fé. Aos poucos foram deixando de assistir às missas e de comungar. Algumas aderiram ao protestantismo, outras mudaram de religião. Contudo, passada a euforia da novidade, todos abandonaram qualquer crença religiosa. O padre, depois de muitas tentativas fracassadas de atrair a população, decidiu mudar de paróquia “abandonando-os a própria sorte”. Como disse à irmã ao entrar no carro. Ao dar os primeiros passos dentro da capela, Pedro sentiu a água nos calcanhares. Com os braços esticados para proteger o corpo de algum esbarrão, caminhou arrastando os pés na tentativa de alcançar o altar ou de encontrar o grupo de mulheres. − Alguém está aí? Estranhou a própria voz, um pouco rouca. Com a garganta seca, pigarreou e interrogou a escuridão mais uma vez. Não obteve resposta além das gotas que caíam do teto. Estava prestes a desistir e retornar quando algo saltou sobre si, jogando-o ao chão encharcado. Supôs ser um bandido, ou um cachorro de grande porte. Apenas quando bufou em seu rosto soube de quê se tratava. Aquilo mais uma vez em seu corpo como uma extensão de sua alma, só que agora com o triplo do tamanho. Antes que pudesse gritar, uma das garras do monstro penetrou-lhe o peito causando uma dor aguda que percorreu todo o corpo até as extremidades, paralisando-o. Quis falar e notou que a língua inchara ao ataque. Tentou girar para livrar-se do peso, mas foi inútil. De repente, tudo clareou na mente de Pedro. O abandono do ser, o cortejo recitando estranhos versos e o silêncio que se apossara de tudo. Este era o momento chave. Ainda deitado, relembrou a infância. Os dias de catecismo, ali mesmo, sentado naquele chão frio com outras crianças. Risadas tomaram de conta do ambiente, e canções dedicadas a Nossa Senhora ecoaram em tons desafinados. Pedro fechou os olhos para descansar e concentrar melhor a atenção naqueles sons tão remotos quanto familiares. E o sol penetrou o teto corroído pelos cupins, anunciando um novo dia. FIM

Artigo completo: