O INQUÉRITO POLICIAL MILITAR À LUZ DA LEI 12.850/13

Por Marcelo da Silva Bueno | 13/08/2024 | Direito

RESUMO: Fundamentado no exercício da Polícia Judiciária Militar, o presente artigo tem por escopo, verificar a possibilidade de utilizar as ferramentas investigatórias previstas na Lei nº 12.850/13 (Lei das Organizações Criminosas) no Inquérito Policial Militar em face da apuração de crimes militares praticados no contexto de organizações criminosas. 

Com o escopo de responder ao tema supramencionado, serão utilizadas doutrinas e jurisprudências acerca do assunto, onde partiremos de um breve estudo das organizações criminosas, posteriormente o conceito de Inquérito Policial Militar e seus objetivos, finalizando com uma análise da Lei nº 12.850/13, possibilitando, portanto sedimentar a possibilidade de sua utilização em investigações Policiais Militares.  

 

PALAVRAS CHAVE: Inquérito Policial Militar, Polícia Judiciária Militar, Investigação, Lei 12.850/13.

 

RESUMEN: Con base en el ejercicio de la Policía Judicial Militar, el alcance de este artículo es verificar la posibilidad de utilizar herramientas de investigación proporcionada por la Ley N ° 12.850 / 13 (Ley de Organizaciones Criminales) en investigación de la policía militar en la faz de la determinación de los delitos militares cometidos en el contexto las organizaciones criminales.

Con el objetivo de dar respuesta al tema anterior, la doctrina y la jurisprudencia en la materia, lo que dejará un breve estudio de las organizaciones criminales, a continuación, se utiliza el concepto de investigación de la policía militar y de sus objetivos, que termina con un análisis de la Ley N ° 12.850 / 13, permitiendo así la posibilidad de uso sedimentaria en las investigaciones policiales militares.

 

PALABRAS CLAVE: Militares investigación policial, la Policía Judicial Militar, Investigación, Ley 12.850 / 13.


 

INTRODUÇÃO

 

É cediço chegar a nosso conhecimento diariamente notícias sobre crimes do mais diversos níveis de organização e infelizmente fatalidades. Na administração militar não é diferente, mais especificamente concernente aos Militares Estaduais. Sabemos de casos de militares estaduais que criam, integram e/ou participam de organizações voltadas para práticas delituosas não são raros, constituindo como, por exemplo, as milícias cariocas. 

Nesse contexto, os meios convencionais de combate ao crime tornam-se inócuos, surgindo à demanda dos órgãos responsáveis pela persecução penal por ferramentas que possam identificar e responsabilizar penalmente essa aperfeiçoada criminalidade.

Diante disso, traz-se a baila, o contido na Lei 12.850/13, a qual define organização criminosa e dispõem sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, trazendo uma série de ferramentas que podem ser utilizada pelos órgãos de investigação, como exemplos a quebra de cadastro e sigilo telefônico, a captação ambiental, quebra de sigilo bancário, a infiltração de agentes, a ação controlada dentre outros, com o fito de combater o crime organizado.


 

O INQUÉRITO POLICIAL MILITAR

 

O inquérito Policial Militar visa coletar elementos necessários a propositura da Ação Penal, logo, traz-se a baila o contido no artigo 9º do Código de Processo Penal Militar esclarece a finalidade do IPM:

 

Art. 9º O inquérito policial militar é a apuração sumária de fato, que, nos têrmos legais, configure crime militar, e de sua autoria. Tem o caráter de instrução provisória, cuja finalidade precípua é a de ministrar elementos necessários à propositura da ação penal.

Parágrafo único. São, porém, efetivamente instrutórios da ação penal os exames, perícias e avaliações realizados regularmente no curso do inquérito, por peritos idôneos e com obediência às formalidades previstas neste Código.

 

De acordo com ASSIS: 

 

Após a prática da infração penal militar, desenvolve-se intensa atividade, colhendo-se informações sobre o fato típico e quem tenha sido seu autor. Tais informações constituem o inquérito policial-militar (IPM) e tem por finalidade fornecer ao titular da ação penal – o Ministério Público Militar – elementos seguros para o oferecimento da denúncia. (Assis, 2010, p. 43)

 

Diante disso, se o Inquérito Policial Militar visa à coleta de provas, porque não se poderiam utilizar todas as ferramentas legais, portanto disponíveis para o desenvolvimento de uma investigação profunda e de qualidade? A resposta é bastante óbvia, pois se o encarregado de IPM pode requisitar perícias, ouvir pessoas ligadas a crime investigado, dentre outras, por que não poderia solicitar uma captação ambiental, uma interceptação telefônica? As repostas as essas perguntas, portanto, serão desenvolvidas ao longo do presente artigo. 


 

BREVE HISTÓRICO DO CRIME ORGANIZADO

 

Conforme SILVA (2003, p.19), identificar a origem das organizações criminosas não constitui tarefa simples. Isso porque as características que as definem costumavam – e ainda costumam – variar de acordo com as peculiaridades de cada sociedade. Ainda assim, é possível identificar traços comuns entre algumas organizações criminosas, dentre as quais se destacam as Tríades chinesas, a Yakuza japonesa e as máfias italianas.

Ainda, SILVA (2003, p.25), destaca que no cenário nacional, o movimento conhecido como cangaço constituiu um dos primeiros registros de atuação de organizações criminosas no Brasil, entre o final do século XIX e início do século XX. Os cangaceiros constituíam grupos armados que atuavam no sertão nordestino. Possuíam estrutura hierarquizada e pilhavam vilas e cidades, efetuavam roubos, sequestravam cidadãos importantes para exigirem resgates, dentre outras condutas. Para viabilizar suas condutas delituosas, os cangaceiros possuíam relações com políticos, fazendeiros e até mesmo autoridades policiais. Nos últimos anos, e até os dias atuais temos como organizações criminosas de maior envergadura em nosso país, o Comando Vermelho (CV), o primeiro Comando da Capital (PCC) e ainda, as Milícias Cariocas.


 

O CONCEITO DE CRIME ORGANIZADO

 

Atualmente, a doutrina traz inúmeros conceitos, alguns mais complexos, outros marcados pela simplicidade. Transcreve-se abaixo o minucioso conceito de organização criminosa formulado por FERRO, PEREIRA e GAZZOLA, o qual congrega as principais características apontadas pela doutrina:

 

Associação estável de três ou mais pessoas, de caráter permanente, com estrutura empresarial, padrão hierárquico e divisão de tarefas, que, valendo se de instrumentos e recursos tecnológicos sofisticados, sob o signo de valores compartilhados por uma parcela social, objetiva a perpetração de infrações penais, geralmente de elevada lesividade social, com grande capacidade de cometimento de fraude difusa, pelo escopo prioritário de lucro e poder a ele relacionado, mediante a utilização de meios intimidatórios, como violência e ameaças, e, sobretudo, o estabelecimento de conexão estrutural ou funcional com o Poder Público ou com algum(ns) de seus agentes, especialmente via corrupção – para assegurar a impunidade, pela neutralização da ação dos órgãos de controle social e persecução penal –, o fornecimento de bens e serviços lícitos e a infiltração na economia legal, por intermédio do uso de empresas legítimas, sendo

ainda caracterizada pela territorialidade, formação de uma rede de conexões com outras associações ilícitas, instituições e setores comunitários e tendência à expansão e à transnacionalidade, eventualmente ofertando prestações sociais a comunidades negligenciadas pelo Estado. E crime organizado é a espécie de macrocriminalidade perpetrada pela organização criminosa. (Ferro, Pereira e Gazzola 2014, p. 28)

 

A legislação em vigor a cerca do assunto, foi sancionada e materializada por meio da Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, a qual:

 

Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências.

 

Para focarmos no tema proposto, não vamos entrar no contexto histórico da referida lei, todavia, oportuno, destacar o conceito de organização criminosa contido no § 1º do art. 1º da Lei nº 12.850/13, o qual possui a seguinte redação:

 

Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.


 

A LEI 12.850/13

 

Passa-se, pois, a abordar os aspectos processuais da legislação para, posteriormente tratar-se do ponto nevrálgico do presente trabalho, a saber, a utilização da referida lei em sede de Inquérito Policial Militar procedida pela polícia judiciária militar na investigação de crimes militares conexos ao crime de organização criminosa. 

Conforme vimos anteriormente, a Lei nº 12.850/13 promoveu alterações significativas no enfrentamento jurídico-penal da criminalidade organizada. De fato, a nocividade social causada pelos delitos perpetrados pelas organizações criminosas, tais como tráfico de drogas e de armas, sonegação fiscal e corrupção de agentes públicos, os quais se potencializam com a globalização e com as dificuldades por parte dos órgãos investigativos na produção e colheita de provas, especial destaque deve ser propiciado aos meios de prova previstos no art. 3º da Lei nº 12.850/13:

 

Art. 3º Em qualquer fase da persecução penal, serão permitidos, sem

prejuízo de outros já previstos em lei, os seguintes meios de obtenção da

prova:

I - colaboração premiada;

II - captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos;

III - ação controlada;

IV - acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados

cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a

informações eleitorais ou comerciais;

V - interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica;

VI - afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica;

VII - infiltração, por policiais, em atividade de investigação, na forma do 11;

VIII - cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.


 

ATIVIDADE DE POLICIA JUDICIÁRIA MILITAR EM FACE DA LEI 12.850/13

 

A carta magna que restabeleceu a democracia no país após o regime militar tratou da segurança pública no art. 144, indicando os órgãos que a integram e delineando suas funções. Assim, previu no § 5º do art. 144 da CF/88 que “às polícias militares cabem à polícia ostensiva e a preservação da ordem pública”.

No que tange à ordem pública, essa seria o pré-requisito de funcionamento do sistema de convivência pública. Como é cediço, é o ser humano um ser social. A vida em sociedade, por outro lado, consiste num jogo de tensões, tendo em conta que cada indivíduo tem desideratos e aspirações diferenciadas, as quais, se não forem compatibilizadas, podem gerar uma série de transtornos.

Para assegurar a ordem, o Estado exerce diversas atividades, o que se convencionou denominar funções de segurança pública, as quais estão definidas no art. 144, §§ 1º ao 8º e § 10, da CF/88. Tais funções são desempenhadas por intermédio dos chamados órgãos de segurança pública, os quais estão listados nos incisos do caput do art. 144 da CF/88, a saber, polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícia militares e corpos de bombeiros militares.

Nesse sentido, temos que NEVES entende o seguinte: 

 

Pelo texto em vigor, além de manter, dar continuidade, deve a Polícia Militar restaurar a ordem pública, o que levou vários estudiosos, como citam Soares, Souza e Moretti, a sacramentarem que “pode a Polícia Militar atuar na esfera de atribuições de outros órgãos policiais, na falência ou inoperância destes”. Com efeito, se o termo “polícia ostensiva” já significou  uma ampliação, a expressão “preservação da ordem pública” potencializa a atribuição constitucional das Polícias Militares a um patamar inimaginável. Em outros termos, tomando por base que a ordem pública pode ser compreendida sob três aspectos – segurança pública, salubridade pública e tranquilidade pública –, a missão constitucional das Polícias Militares não encontra limites legais estritos. [...](NEVES, 2014, p.201)

 

Também a expressão “polícia ostensiva”, associada ao caráter residual e ao mesmo tempo exclusivo que foi conferido às Polícias Militares, configuram inegáveis alargamentos das atribuições policiais militares. Para NEVES: 

 

A polícia ostensiva impõe uma elasticidade na compreensão da missão da Polícia Militar, de sorte que toda e qualquer atividade na prevenção do delito, alcançada pela ostensividade, está alcançada pela expressão. […] a atuação das Polícias Militares, pela elasticidade que suscita a expressão “polícia ostensiva”, vai além do mero policiamento. (Neves, 2014, p. 200 e 201)

 

Após a breve abordagem realizada, é factível constatar que as Polícias Militares deixaram de constituir os exércitos estaduais para assumirem um local de destaque na nova ordem constitucional, com um aumento significativo da abrangência e importância das suas atribuições.

Com o crescimento das atribuições constitucionais das polícias militares, outra atribuição passa a ter maior relevância. Refere-se à Polícia Judiciária Militar, prevista no § 4º, parte final, do art. 144 da CF/88140. Nesse diapasão, conforme NEVES a PJM numa: 

 

atividade pré-processual, que tem por escopo descortinar a verdade diante da ocorrência de um fato criminoso, traduzindo-se na apuração desse fato e consequente condensação de documentos diversos, com o objetivo de que seja adotada a persecução criminal, se assim entender o Ministério Público. A esta atividade dá-se o nome de polícia judiciária. (Neves, 2014, p.207)

 

Destarte, o direito penal e processual penal militar tem por escopo justamente dotar as instituições militares de meios adequados para a manutenção dos seus valores supremos, a saber, a hierarquia e a disciplina, os quais são inegavelmente abalados pelas condutas desviantes. Assim, em face da nova envergadura constitucional das atribuições das polícias militares, notadamente inflacionada em relação às previsões anteriores, ganha maior relevo, também, a atividade da Polícia Judiciária Militar.

Inobstante, a Lei nº 12.850/13 é cristalina no sentido de que os funcionários públicos podem ser os sujeitos ativos do delito de organização criminosa. Tanto o é que há previsão, como já dito, de causa especial de aumento de pena quando houver concurso de funcionários públicos (art. 2º, § 4º, inciso II), bem como prevê o afastamento cautelar do funcionário público das suas funções quando existirem indícios suficientes de que o mesmo integra organização criminosa (art. 2º, § 5º) e a perda do cargo como efeito da condenação em tal caso (art. 2º, § 6º).

Ademais, no que se refere especificamente aos policiais, dispõe o § 7º do art. 2º que, havendo indícios de sua participação nos crimes de que trata a Lei nº 12.850/13, o inquérito policial deverá ser instaurado pela corregedoria da instituição policial, com comunicação ao Ministério Público, que o deverá acompanhar. Portanto, não restam, pois, acerca da possibilidade do funcionário público e dos policiais – em especial os policiais militares –, figurarem como sujeitos ativos do delito de organização criminosa, previsto no art. 2º da Lei nº 12.850/13.

Logo, o raciocínio é plenamente aplicável perante a Lei nº 12.850/13, tendo em conta que, como alinhavado linhas acima, pode o policial militar integrar organização criminosa, nos termos do § 1º do art. 1º da lei em tela, e esta, por sua vez, pode praticar crimes militares, desde que observados os requisitos do § 4º do art. 125 da CF/88, combinado com o art. 9º do CPM.

Destaca-se que poderão ocorrer, assim, duas espécies distintas de crimes. O delito de organização criminosa constitui, o qual é delito comum, bem como os outros delitos praticados pela organização criminosa e que não se amoldem aos requisitos do § 4º do art. 125 da CF/88, combinado com o art. 9º do CPM. De outra banda, a segunda espécie de crime, são os militares, atendidos as exigências legais para sua configuração, conexos aos crimes comuns. Nesse diapasão, ROTH afirma que:

 

É indiscutível que o crime de organização criminosa é um crime comum, porquanto definido por Lei extravagante ao Código Penal Comum e, portanto, cabente a Justiça Comum conhecer desse delito, sendo a investigação policial atribuição constitucional da Polícia Civil (art. 144, §1, da CF). No entanto, de se lamentar que o legislador não tenha previsto a organização criminosa também como crime militar, ou seja, a circunstância de o crime organizado se realizar exclusivamente dentro da Instituição Militar, todavia, é de se inferir que o aliciamento de militar por organização criminosa normalmente gera o crime conexo militar. (Roth, 2013, p. 25)

 

A conexão constitui, juntamente com a continência, numa causa modificadora da competência. Significa dizer que, muito embora as infrações penais conexas, se consideradas isoladamente, pelas regras de competência, não sejam afetas ao mesmo juízo, irão, assim mesmo ser processadas e julgadas pelo mesmo órgão jurisdicional, sendo o caso, nos termos do art. 103 do CPPM, de prorrogação da competência do juízo inicialmente incompetente.

O instituto da conexão está previsto no Código de Processo Penal Militar nos seguintes termos:

Art. 99. Haverá conexão:

a) se, ocorridas duas ou mais infrações, tiverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras;

b) se, no mesmo caso, umas infrações tiverem sido praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas;

c) quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.

 

Enfim, no caso, havendo a conexão entre o crime militar e o crime comum de organização criminosa, por força do previsto no art. 102168, alínea “a”, do CPPM, operar-se-á a cisão processual, sendo o crime militar processado e julgado na Justiça Militar, ao passo que o crime comum será processado e julgado pela Justiça Comum, Federal ou Estadual, conforme o caso. A cisão processual, assim, visa preservar a competência constitucional da Justiça Militar como mencionado alhures, definida nos arts. 124 e 125, § 4º, ambos a CF/88 que não poderia ser contornada por dispositivo legal, sob pena de inconstitucionalidade. Em idêntico prisma, a Súmula nº 90 do STJ confirma tal entendimento: “Compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à comum pela prática do crime comum simultâneo àquele”.

Focando ainda na competência criminal, tem-se o deslocamento da referida, no processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida praticados por militar estadual tendo por vítima civil. Inobstante divergências doutrinárias acerca do tema, convém registrar a posição de NEVES: 

 

Note-se que a Constituição Federal não expõe que o crime doloso contra civil, enquadrado no art. 9º do CPM, claro, passou a ser um delito comum, mas apenas o retirou da competência da Justiça Militar Estadual. […] Nesse contexto, conclui-se que a polícia judiciária no crime doloso contra a vida de civil é exercida pela instituição militar estadual, no bojo da polícia judiciária militar. Portanto, há exercício de polícia judiciária militar em crime militar cujo julgamento não compete à Justiça Militar Estadual, em perfeita sintonia com a alínea a do art. 8º do CPPM, que exige apenas o pressuposto da existência de crime militar. (Neves, 2014, p.234)

 

Assim, prevê a CF/88, no § 4º do art. 144, que “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.  

Logo, tem-se que a atribuição de polícia judiciária militar que emerge do texto constitucional, é ainda complementada pelas disposições dos arts. 7º e 8º do Código de Processo Penal Militar, que definem, respectivamente, as autoridades e suas competências para o exercício da função de Polícia Judiciária Militar. Nesse sentido, traz-se novamente o entendimento de NEVES, de que “Não se deve olvidar que a atribuição de polícia judiciária militar está atrelada à natureza do ilícito penal. Havendo ilícito penal militar, existirá campo para o exercício de polícia judiciária militar, nos termos da alínea a do art. 8º do CPPM”.

Cresce a relevância do questionamento acerca da possibilidade de utilização dos institutos da Lei nº 12.850/13 na apuração de crimes militares conexos ao crime de organização criminosa, porquanto a apuração de crimes militares nesse contexto traduz-se numa obrigatoriedade e, como foi indicado, os instrumentos legais tradicionais, a exemplo dos previstos no CPPM, não se mostram satisfatórios para tal.

Traz-se a baila, ROTH que defende a utilização dos meios de obtenção de prova previstos na Lei nº 12.850/13 nos crimes militares conexos ao crime de organização criminosa, possibilitando, assim, o exercício da Polícia Judiciária Militar, conforme segue:

 

Entendemos que, diante da lacuna deixada pelo legislador, como já afirmado, de não prever o tipo penal do crime organizado como crime militar, não se pode excluir da Polícia Judiciária Militar e de seus agentes e nem da Justiça Militar a adoção daqueles mecanismos processuais quando se tratar de crime militar, sob pena de subverter o ordenamento constitucional e infraconstitucional gerando o caos, de forma a não garantir à Instituição Militar a investigação dos crimes militares conexos ao crime organizado. […] o exercício da Polícia Judiciária Comum, por meio do delegado de polícia, encontra paralelo ao exercício de Polícia Judiciária Militar, por intermédio dos Comandantes de Unidades Militares ou Policiais Militares ou Corpos de Bombeiros Militares, com fundamento no referido dispositivo constitucional, e expressamente no artigo 7º do CPPM. Portanto, não se pode limitar ou excluir o poder de PJM dos procedimentos persecutórios criados pela Lei 12.850/13, para fins probatórios de configuração do crime militar, até porque o pedido de qualquer medida préprocessual por meio da Polícia Judiciária Civil e da Polícia Judiciária Militar, independente do Órgão Policial requerente, irá filtrar e legitimar a medida persecutória requerida para os fins de direito. (Roth, 2013, p.25 e 26)

 

Nessa senda, no ensinamento de Roth, interessa mencionar que os meios de obtenção de prova eventualmente utilizados pela Polícia Judiciária Militar terão, obrigatoriamente, que atender a todos os pressupostos legais estabelecidos pela Lei nº 12.850/13, cabendo frisar, ainda, que consoante estudado, inexiste na lei em pauta vedação ou incompatibilidade para a adoção de tais procedimentos na investigação criminal militar.

Destarte, importante mencionar que tal hipótese é ventilada pela lei processual penal militar, a qual dispõe o CPPM:

 

Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:

a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar;

b) pela jurisprudência;

c) pelos usos e costumes militares;

d) pelos princípios gerais de Direito;

e) pela analogia.

 

Ainda, temos o ensinamento de ASSIS:

 

O suprimento que a lei processual penal militar permite é somente aquele que decorre da omissão da lei especial, vale dizer, da completa ausência de norma a regulamentar o vazio pretendido, pois, se a lei processual penal militar dispuser de modo diverso da lei comum, tal suprimento não será possível.(Assis, 2008, p.25)

 

Complementa ainda ASSIS, assinalando a necessidade de observância da índole do processo penal militar: 

 

Deve ser considerado que a chamada índole do processo penal militar está diretamente ligada àqueles valores, prerrogativas, deveres e obrigações, que sendo inerente aos membros das Forças Armadas, devem ser observados no decorrer do processo, enquanto o acusado mantiver o posto ou graduação correspondente. Fazem parte da índole do processo penal militar as prerrogativas dos militares, constituídas pelas honras, dignidades e distinções devidas aos graus militares e cargos (Estatuto dos Militares, art. 73), e que se retratam já na definição do juízo natural do acusado militar (Conselho Especial ou Permanente); na obrigação do acusado militar prestar os sinais de respeito aos membros do Conselho de Justiça; a conservação, pelo militar da reserva ou reformado, das prerrogativas do posto ou graduação, quando pratica ou contra ele é praticado crime militar (CPM, art. 13); a presidência do Conselho pelo oficial general ou oficial superior (LOJMU, art. 16, letras a e b); a prestação do compromisso legal pelos juízes militares (CPPM, art. 400) etc.(Assis, 2008, p.25)

 

Dessa forma, observada a omissão legal atinente aos meios de obtenção de prova previstos na Lei nº 12.850/13, notadamente no que se aos meios para obtenção de prova, e, diante da inocorrência de mácula à índole do processo penal militar, afigura-se em conformidade com o CPPM a utilização da nova lei de combate ao crime organizado na persecução penal militar.


 

A JURISPRUDÊNCIA

 

Cabe registrar que a jurisprudência traz de forma majoritária, por exemplo, a utilização de legislação extravagante de matiz processual penal no direito processual penal castrense, conforme ocorreu com a Lei nº 9.296/96, a qual versa sobre interceptação de comunicações telefônicas para prova em persecução criminal e que, assim como a Lei nº 12.850/13, não fez nenhuma menção à possibilidade de sua utilização na apuração de crimes militares.

Todavia, os Tribunais, não hesitaram em admitir a possibilidade de utilização da interceptação na Justiça Militar, desde que observados os seus requisitos, onde nesse sentido, traz-se a baila entendimento do STJ:

 

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIMES MILITARES. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DECRETADA PELA JUSTIÇA COMUM ESTADUAL. INCOMPETÊNCIA. NULIDADE DA PROVA COLHIDA. 1. Somente o juiz natural da causa, a teor do disposto no art. 1.º, Lei n.º 9.296/96, pode, sob segredo de justiça, decretar a interceptação de comunicações telefônicas. 2. Na hipótese, a diligência foi deferida pela justiça comum estadual, durante a realização do inquérito policial militar, que apurava a prática de crime propriamente militar (subtração de armas e munições da corporação, conservadas em estabelecimento militar). Deve-se, portanto, em razão da incompetência do juízo, declarar a nulidade da prova ilicitamente colhida. 3. Ordem concedida. (STJ, 5ª Turma, HC nº 49.179/RS, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 30 jul. 2006)

 

No acórdão acima, anota-se que o STJ tanto reconhece a possibilidade e  utilização da interceptação telefônica no âmbito da Justiça Militar Estadual que declarou a nulidade da interceptação decretada pela Justiça Comum, tendo em conta tratar-se de crime militar, hipótese na qual imperiosa a decretação da interceptação pela Justiça Militar Estadual. 

Temos ainda, o entendimento do Superior Tribunal Militar que vai ao encontro do anterior: 

 

MANDADO DE SEGURANÇA - QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO - IPM. Mandamus impetrado pelo MPM, com pedido de concessão de liminar, em face de terem sido esgotadas todas as investigações possíveis no IPM, não sendo apuradas a autoria e a participação de envolvidos no roubo de armamento. Pedido indeferido, anteriormente, pelo Magistrado a quo, por entender inexistirem indícios razoáveis que justifiquem a invasão de privacidade. Pleito liminar deferido, consoante a documentação acostada aos autos, visto não serem constatadas as hipóteses impeditivas da interceptação telefônica, previstas no art. 2º da Lei nº 9.296/96. Instrução do feito a demonstrar a dificuldade que se apresenta à polícia judiciária militar, devendo todo o indício ser cuidadosamente apurado, observadas as possibilidades de se buscar prova legítima para a responsabilização dos envolvidos. Concedida a segurança, confirmando a liminar deferida, para autorizar a interceptação das comunicações telefônicas, em relação às pessoas indicadas. Decisão unânime. (STM, MS nº 2004.01.000624-9/RJ, Rel. Min. Marcus Herndl, julgamento 09 set. 2004)

 

Vê-se, portanto, que observados os requisitos legais, passível a utilização da interceptação telefônica no âmbito Militar. Esse posicionamento é também acolhido pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado do Rio Grande do Sul:

 

HÁBEAS-CÓRPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. MEDIDA DE EXCEÇÃO. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA. LICITUDE. DECISÃO FUNDAMENTADA. ÚNICO MEIO DE PROVA. PRESSUPOSTOS. ATENDIMENTO. DENEGAÇÃO DA ORDEM. UNÂNIME. O trancamento da ação penal pela via do hábeas-córpus é medida de exceção que só é admissível quando emerge dos autos, de forma inequívoca, a inocência do acusado atipicidade da conduta ou a extinção da punibilidade, circunstâncias que não foram evidenciadas de plano no caso, motivo pelo qual a denegação da ordem é medida que se impõe. In casu, é lícita a  interceptação telefônica, pois foi determinada em decisão judicial fundamentada, ainda que de forma sucinta, além de ter sido necessária, como único meio de prova, à apuração de fato delituoso. Precedente do STF. Ademais, os fatos noticiados na carta anônima, após realizadas as diligências iniciais, atenderam os pressupostos básicos da interceptação telefônica: fumus boni iuris e periculum in mora. De outra parte, é viável a utilização de interceptação telefônica quando descoberto outro crime, ainda que não haja conexão entre este e a infração que está sendo investigada. Por fim, a materialidade de crime que envolva drogas pode ser substituída por outros elementos aptos a demonstrar a conduta delituosa. Além disso, afirmar, categoricamente, que não existe materialidade demandaria revolvimento fático-probatório não condizente com a via eleita. Denegada a ordem. Unanimidade. (TJMRS, HC nº 3890/2012, Rel. Juiz Juiz Fernando Guerreiro de Lemos, julgamento 23 jan. 2013)

 

CONCLUSÃO

 

O presente artigo teve por escopo produzir conhecimento atinente ao exercício da atividade de Polícia Judiciária Militar, que tem por fim a elucidação dos crimes militares por meio de Inquérito Policial Militar, nos termos do § 4º, parte final, do art. 144 da CF/88 combinado com os arts. 7º e 8º do CPPM.

As condutas desviantes de funcionários públicos devem ser combatidas fortemente, em especial as praticadas por Policiais Militares, profissionais que tem o dever de fiscalizar os demais cidadãos e aos quais a CF/88 conferiu a missão de preservação da ordem pública e a polícia ostensiva.

Destarte, a atividade correicional parece possuir cada vez mais relevo, bem como deve ser cada vez mais aperfeiçoada. Daí a relevância da Justiça Militar e do direito penal e processual militar, visto que, além de mais severos que o direito penal e processual penal comum, possibilitam que o julgamento seja realizado tanto por juízes togados quanto por juízes militares, os quais, além do conhecimento jurídico, conhecem bem as peculiaridades da atividade policial militar.

No transcorrer do trabalho foi abordada a conexão entre o crime militar e o crime de organização criminosa, que, de fato, tal crime é crime comum, posto que não preenche os requisitos do art. 9º do CPM, devendo, portanto, ser processado e julgado pela Justiça Comum. Todavia, restou igualmente confirmada a hipótese atinente a serem militares os crimes praticados pelas organizações criminosas, desde que preenchidos os requisitos do art. 9º do CPM, de modo que o processo e julgamento dos mesmos compete à Justiça Militar.

Nesse sentido, quando se tratou da conexão entre o crime militar e o crime de organização criminosa, que a CF/88 definiu competir à Justiça Militar o processo e julgamento dos crimes militares, delegando à lei ordinária a definição de quais crimes seriam militares. Assim, como visto, tal definição é conferida pelo art. 9º do CPM. Ademais, foi visto que os crimes militares podem possuir um liame com outros delitos, ou seja, pode ser conexo a outros crimes, sejam eles militares ou não, cabendo asseverar que quando a conexão se estabelecer com crimes comuns, haverá a cisão do processo, cabendo a Justiça Militar o processo e julgamento do crime militar e à Justiça Comum o processo e julgamento das infrações penais comuns.

Portanto, constatou-se que é juridicamente viável que as organizações criminosas, tais como definidas pela novel Lei nº 12.850/13, sejam integradas por policiais militares e que, assim, venham a praticar crimes militares em conexão com o crime de organização criminosa, devendo, nesse caso, o crime militar ser processado e julgado pela Justiça Militar. As ferramentas trazidas pela legislação em tela propicia que as Instituições Policiais Militares possam investigar com certa supremacia de força os envolvidos com a criminalidade organizada, conclui-se que tal atuação não se constitui numa faculdade, mas sim na determinação constitucional do exercício da Polícia Judiciária Militar.


 

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