O Império dos Cultos

Por Julio Cesar Souza Santos | 05/01/2017 | Sociedade

Qual Era a Importância do Latim Para a Europa na Idade Média? Qual Era o Papel de São Bento de Núrsia Para a Língua Culta? E de Carlos Magno?

 
O antigo Império Romano deixou uma herança viva através da Europa, pois as relíquias do direito romano definiram para esse continente e parte do resto do Mundo, a propriedade, os contratos e os crimes. A língua de Roma sobreviveu, proporcionou a literatura do livro escrito e criou uma comunidade de saber europeia. Mas, esse legado dividiu as suas comunidades, pois havia por todo o continente comunidades bilíngues. 

Na Idade Média, o latim uniu a comunidade culta da Igreja e das Universidades e, enquanto o latim foi a língua das universidades, houve pelo menos no sentido linguístico, um sistema universitário europeu único. Professores e estudantes podiam se transferir de Bolonha para Heidelberg e de Praga para Paris, e se sentir à vontade em sala de aula. Vários estudantes famosos – como Vesálio, Galeno e Galileu – andaram de uma comunidade culta para outra e, pela 1ª e última vez, o continente tinha uma só língua do saber. 

Mas o latim se tornou uma barreira entre os cultos de cada nação e o resto dos seus compatriotas e, nas casas, no mercado e nos espetáculos populares, falava-se outras línguas. Em toda a parte a população não falava o latim e sim o “vernáculo”; ou seja, a língua nativa local. Em toda a Europa a língua dos cultos era uma língua estrangeira. Saber latim era condição prévia para frequentar uma universidade. Não bastava ser capaz de decifrar um texto, pois todas as lições eram dadas em latim e exigia-se aos estudantes que falassem apenas latim fora das aulas, norma cujo cumprimento era imposto por castigos. 

Na Universidade de Paris – por exemplo – quando um estudante fazia algum pedido ao reitor, os estatutos exigiam-lhe que expusesse o seu caso sem empregar uma única palavra francesa. O latim das universidades medievais se tornou uma língua mais rica, mais flexível. Como o hebreu moderno, o latim medieval foi adaptado às necessidades quotidianas. E essa língua latina moldou o pensamento das classes instruídas de todo o continente. 

A cultura latina da Europa medieval dificilmente teria podido prosperar sem o entusiasmo e o bom senso de São Bento de Núrsia, o qual foi considerado o “Pai” do monasticismo cristão na Europa e padrinho das bibliotecas. São Bento foi estudar em Roma, quando o antigo poder imperial estava em declínio e o poder do papado em ascensão. Perturbado pela devassidão que reinava na cidade, retirou-se durante três anos para uma caverna nos Montes Abruzos. 

Quando se tornou conhecido, convidaram-no para abade em um mosteiro onde ensinou aos outros monges. Só nessa região, São Bento fundou doze mosteiro, cada um com doze monges, todos sob a sua direção. A regra constituía um compromisso entre o espírito ascético sobrenatural e a fraqueza humana. Os monges juravam obedecer à regra e residir toda sua vida no mesmo mosteiro. 

Cada mosteiro precisava ter sua própria biblioteca e “um mosteiro sem biblioteca é como um castelo sem arsenal”. – disse um monge da Normandia, em 1170. Era costume os mosteiros emprestarem seus livros a outros mosteiros e, até com as devidas garantias, ao público em geral. Havia maldições contra os que mutilavam livros ou fugiam com eles como por exemplo: _ “Esse livro pertence ao mosteiro St. Mary of Roberts Bridge e quem quer que o roube, venda ou o mutile, que seja sempre maldito. Amém”.

 

As bibliotecas monásticas incluíam as Sagradas Escrituras, obras dos doutores da Igreja e comentários sobre elas. Coleções maiores dispunham de crônicas como a “História Eclesiástica” de Beda, os escritos de Santo Agostinho, de S. Tomás de Aquino e Roger Bacon. Entre os livros seculares contavam-se Virgílio, Horácio e Cícero. Além disso, Platão, Aristóteles e Galeno tinham traduções latinas. 

Os Beneditinos não se limitavam a reunir livros para formar bibliotecas, pois eles a criavam. A “confecção” (Istoé, o copiar), como a leitura de livros se tornou um dever sagrado, a sala de copiar dos escribas era uma característica habitual dos seus mosteiros. Eles tinham mais liberdade de reproduzir livros do que os editores na idade subsequente da imprensa. Não se esperava que o livro fosse um veículo de ideias novas, transmitindo mensagens de contemporâneos para contemporâneos. Era uma maneira de conservar e aumentar o fundo rotativo acumulado de obras literárias. 

Quando liam um texto sagrado, os estudiosos sentiam indiferença quanto à identidade do autor, pois os escritores que eram transcritos nem sempre se davam ao trabalho de “citar” o que tinham ido buscar em outros escritores. Mesmo num tempo em que se ensinava os estudantes a argumentar, citando “autoridade”, era impossível atribuir determinadas passagens a determinados autores. Os escritores de textos originais sentiam relutância em assumir o crédito, ou arriscar-se à mais provável censura, pela inovação. Na Idade Média, todos os mosteiros tinham a sua editora própria e um monge com escrivaninha, tinta e pergaminho era o seu próprio editor. 

São Luís (1214/1270) afirmava que era melhor transcrever um livro do comprar o original, pois transcrevê-lo ajudava a difundir o evangelho cristão. E se São Bento foi o santo patrono do livro manuscrito na Idade Média, Carlos magno (742/814) foi o patrono secular. Ele foi coroado imperador do Império Romano no dia de natal do ano de 800 e ganhava a vida como fomentador da cultura livresca e reformador da língua latina e do alfabeto romano. 

Carlos Magno herdou seu trono como rei dos Francos em 768. Homem de grandes ambições, passou por cima das reivindicações dos rivais e parentes, dominou os Saxões, conquistou a Lombardia e formou um império que incluía a Itália setentrional, a França e a maior parte da Alemanha e da Europa oriental. E, como aliado do Papa e cristão fervoroso, sentiu-se chocado com a decadência da cultura cristã. 

A rica biblioteca de Carlos Magno no palácio de Aachen, se tornou um centro cultural que atraía cristãos cultos fugidos dos Mouros, da Espanha e até das ilhas distantes da Irlanda. Os monges adoravam os textos sagrados, adornando-os e, em Iona, monges celtas do mosteiro local fizeram um dos mais belos livros de todos os tempos. O Livro de Kells apresentava o magnífico texto latino dos Evangelhos em letras garrafais, ornamentado com folhas dos ofuscantes lápis-lazúli. 

Aos poucos, os monges começaram a experimentar as letras menores de vários formatos, inspirando-se na escrita cursiva das correspondências comerciais. A escassez de papiro e o preço da tinta instigavam-nos a escrever de forma mais compacta, a fim de gastarem menos folhas. Ao mesmo tempo, o declínio da autoridade romana foi dissolvendo os padrões na caligrafia, como em tudo o mais. As idiossincrasias dos mosteiros isolados estavam dividindo a cultura da Europa latina.

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